Derrota após derrota, a esquerda chegou à semana de 4 dias
Ao deixar as ONGs e a imprensa marcarem o passo do discurso, a esquerda vai desistindo de ser um projeto de poder
Capitalismo e Ideologia, talvez o segundo livro mais conhecido do economista Thomas Piketty, aponta para uma transformação no eleitorado da esquerda. Segundo o autor, esta tornou-se cada vez mais dirigida e representada por trabalhadores com credenciais académicas e elitista, daí tê-la apelidada de Brâmane, umas das castas superiores da Índia. A tendência analisada por Piketty não abordava o contexto português, mas ainda assim, por exemplo, Luhuna Carvalho, em 2022, fala da possibilidade da esquerda tornar-se na “ideologia residual de uma fração da classe média” e questiona-se se tal não tenha já acontecido.
Podemos encontrar várias análises que contestam que a esquerda tenha sido reduzida a essa camada educada e urbana da sociedade (por exemplo, aqui e aqui). Recentemente, na sequência das eleições francesas deste Verão, Martin Barnay contestou a tese de um Gaucho-Lepenismo onde depois do eclipse do Partido Comunista, a classe trabalhadora se tenha virado para a extrema-direita.
Embora as teses de uma esquerda reduzida a um projeto da classe média urbana e qualificada no ocidente possam ser precipitadas, não devemos subestimar o papel desta tendência. As classes populares podem não ter desistido da esquerda, mas a esquerda pode sentir-se tentada a desistir delas. O destino da esquerda institucional não tem o de ser o da redução a um projeto estreito e estético, mas os riscos são reais.
Na agenda da “semana dos 4 dias”, encontramos várias pedras de toque desta tendência. Estes são percorridos neste texto que serve de conclusão deste ciclo da República.
UM MERCADO A DUAS VELOCIDADES
Como mostrado pelo estudo conduzido pelo Estado sobre a “semana dos 4 dias”, existe uma clivagem entre setores que aderiram a esta iniciativa. A participação feita de forma voluntária na experiência foi centrada em setores da “economia do conhecimento”, com um elevado peso de trabalhadores diplomados (80% dos inquiridos). Em oposição, setores como a indústria, hotelaria, restauração e construção (colarinho azul) tiveram uma participação reduzida ou nula.
Não é difícil de observar quais destes setores Piketty se refere quando se refere à esquerda Brâmane. É precisamente nos setores do “conhecimento” que se encontra grande fatia do que recentemente vem sido chamado de laptop class, ou tipicamente de colarinho branco. Setores como consultoria, informática e comunicação, que embora prolaterizados em relação face às décadas passadas, vêm-se privilegiados face aos trabalhos de colarinho azul.
Os anos de pandemia são um bom exemplo disso. Esta camada, geralmente capaz de recorrer ao teletrabalho, viu-se mais protegida do choque económico. Já depois da pandemia, o teletrabalho tornou-se útil para poupar dinheiro com transporte e refeições, e fintar o caos do trânsito e os (lentos) transportes públicos nas grandes cidades. Embora ainda tenham muito em comum com os outros trabalhadores, a tendência da “semana dos 4 dias” agudiza o que os separa.
Com o fim da experiência da “semana dos 4 dias”, surgiram - dentro e fora do parlamento - apelos para a sua expansão. Dada a iniciativa ter sido feita a duas velocidades, também é de esperar que o seu alargamento assim o seja. Esse destino é garantido pela ausência de criticismo face ao processo e às suas conclusões por parte de quem o propõe.
No mercado laboral, além da distinção entre público e privado, existem elementos que já distinguem entre setores de trabalhadores – por exemplo, os trabalhadores do BCP, em grande parte quadros formados, beneficiam de 35 horas de trabalho semanal. A expansão da semana de 4 dias (ou a simples redução das horas de trabalho semanais, que foi incluído no projeto) traduziria-se num aumento da segmentação do mercado laboral a partir de duas dinâmicas perversas.
Primeiro, a autosseleção. As empresas que escolheriam acolher o programa seriam maioritariamente as do “conhecimento”. Em segundo, prosseguindo com a participação voluntária no projeto, a adesão à iniciativa será feita através de compensações, como benefícios fiscais - tal como sugerido no relatório.
