Heroes and Humans of Footbal: O berço de ouro desconhecido por detrás dos triunfos de José Mourinho
O podcast Heroes & Humans of Football mostra que entre todas as coisas que não importam, o futebol é a mais importante.
Nas nossas redes sociais, assistimos à especulação por parte de um público estrangeiro, sobre um mundo alternativo onde José Mourinho se tinha dedicado à política. A figura de um político divisivo e polémico emergia do perfil traçado num episódio por parte do podcast Heroes & Humans of Football [Heróis e Humanos do Futebol], no fim de agosto.
Apesar do nome, o podcast pode ser interpretado a Política e a Economia das principais figuras do Desporto Rei. Embora esta interpretação possa parecer um enviesamento de uma newsletter que se debruça sobre a Economia e Política, o CV dos anfitriões – Mehreen Khan e Simon Kuper – dão munição a esta visão.
Khan e Kuper são dois jornalistas com uma carreira que vai muito além do futebol. No caso de Khan, uma muçulmana millennial apaixonada pelo Chelsea, o seu trabalho jornalístico foca-se em Economia e Política. Atualmente é editora de economia do The Times e foi correspondente do Financial Times em Bruxelas. Kuper – inglês, , que cresceu na Holanda na década de 1970, e desde então fã do Ajax – conta com uma longa carreira próxima do futebol, ainda assim com particularidades. Colunista de sociedade no Financial Times, onde escreve sobre desporto num ângulo mais sócio-político que o normal, Kuper considera que aborda o desporto a partir de uma “perspectiva antropológica”. Foi co-autor do livro Soccernomics, onde a análise estatística e os conceitos económicos são usados para “desmistificar” várias ideias sobre o Desporto Rei. Mais recentemente, Kuper escreveu Barça, um livro sobre o Futbol Club Barcelona, um clube pelo qual tem afinidade.
Até a data, Heroes & Humans of Football conta com 31 episódios, em que analisam os anos formativos, o contexto socioeconómico, a carreira e o legado de figuras ligadas ao futebol.
Dada a longevidade das personagens, a presença que têm nos clubes onde passam, e a acumulação de experiências, é nos episódios sobre treinadores que o podcast brilha. Desses destacamos Arsène Wenger e José Mourinho, os únicos personagens a quem Khan e Kuper dedicam dois episódios: um sobre a ascensão e outro sobre a queda.
WENGER: MODERNIDADE E AUSTERIDADE
As últimas épocas de Wenger no comando no Arsenal deixaram a imagem de uma figura de um meme de internet, uma falsa lenda com um legado injustificado - aquilo a que Mourinho chamou de especialista no falhanço - que teve a fortuna de ter liderado Os Invencíveis. Khan e Kuper clarificam o legado do antigo treinador do clube do norte de Londres, dedicando um episódio a narrar como Wenger mudou para sempre o futebol inglês.
Nascido em 1949 numa pequena vila da Alsácia, onde os fantasmas da Segunda Guerra Mundial pairavam, Wenger teve uma carreira futebolística pouco impressionante, feita sobretudo em clubes regionais. Nos anos como atleta semi-profissional, Wenger tirou a licenciatura em Economia na Universidade de Estrasburgo. O interesse pela Economia e pela Estatística é algo que marca a carreira de Wenger e a revolução que o treinador atualmente reformado trouxe.
Wenger consegue mostrar os seus dotes de treinador, com poucos anos de carreira chega ao AS Monaco, uma das principais equipas da Ligue 1, e é campeão na primeira época. As épocas seguintes são de menor sucesso desportivo, mas Wenger mostra os seus talentos para a prospeção de jogadores. Num mundo pré-internet, sem os recursos do futebol atual, o treinador francês opera uma rede de contactos que seguem ligas secundárias, que se destaca com a contratação do jovem George Weah da liga dos Camarões, em 1988. O papel de Wenger na descoberta de Weah é tão marcante na carreira do jogador Liberiano, que este dedicou-lhe a bola de ouro em 1995. Weah, hoje presidente do seu país, não esquece o papel de Wenger na sua vida.
Frustrado com o domínio do Olympique de Marselha na Liga, que segundo Wenger é resultado de esquemas de corrupção, o treinador autoexilou-se no Japão. Uma mudança que reforça o interesse em aprender com outras experiências culturais.
