As conquistas laborais nunca foram conquistas da tecnocracia
Partindo de um episódio da Islândia, a redução do horário de trabalho tem sido usada para ocultar a origem das conquistas sociais
Este texto é o segundo de uma série sobre a “Semana dos Quatro Dias”. Podes consultar o primeiro, sobre o coordenador do projeto em Portugal, focado na sua obra escrita.
Uma notícia recente da BBC Brasil dava conta de uma “tendência mundial” que ganhava espaço - a semana dos quatro dias. Segundo o relatado, a Grécia, que dava passos no aumento para os seis dias de trabalho, estava em contramão.
Contrastar estes dois elementos como tendências equivalentes no sentido inverso esbate com a realidade. Em Portugal, como no resto do mundo, a regra tem sido a semana de quatro dias ser testada num número limitado de empresas, em setores particulares e de forma voluntária. No caso Grego, trata-se de uma legislação nacional, mesmo que para já limitada a alguns setores.
Mais do que reduções do horário de trabalho, a semana de quatro dias tem sido frutuosa na produção de manchetes que reportam projetos piloto aqui e acolá. Enquanto a ofensiva contra os direitos laborais que assola o ocidente ao longo das últimas décadas continua a sua marcha, a semana dos quatro dias oferece um conforto assente num progresso social silencioso. Na sombra desta narrativa de experiências e projetos fica ocultado o verdadeiro motor das conquistas sociais - a mobilização dos trabalhadores pelos seus direitos.
Para melhor compreender esta articulação do discurso, devemos olhar para o suposto país originário da semana dos quatro dias.
MADE IN ISLÂNDIA
O exagero em torno da semana dos quatro dias não é uma novidade e tem como grande fonte um relatório do think tank Britânico Autonomy, de 2021, sobre a experiência islandesa. Nessa, a versão reportada pode ser sumarizada no seguinte: o horário de trabalho da população da ilha foi reduzido em um dia por semana, e depois de vários sucessos validados pelas melhores práticas científicas, a nação nórdica decidiu expandir os quatro dias de trabalho por semana para a generalidade do país. A produtividade não ter sido afetada é um facto constantemente citado.
Rapidamente multiplicaram-se novos estudos/testes/projetos no Reino Unido, Espanha, Bélgica, entre outros. Notavelmente, em Portugal, no ano passado, pela mão do executivo anterior, a experiência avançou em 39 empresas que se voluntariaram, denominado no próprio website do Estado como projeto-piloto, conduzido do por Pedro Gomes, cuja obra escrita do próprio o mostra “como um veículo de medidas como a redução de salários, aumento da idade da reforma e aumento do horário diário - não de transformar a sexta-feira no novo sábado”.
Seguindo a lógica tecnocrática, de acordo com a economia ortodoxa do seu coordenador, espera-se, depois de conduzir os testes apropriados, apurar as vantagens da semana de quatro dias e eventualmente replicar para toda a economia.
Os detalhes menos discutidos do projeto piloto, serão abordados aqui no futuro. Para já, iremos desafiar o legado que acompanha os relatos da experiência original da Islândia, desmistificar a narrativa que a acompanha e ver quando a mobilização social esteve em contracorrente com a tecnocracia Como iremos ver, as conquistas dos horários modernos foram tudo menos um projeto-piloto imposto às classes trabalhadoras.
O reportado sobre o “teste” da Islândia tem várias verdades, mas a história real difere das versões que proliferam. Não foi testada uma semana de quatro dias, mas na verdade, uma redução das horas semanais de 40 horas para 35 ou 36. Embora concentrar as horas em quatro dias fosse uma possibilidade, o ponto era testar menos horas semanais.
Quanto à produtividade, não foi possível fazer o mesmo trabalho com menos tempo em todas as tarefas. Naturalmente, em alguns setores, em especial aqueles com interações com o público, necessitaram de novas contratações, como aconteceu na saúde. Além disso, o think tank do Reino Unido, Autonomy, não esteve envolvido diretamente com a experiência, apenas sumarizou os resultados.