Em suma, os cofres do Estado iriam financiar a redução de horário da laptop class, camada que se reparte entre a esfera de direita, em parte no campo da Iniciativa Liberal, e na versão portuguesa esquerda Brâmane. Para mais, o mercado de trabalho sofreria uma nova segmentação, com os trabalhadores destes setores a jogarem num campeonato diferente dos de colarinho azul. Face a uma tendência generalizada de desvalorização do trabalho, seria entregue um prémio de consolação à esquerda Brâmane, aumentando o fosso entre esta e os restantes trabalhadores.
A esperanças face à outra grande reivindicação por menos horas de trabalho, a implementação das 35 horas no setor privado, perderia força. Os trabalhadores destas, que beneficiaram da implementação da medida de forma difusa, naturalmente estariam menos interessados na sua implementação geral. É nos sindicatos, assentes nos empregos de colarinho azul, principais veículos da generalização das 35 horas, que encontramos a segunda pedra de toque.
MADE IN ONGS
Na posição da CGTP sobre o lançamento do relatório sobre a iniciativa, não passam despercebidos pontos como os trabalhadores que participaram no projeto terem “um nível de escolaridade mais elevado” e que “esta experiência não é representativa da realidade das empresas e dos trabalhadores portugueses”. Mais crucial, é o papel que os sindicatos (não) tiveram ao longo do processo, destacando que a “experiência decorreu sem qualquer envolvimento directo dos trabalhadores e dos sindicatos”. Sobraram os inquéritos conduzidos pela equipa do programa para avaliar a posição dos trabalhadores.
Anteriormente ao lançamento do relatório, a reação da principal federação sindical em Portugal sobre a semana dos 4 dias foi um equilíbrio entre rejeitar as premissas tecnocráticas sem rejeitar a proposta da redução das horas de trabalho. Embora (naturalmente) a central sindical não o diga na sua comunicação, a condução do teste tratou-se de uma rutura radical na forma como um os processos laborais são conduzidos. Indo além do Estado e da gestão da empresa, as Organizações Não Governamentais (ONGs) têm uma mão sombra na definição das políticas. No caso do projeto piloto original tratou-se do 4 Day Week Global, uma ONG fundada na Nova Zelândia por dois empresários.
Refletindo sobre a participação nas democracias, a socióloga Theda Skocpol reparou no papel crescente que as ONGs têm na sociedade civil. Ao contrário dos sindicatos que representam os seus próprios membros e elegem órgãos, estas funcionam como “cabeças sem corpos”, que se fazem representar o interesse das populações.
Na semana dos 4 dias encontramos este fenómeno na sua maior pujança. Em boa parte, foi a partir de um relatório de um Think Tank que a ideia se popularizou, para de seguida despertar a curiosidade da imprensa. Fermentando entre a intelligentsia e depois de ser pegado pelo governo de António Costa, foi novamente a partir da imprensa, e não dos locais de trabalho, que o projeto ganhou pujança. Ficou a cargo de ONGs e do aparelho mediático marcar o passo das reivindicações.
Esta dinâmica vai de encontro aos que defendem a reivindicação. O primeiro relatório que popularizou a agenda foi baseado na experiência islandesa, numa narrativa minada de imprecisões. O papel dos movimentos sociais é colocado de parte, e os supostos méritos tecnocráticos são colocados no centro. O fetichismo com a técnica é o Santo-Graal da iniciativa.
A TÉCNICA ACIMA DE TUDO
O nome escolhido por Piketty para a sua esquerda com traços elitistas, Brâmane, não é um acaso e enquadra-se no surgimento da agenda da semana de 4 dias - o nome refere-se à respeitada casta de sacerdotes. Além do alto estatuto, é também nos aspetos espirituais que esta se define. Sempre em linha com a sua marca secular, as camadas educadas das sociedades ocidentais vêm a encontrar a sua transcendência na tecnocracia.
Segundo a lenda, a agenda dos quatro dias semanais seguiu uma metodologia, inspirada em experiências internacionais. Através de uma amostra, em que vários parâmetros foram definidos, de acordo com as melhores práticas da técnica, os resultados da experimentação foram controlados. Depois de sumarizados os resultados, os investigadores do projeto puderam comparar o sucesso da experiência portuguesa face aos outros resultados internacionais.
O que é descrito acima é demasiado generoso para retratar o teste dos 4 dias em Portugal, e é certamente inalcançável para qualquer projeto desta natureza, mas esse é o ideal a que estas experiências aspiram. Para os Brâmanes modernos, poder equipar a iniciativa da semana dos 4 dias a uma experiência científica, como se de um teste clínico se tratasse, é vital. As credenciais académicas dos condutores do estudo, cimentadas por faculdades às quais basta um nome estrangeiro para serem dignas de legitimidade, servem de chave de ouro. O aparato tecnocrático é o grande pilar da agenda.