Wenger chega ao Arsenal num período em que os treinadores estrangeiros eram uma raridade na Premier League. Vindo de uma liga secundária na Ásia, o treinador fica escandalizado com o modo de operar futebol inglês – uma liga fechada em si própria, presa às glórias do passado, onde problemas como o alcoolismo entre jogadores eram normalizados.
Segundo Kuper, o legado histórico de Wenger é abrir o futebol inglês ao mundo. O treinador revoluciona a alimentação e hábitos dos jogadores. Com o uso da estatística e o seu talento para a prospeção, começa a trazer talento (geralmente a preço de saldo) de outros países para a Premier League, em especial de França. Podemos acrescentar que é representativo de uma hiperintegração da economia europeia, característica de um Neoliberalismo amadurecido. Os métodos de Wenger fazem com que este monte Os Invencíveis, equipa que ganhou o campeonato de 2003/04 sem sofrer uma única derrota.
Para os anfitriões do podcast a queda de Wenger nos anos seguintes dá-se essencialmente por dois motivos. Em primeiro lugar, o treinador do Arsenal torna-se vítima do seu próprio sucesso, quando os restantes clubes começam a montar estruturas para replicar as lições revolucionárias de Wenger. Em segundo lugar, vê o seu plantel como um portefólio de poupanças. Para Wenger, o sucesso financeiro de longo-prazo é tão ou mais importante do que o sucesso desportivo de curto prazo – este reduz constantemente a qualidade do seu plantel ao vender jogadores no pico das carreiras, com o objetivo de maximizar o valor da transferência. A visão economicista de Wenger ignora i) a insubstancialidade dos jogadores no seu plantel; ii) que os seus dotes de prospeção tornam-se banais num futebol cada vez mais profissional.
MOURINHO: THE SPECIAL ONE DESDE O BERÇO
O episódio sobre a ascensão de José Mourinho, é provavelmente o melhor de todo o podcast. Os minutos dedicados aos primeiros anos de vida de Mourinho são um misto de factos bem conhecidos entre o público português e informações que são estranhamente pouco faladas. A esmagadora maioria das pessoas sabe que Mourinho é de Setúbal, filho do jogador/treinador Mourinho Félix e que era assistente de Bobby Robson, servindo também de tradutor.
O contexto social de Mourinho que explica esta trajetória, num período em que os treinadores e jogadores como Mourinho Félix raramente dependiam só dos vencimentos do futebol, é muito menos falada. Contrariando a imagem da desindustrializada e pobre Setúbal, os jornalistas afirmam que Mourinho viveu na quinta de um tio-avô (Mário Ledo), magnata da indústria conserveira de Setúbal, dirigente do Vitória e um dos mecenas na construção do Estádio do Bonfim, durante o Estado Novo. No período revolucionário, os negócios e as propriedades da família foram expropriados, em linha com boa parte da elite económica do Estado Novo.
Mesmo com as perdas revolucionárias, o berço de ouro de Mourinho ajuda a explicar a trajetória que o levou ao sucesso. Nascido em 1963, teve acesso a uma educação privada de topo que lhe permitiram a aprender de várias línguas que lhe foram vitais ao lançar a carreira como assistente e tradutor de treinadores de futebol e fez parte da pequena minoria privilegiada da sua geração que chegou ao ensino superior (Instituto Superior de Educação Física). Curiosamente, a página da Wikipédia em inglês tem muito mais informação que a versão portuguesa sobre as origens do atual treinador do Fenerbahçe. A história de vida de Mourinho é mais um caso em que se cria uma imagem de empreendedor-meritocrático, onde o contexto em que cresceu é sigiloso.
Apesar disso, Mourinho sente-se injustiçado na sua travessia para o sucesso como treinador. O português cresce num período em que ser ex-jogador é um requisito para a dirigir uma equipa. O The Special One acha que os ex-jogadores têm a vida facilitada, e sente-se muito mais preparado, porque, em vez de ter jogado profissionalmente, dedicou anos a analisar e a estudar o desporto.
Depois de narrar os sucessos e os ziguezagues de Mourinho no campeonato nacional, o podcast foca-se nas novidades que o treinador trouxe para a Premier League. Enquanto os Reality Shows surgiam, o talento de Mourinho para lidar com as câmaras de televisão e os jornalistas tornou as conferências de imprensa tão ou mais importantes do que os jogos. Na visão de Kuper, o treinador importou de Portugal uma cultura de conspiracionismo contra os árbitros e a Liga.
