Como perder uma eleição, a derrota de Medina em 2021
Moedas conseguiu uma vitória curta com o apoio da sua base na habitação e mobilidade. Medina falhou ao tentar se o gestor do condomínio de Lisboa
O trânsito e a limpeza, entre outros fatores, mostram que a Lisboa de Carlos Moedas está em pior Estado do que as anteriores gestões do Partido Socialista. Miguel Sousa Tavares, insuspeito de simpatias à esquerda, apelida Lisboa de uma “cidade perdida” na qual afirma que não vê “uma rua melhorada, um piso renovado, um espaço verde a mais, uma praça reconfigurada”. No mesmo artigo, o colunista afirma nunca ter compreendido “as causas da derrota autárquica de Fernando Medina”.
O que fez Moedas em três anos? Vejo-o constantemente no combate político ao PS e ao anterior Governo, sempre a reclamar louros de coisas não vistas, mas sempre também a recorrer ao governo quando se vê à rasca. - Miguel Sousa Tavares para o Expresso em junho de 2024
A vitória de Moedas em 2021 foi surpreendente, conseguida por uma margem curtíssima e beneficiou de um sistema eleitoral de maiorias relativas. Contrariando as sondagens por uma larga margem, a coligação liderada pelo PSD conseguiu uma vitória por menos de 2,3 mil votos (menos de 1 ponto percentual) e acabou com o mesmo número de vereadores da coligação liderada pelo PS.
No papel, a magra vitória e uma fraca governação são os ingredientes que tornariam Moedas presidente de um só mandato e marcariam o regresso anunciado do PS ao poder. Contudo, a frente eleitoral liderada por Moedas, e consolidada no centro do poder autárquico, conta com bons auspícios para renovar o seu mandato na próxima eleição. Entender o porquê é um passo fundamental para entender o fracasso eleitoral de Medina em 2021.
O POVO DE MOEDAS
Embora seja verdade que a vitória de Moedas tenha resultado de fatores espúrios e dificilmente replicáveis, um regresso do PS à Câmara Municipal de Lisboa (CML) é tudo menos garantido. Ao olharmos para os resultados das últimas eleições legislativas e europeias, vemos o PSD na frente no município.1 Além disso, e ao contrário de eleições anteriores, os resultados do PS nos últimos anos (legislativas e europeias) têm vindo a ser substancialmente mais fracos no município de Lisboa do que no resto do distrito. Vinca-se uma tendência de divergência eleitoral entre o centro e a periferia da Grande Lisboa.
Mesmo não havendo uma implicação direta entre diferentes atos eleitorais - e possíveis distorções do voto à distância nas eleições europeias - estes resultados são favoráveis a Moedas. Somando todos estes dados para uma análise prospectiva, é fácil de entender que as eleições do ano que vem não serão uma simples segunda volta das eleições de 2021. O pano de fundo conjuntural, como o PRR e a situação financeira do município - receita vinda de um longo período de boom imobiliário e turístico - permitem que Moedas “tenha obra” para inaugurar ou anunciar e uma máquina de propaganda para a capitalizar disto.
Apesar dos episódios em que é sucessivamente apanhado entre meias verdades e mentiras gerarem repúdio pelo eleitor médio português, isso pode não pesar para quem o elegeu. O Presidente da Câmara forjou importantes alianças com grupos que representam o setor do turismo e o lobby automóvel da cidade, entre outros. A participação em manifestações a favor do Alojamento Local, o congelar e reverter planos de ciclovias, embaratecer o estacionamento para moradores, e acabar com esplanadas em lugares de estacionamento mostram que Moedas leva a sério os humores da sua base eleitoral. Moedas sabe perfeitamente que não precisa de ter uma base social maioritária para ser reeleito. Mobilizar a as suas camadas, ainda que minoritárias, é a chave.
A recente polémica sobre a publicidade da JCDecaux mostra o poder do povo Moedas. Foi quando o Automóvel Club de Portugal se mostrou insatisfeito com a colocação dos paineis publicitários que Moedas tentou sacudir a responsabilidade para com o projeto. Não foram os cidadãos de Lisboa que conseguiram colocar o assunto na atualidade, mas sim talvez o maior antagonista face à política de mobilidade de Medina e aliado de primeira hora de Moedas.
A insistência do Presidente da Câmara de levar a votos a isenção do IMT para jovens reforça esta ideia. Moedas, tal como a ministra da Juventude, sabe perfeitamente que é uma medida ineficaz no controlo de preços e que apenas uma minoria de jovens (geralmente com dinheiro de familiares) irá beneficiar dela. Mas é a sua minoria.
Entender o contraste entre os modos de de Moedas e do anterior presidente Lisboeta permite responder à estupefação de Sousa Tavares sobre “as causas da derrota autárquica de Fernando Medina”.