A LUTA PELAS HORAS
Mesmo com as ressalvas acima, o sucesso da redução das horas de trabalho para toda a população da Islândia mantém-se – a produtividade não definhou, os benefícios para os trabalhadores aconteceram. No entanto, é impossível não notar uma esterilização da narrativa. Segundo esta, o grande motor da mudança foi a experiência inicial com 1% da população. Fica a pairar no ar a ideia de que as aspirações sociais dos islandeses estão limitadas à performance de certos indicadores medidos num estudo.
Qualquer conflito ou adversidade são enterradas debaixo de um teste técnico bem-sucedido. A política foi de férias enquanto esta mudança aconteceu. Olhando as numerosas lutas pela redução do horário de trabalho ao longo da história, das greves que se arrastaram semanas no Brasil, aos ataques aos direitos dos trabalhadores nos EUA, o conflito e greves foram uma regra, e a violência não foi rara.
Focando-nos em casos mais recentes, como no caso de França com uma redução das 40 para as 35 horas implementada pelo “Esquerda Plural” no ano 2000 (uma espécie de geringonça Francesa), é impossível contornar o aspecto político de uma proposta que já tinha sido colocada em discussão 20 anos antes pela mesma esquerda e ainda hoje é o terreno de disputas políticas. Mais de uma década da política, foi feito um estudo sobre a experiência, mas foi a política a determinar o objeto de estudo dos académicos, e não o inverso.
Noutro país europeu, depois de anos de austeridade, e das horas de trabalho da função pública terem sido aumentadas de 35 para 40 horas, a medida foi revertida. Com o novo horário de 35 horas, apesar de terem sido necessários alguns ajustes, falta de pessoal em alguns serviços e o pagamento de horas extra, o serviço público continuou a funcionar, e os funcionários públicos saíram beneficiados. Esse outro país foi Portugal, depois do aumento das horas de trabalho da função pública pelo governo da PaF (PSD+CDS), em 2013.
Aqui a própria memória de muitos dos leitores pode confirmar que a reversão para as 35 horas não se tratou de uma escolha tecnocrática mediada por estudos e testes. O governo do PS, acabado de chegar ao poder em 2015, apoiado pelos partidos à sua esquerda no parlamento, não fez a reversão depender de qualquer parecer técnico. As 35 horas surgem quando António Costa se vê forçado a fazer concessões à sua esquerda para poder governar.
O contexto social em torno destas não podia estar mais longe da experimentação conduzida por Pedro Gomes. Surge de um contexto social marcado por anos de luta contra a austeridade com manifestações com mais de 5% da população do país presente e muitas mais outras formas de luta social. Enquanto muitas outras medidas da PaF perduram, como o horário de trabalho no privado, a reversão das 40 horas no setor público destaca-se pela positiva.
Regressando ao exemplo da Islândia, com um exame superficial podemos notar que: a descida nas horas trabalhadas pelos islandeses representou uma aproximação para com outros países nórdicos, após uma subida dos anos de austeridade da viragem da década. Note-se ainda que a Islândia tem uma taxa de sindicalização acima dos 90%, que veio a subir nos anos que antecederam a redução de horário.
Estes elementos não nos dão uma história social da redução da jornada de trabalho na Islândia, mas, aliado aos contextos em que as lutas pela redução da jornada de trabalho acontecem pelo mundo fora, evidenciam que certamente não se tratou de uma operação tecnocrática. A “experiência” tomou certamente parte do processo social da descida de horas de trabalho, mas é impensável que forças laborais e sociais não tenham sido o determinante da conquista.
A ARMADILHA DOS ESTUDOS
Em Portugal, as políticas em torno do Trabalho, mesmo antes do projeto piloto da semana de quatro dias, estão repletas de casos que mostram os riscos de substituir as exigências de agentes políticos por uma ação política baseada nos estudos.