Depois de saídos os resultados da experiência, os nossos Brâmanes não se cansaram de referir as percentagens de indicador x ou y. Tal como em qualquer camada social que não se cansa de olhar para si mesma, isto funciona em dois sentidos. Entre os seus, cada proclamação da validade científica reforça a causa. Para os restantes, em especial para aqueles a quem estes aspiram para aliados, a linguagem teológica cimenta a desconfiança.
A linguagem cimentada em “classes”, “progresso”, “trabalho” e “desenvolvimento” da esquerda que advém pós segunda guerra mundial é posta de lado para falar em “melhores práticas”, “bom senso”, e “evidência”. Com a coordenação das ONGs, a metodologia dos thinks tanks e a linguagem emprestada da académica, a esquerda Brâmane trai a social democracia que tanto lhe serve de inspiração.
A CURVA DE APRENDIZAGEM
Em 2014, ainda antes de Piketty pegar no termo Brâmane, o cientista político Adolph Reed Jr. lamentava-se da rendição política da esquerda face ao centro político representado por Barack Obama. Sem Obama ter prometido uma viragem à esquerda para chegar à presidência dos EUA em 2008, organizações e figuras como o filósofo Slajov Žižek depositaram em Obama a esperança, que já se provava ser infundada, de uma quebra com o consenso neoliberal.
Mais recentemente, com um tom semelhante, o historiador Matt Karp fala de uma “Esquerda Online” que se resignou, preferindo atirar-se aos braços da candidatura de Kamala Harris. A energia do Occupy Wall Street e das candidaturas de Bernie Sanders à Casa Branca esfumou-se. Sobra, de novo, um apoio pouco crítico a uma candidatura que não se mostra capaz de resolver os desafios levantados por essas iniciativas.
O que o programa da semana dos 4 dias promete não cumpre, e o que pode cumprir não é promissor. Estas conclusões não necessitam de uma clarividência política sobrenatural. As palavras de Luís Montenegro que em junho admitiu testar a semana de quatro dias afirmando que “há dois caminhos: ou o aumento da carga de horário nos restantes dias ou fazer corresponder uma diminuição do horário laboral a uma diminuição salarial” poderiam ser vislumbradas a anos de distância. Recentemente, quer estudando o relatório que retrata a experiência que aconteceu ao longo do teste, quer lendo o pensamento do coordenador do programa em Portugal, torna-se evidente que a iniciativa tem mais de estético do que prático.
Pedro Gomes promete em simultâneo uma transição indolor e sem conflitos para a semana de 4 dias para depois admitir que se trata de um “slogan (vazio) mas eficaz”. O programa conduzido pelo Estado mostra o confronto óbvio que uma descida do horário de trabalho tem com o interesse das empresas.
É fácil de ressoar com as críticas de Reed e Karp quando vemos parte da esquerda a encarar a semana de 4 dias em linha com as narrativas mais optimistas dos cabeçalhos das notícias. Como descrito pelo primeiro “A esquerda opera sem uma curva de aprendizagem e está logo sempre vulnerável ao novo entusiasmo. Esta perdeu há muito a capacidade de se mover para a frente sob o seu próprio passo”.
Passaram dez anos desde a crítica de Reed, a esquerda lidou com derrotas como a do Syriza em 2015. Face ao fascínio para com a agenda da semana de 4 dias, o juízo deste, em especial no que se refere ao ignorar da curva de aprendizagem, parece tão atual como nunca. Face à impotência dos últimos anos, e à pujança da extrema-direita, esta imagina uma porta do cavalo política pela qual será capaz de ser bem sucedida. Com um simples truque, ao entregar-se nos braços da tecnocracia, as aspirações de quem propõe um mundo diferente seriam bem sucedidas.
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“ Embora ainda tenham muito em comum com os outros trabalhadores”. O problema é que eles não sabem que têm!
É necessária uma redução da carga semanal e da carga horária de trabalho - aliás, em linha com o que a História nos demonstra -, mas sem redução do salário. Isto, uma vez que o trabalho final produzido pelo trabalhador mantém-se igual ou até aumenta, e o que se reduz é a carga horária dispendida em cada tarefa. Mas para isso terá de haver uma iniciativa de "semana dos 4 dias" liderada pelos trabalhadores, não pelo patronato.