COSTISMO EM PILOTO AUTOMÁTICO
Enquanto a perda de poder de Medina foi focada no choque entre as sondagens e a realidade, em teoria o PS tinha tudo para manter a CML. Continuando as políticas iniciadas com António Costa que já tinham rendido três vitórias consecutivas, a governação de Medina parecia estável. As praças continuavam a ser renovadas, o trânsito era reajustado. A possibilidade de fazer acordos à sua esquerda trazia estabilidade à sua governação. Crucialmente, ao colocar poucos travões às ambições dos negócios turísticos e imobiliários, Medina mantinha a paz com os mais poderosos.
Dada a real possibilidade da reeleição de Moedas, é tentador afirmar que a esquerda precisa de se unir em volta do PS para ganhar ímpeto, num cenário nacional dominado pela direita. No entanto, mesmo antes disso é útil apreciar os fatores que levaram à derrota da candidatura de Fernando Medina, em 2021, apesar de uma gestão vista como competente e com poucos inimigos.
O primeiro ponto passa por aquilo em que Moedas mais tem falhado: a reabilitação de zonas. Com os mandatos de Costa-Medina o Cais do Sodré deixou de ser a zona que o comediante Marco Horácio, sob a personagem de Rouxinol Faducho, associava à droga e prostituição em 2005; ganharam-se várias batalhas contra a cultura do carro num eixo que vai da coroa Ribeirinha a Entrecampos; zonas com um lastro de toxicodependência, como o Campo dos Mártires da Pátria e o Largo do Intendente, passaram a ser das mais apetecíveis da cidade. Apesar das conquistas, todas as intervenções enumeradas acima inserem-se em dois tipos de lugares: as altamente afluentes, ou aquelas que passaram a sê-lo.
Cais do Sodré não é só rusga que vai e vem, é também onde o taxista bate na mulher e na mãe - Rouxinol Faduncho
Esta política trouxe dois efeitos que acabariam por corroer os pilares da base do PS. Num primeiro nível, e no imediato, a exclusão fez-se sentir no acesso a estes bairros como locais de consumo e de entretenimento. Depois de os consumidores da Grande Lisboa terem colocado o Bairro Alto e o Cais de Sodré no mapa das saídas nocturnas, a turistificação foi ditando o seu afastamento, deixando as zonas aos turistas que experienciam Lisboa como um parque de diversões. Para vários lisboetas não afluentes, o encanto com Medina (se alguma vez existiu) foi-se rapidamente perdendo.
É talvez na exclusão ao nível da habitação que se encontra a falha mortal de Medina. O espaço que foi sendo preenchido pelo turismo e pelos nómadas digitais era antes ocupado por lisboetas, muitos destes das classes populares, votando tendencialmente à esquerda. O efeito nos preços alastrou-se por toda a cidade, bem para além das zonas reabilitadas. Mesmo entre a população de rendimentos intermédios, uma mudança para os subúrbios passou a ser uma hipótese mais atrativa do que ficar em Lisboa. Zonas como Arroios, escolhidas pelo baixo preço a que vendiam a centralidade, uma oferta atrativa para estudantes e ofícios com um grau de incerteza, como nas artes, foram deixando de o ser.
Se por vezes se contesta o facto de que o Alojamento Local tenha despejado moradores, as recentes votações da cidade à direita clarificam o debate. É este o principal suspeito da recente vantagem que o PSD (e a direita) levam entre os eleitores – os lisboetas de esquerda podem não ter deixado a esquerda, mas muitos deixaram de votar em Lisboa.
Ao tentar seduzir o poder dos actores do complexo turístico-imobiliário, Medina atuava para uma audiência que o tolerava, sem o aceitar verdadeiramente. A camada de proprietários que viram as suas fortunas inchar durante os mandatos de Medina nunca se tornou partidária do seu projeto. Ao tornar meros e pequenos proprietários em vencedores da lotaria imobiliária, o antigo Presidente da CML criou um segmento que vê em Moedas o seu representante natural. A bonança do mercado imobiliário não tornou este grupo partidário das outras bandeiras de Medina, como da sua política de mobilidade.
A dinâmica que o imobiliário criou sobre o eleitorado parece hoje óbvia, mas o que é certo é que Medina não lhe parece ter prestado atenção após Costa lhe ter entregue as rédeas da capital em 2015.
Esta passagem de testemunho não representa apenas uma mudança de personagens, o final do executivo de Costa dá-se num período de viragem. Afinal, no ano de 2013, o pico do desemprego ainda mal tinha passado e o mercado imobiliário circundava mínimos históricos - a política de requalificação de Costa ambicionava reverter as duas tendências, acolhendo uma coligação política entre aqueles viam os novos empregos no turismo como solução para os seus problemas, e proprietários. Os 51% de Costa em 2013, o segundo melhor resultado eleitoral da história do município, testemunham o sucesso desta fórmula.