Em 2011, três economistas do Banco de Portugal eram autores de um estudo em que eram assinalados os malefícios de aumentos do salário mínimo. No tom tecnocrático, era afirmado que “os aumentos do salário mínimo deverão sempre ter em conta a evolução dos ganhos de produtividade e serem definidos no conjunto de políticas que interferem com o custo do trabalho.” Passados quatro anos, um dos autores, era o ministro das Finanças enquanto o primeiro aumento deste indicador era aumentado pela primeira vez em vários anos, para os 505 euros.
Enquanto a direita gosta de assinalar a hipocrisia de Centeno, devemos usar este contraste como referência para as conquistas sociais. A forma como este (e outros) aumentos do salário mínimo foram conquistados foi o oposto a uma política tutelada por tecnocratas e os seus estudos preliminares.
Sempre que os aumentos do salário mínimo estão em jogo, surge um coro de economistas a alertar o potencial destruidor de empregos de tal medida. João César das Neves, credenciado economista da Universidade Católica, foi provavelmente o mais vocal (aqui e aqui) e teve o apoio de figuras como Luís Aguiar-Conraria, da Universidade do Minho . Apesar das críticas, o salário mínimo foi paulatinamente aumentado sem causar danos visíveis no número de empregos do país (algo que já tinha acontecido noutros países em diferentes momentos históricos). Aguiar-Conraria reconheceu que estava errado.
Imaginemos que em vez destas subidas, o governo teria feito um cauteloso projeto piloto para acomodar os receios de tecnocratas como César das Neves, Aguiar-Conraria e Centeno. Na melhor das hipóteses estaríamos a discutir os efeitos benéficos para os trabalhadores e a sua implementação generalizada tardia. Na pior das hipóteses, estaríamos mergulhados em discussões técnicas e novos estudos, enquanto os trabalhadores aguardavam pelo aumento do salário mínimo nacional.
Outro caso, no sentido inverso e de carácter menos hipotético que mostra os perigos de depositar a confiança nos especialistas técnicos deste tipo de abordagem. Por volta dos anos 2011-2012 a proposta da descida da TSU paga pelos patrões (contribuição para a segurança social) que seria combinada com um aumento do IVA, para compensar a receita fiscal era apresentada com todo o brio técnico. Esta política foi essencialmente sugerida e defendida por economistas liberais (Francesco Franco, da Nova SBE, foi mesmo apelidado de “Pai da TSU”), na dita estratégia de desvalorização interna. Segundo Franco e outros, esta seria uma forma de tornar o país mais competitivo ao embaratecer os custos do trabalho.
O governo acabou por não avançar com esta medida, mas não foi por ser “tecnicamente deficiente”, ou qualquer outro critério científico que foi apresentado a posteriori. Foi a contestação social, de tal forma grande que chegou a batizar uma manifestação. Como sempre, foi uma disputa política.
Por fim, a área dos grandes investimentos públicos torna evidente que a inação política pode muito bem ser disfarçada em rigor técnico. Recentemente o governo anunciou um período de três anos para estudar uma expansão de 6km no metro de superfície da margem sul do Tejo, que pode começar em “cinco, seis, sete anos”. Dado a natureza minoritária do governo, é muito provável termos outro parlamento daqui a três anos. Os longos estudos permitem que os executivos sinalizem boas intenções, sem qualquer compromisso financeiro sério. A saga do aeroporto de Lisboa tem traços semelhantes (apesar da natureza do investimento necessitar de estudos detalhados). Qualquer noção de urgência e priorização política é colocada de lado.
Estes casos mostram como o projeto piloto da semana de quatro dias - independentemente das intenções dos agentes envolvidos - pode não ser uma estratégia de implementação gradual de políticas latentes, mas uma manobra de travar o debate político nas questões do Trabalho.
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas, fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
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