Enquanto os oito anos de Costa são marcados por aquilo que hoje é considerado o lado bom dos 16 anos de PS na frente de Lisboa, o lado mau que lhe segue tem um quanto de destino. Depois de requalificar os espaços, no contexto das reformas aplicadas a nível nacional pelo governo liderado por Pedro Passos Coelho – em especial no que diz respeito ao mercado de arrendamento (Lei Cristas), os “vistos gold” e o Alojamento Local – Lisboa entra na trajetória do turismo de massas. A falta de legislação local tornou Lisboa na capital europeia do AirBnB.
Não obstante, é possível traçar uma linha entre Costa e Medina que vai além do tempo. Em cada ato como presidente, surgia um Medina com pouco afeto às suas políticas; ao contrário de Costa, que deu a cara pela requalificação do Largo do Intendente. O que era “feito” por Costa (o fazedor) passou só a “acontecer” com Medina (o gestor). Moedas entendeu esta dinâmica melhor que ninguém e montou uma estratégia de comunicação que, apesar de ser constrangedora de testemunhar e de ser difícil acreditar no amor que Moedas mostra projetos, contrasta com a gestão desapaixonada de Medina.
Medina prosseguia uma fórmula que vinha a dar resultados, e isso parecia-lhe bastar. Mesmo sendo aceite pelos seus eleitores lisboetas, nunca foi amado por uma base que lhe assegurasse vitórias. Enquanto a coligação social montada por Costa se desmanchava, Medina insistia em apresentar-se como uma espécie de chefe de condomínio de Lisboa. A sua derrota face a Moedas, em contracorrente com as sondagens, também mostrou que as eleições não se perdem só nos votos que disputam contra os adversários, mas também nos votos que, depois de conquistados, se dão (ou não) ao trabalho de aparecer nas urnas. A segunda vida de Medina, em que assume a pasta das Finanças com naturalidade no último governo de Costa, trouxe ao de cima esta dinâmica – uma competência desinspiradora.
UM POUCO PARA TODOS
O continuísmo de Medina numa realidade totalmente diferente pode ser suficiente para explicar a sua derrota. Dito isso, há que apontar uma mudança temporária de curso no final de seu último mandato. Em 2020, quando a pandemia gerava um clima de incerteza na economia do turismo, Medina decidiu sair do seu registo habitual e usar um jornal Britânico para anunciar uma completa revolução urbana. Num artigo de opinião publicado em julho de 2020 no The Independent, que soava a um exercício de autocrítica, Medina falava no risco dos lisboetas se sentirem sobrecarregados com turismo e prometia converter Alojamentos Locais para trazer de volta “aqueles que são a força vital da cidade”. As ideias de Medina apontavam para uma tentativa de redefinir a sua base política com maior clareza, deixando para trás os anos de Bom Urbanista.
Em tempos normais, a visão de Medina dificilmente seria levada a sério o suficiente para reenergizar uma base social para o seu projeto. Mas no contexto de 2020, o Presidente da CML alimentava as esperanças daqueles que viam oportunidades num novo modelo pós-pandémico para Lisboa. A vacinação contra o Covid, a forte recuperação do turismo e a nova vaga de Nómadas Digitais, possibilitados pelo alargamento do trabalho remoto, mataram as ambições revolucionárias de Medina.
Na corrida para as eleições de 2021, sendo cada vez mais consensual que se tinha perdido a janela de oportunidade de mudar o modelo de Lisboa, o Medinismo regressava ao seu registo natural. Sem uma base clara a mobilizar nas eleições, mas com sondagens bastante favoráveis, o executivo da CML dobrou a aposta de dar um pouco a todos. Na mobilidade, a gratuitidade dos dísticos para moradores e subsidiação de estacionamentos subterrâneos privados conviveram com os planos de mais ciclovias. Era a continuação de tentar seduzir em simultâneo várias bases, que antes de Moedas já tinha tornado Lisboa num dos municípios que mais apostava na devolução do IRS, medida querida entre os com mais rendimentos.
Se há alguma coisa que a derrota de Medina e o modelo de governação de Moedas nos mostrou, é que uma candidatura a Lisboa sem uma ideia clara de qual é a sua base social terá dificuldades em ser bem sucedida. O que neste caso implica uma demarcação do modelo assente nas torres gémeas do turismo e do imobiliário. No entanto, como veremos em breve nesta República, um programa de esquerda por Lisboa tem muito mais espaço de manobra.
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Por exemplo, PS teve mais votos que a AD nas legislativas de 2024 no distrito de Lisboa (27,7 vs 27,1%) enquanto perdeu o município de Lisboa (26,1% vs 32,3%). Nas europeias, apesar do voto a distância dificultar a análise, o PS vence o distrito de Lisboa (35,0 vs. 26,8%) e perde o município (26,7% vs 27,9%).
o miguel sousa tavares é bom para comentar os jogos do porto,
refila com o Carlos Moedas porque não lhe deve ter comprado nenhum livro