Uma das características apontadas para explicar o sucesso de Mourinho é a sua preferência por jogadores desconhecidos, com muito por provar e totalmente dispostos a dar tudo pelas suas equipas. Esse é o motivo pelo qual o Chelsea de Mourinho, apesar dos bolsos fundos de Roman Abramovich, não compra superestrelas. Este é um atributo já visível na liga portuguesa, mas ganha uma particularidade na Premier League. Mourinho aproveita melhor que ninguém os jogadores africanos de topo, historicamente discriminados por jogarem o Campeonato Africano das Nações a meio da época. Os anfitriões do podcast tentam usar este facto, e outros exemplos, para insinuar atitudes racistas por parte do The Special One. A opinião de Khan e Kuper neste assunto - e constraste com as suas opiniões sobre as falhas de carácter de outros personagens do futebol, como Pep Guardiola - mostra que a fronteira entre o Herói e o Vilão é muitas vezes nebulosa, desligada do humanismo ou bondade da personagem. A relação emocional dos anfitriões face a Mourinho, totalmente assimétrica, melhora a dinâmica do episódio. De um lado, uma adepta do Chelsea que deve a Mourinho algumas das suas melhores memórias futebolísticas; do outro lado, um simpatizante do Barcelona e dos Países Baixos com um claro viés contra Mourinho e o futebol português.
Infelizmente, o episódio dedicado à queda de Mourinho não está a par do primeiro. Ao contrário da história da ascensão, o episódio é pouco mais que um agregado de pequenas histórias sobre as derrotas conhecidas de Mourinho, desde a chegada a Madrid, o regresso à Liga Inglesa e a atual digressão por clubes fora do topo europeu. Quando são discutidos os motivos estruturais da queda do the Special One, o diagnóstico tem um ponto em comum com o episódio de Wenger: um inovador que perdeu a vantagem inicial e foi ultrapassado por novos treinadores. Quanto às diferenças apresentadas entre os dois treinadores, apresentam a suposta dificuldade de Mourinho em lidar com as derrotas, com jogadores de grande estatuto e ser um treinador que não está talhado para um futebol menos permeável ao bullying e abuso como método de treino.
FUTEBOL COMO INSTRUMENTO SOCIAL
Kuper explica frequentemente o porquê de se dedicar ao futebol, e não temas como a política e alterações climáticas. Aos olhos do jornalista, embora o futebol não represente o mundo, é no futebol que este encontra o pico dos feitos humanos.
Além dos dois treinadores descritos acima, Heroes & Humans of Football tem excelentes episódios que iluminam o mundo atual, cruzando-se frequentemente com a sociedade e política. Ao falar da carreira explosiva de Mbappe, explora como a política social das autarquias (maioritariamente de esquerda) de Grande Paris tornaram a região na maior incubadora futebolística do mundo. Explica como Hakan Şükür, em conflito com o regime de Tayyip Erdoğan, passou de herói nacional da Turquia a taxista semi-anónimo nos Estados Unidos. Narra a carreira da treinadora Emma Hayes, que se entrelaça com a recente ascensão do futebol feminino na Europa. Apresenta Jürgen Klopp, o carismático treinador abertamente de esquerda, que encara o futebol como um reduto da solidariedade dentro da classe trabalhadora. É explorada a tensa relação amor-ódio entre os adeptos argentinos e Lionel Messi, a estrela que viveu quase toda a sua vida na Catalunha. O episódio dedicado a Gareth Southgate explica como o Brexit tornou um treinador quase desconhecido no selecionador inglês e como Southgate concilia as contradições de num mundo pós-império. Khan, muçulmana e adepta do Chelsea, explica como o islão se enquadra nos recentes investimentos da Arábia Saudita no futebol e como lidar com os maiores sucessos do seu clube terem sido fruto do dinheiro do oligarca Russo, Roman Abramovich. Os próximos dois episódios do podcast serão sobre Alex Ferguson, histórico do Manchester United.
Com o surgimento de clubes controlados por monarcas e oligarcas, tornou-se tentador desvalorizar o Desporto Rei e reduzi-lo ao seu lado comercial ou aos casos de corrupção. Tanto em histórias abordadas pelo podcast, como fora deste, encontramos casos em que, numa época de enfraquecimento das organizações sociais, as organizações em redor dos clubes são das poucas instituições populares que mantêm o vigor. Por exemplo, tanto no Egito (retratado no episódio sobre Mohamed Salah e aqui) como no Brasil, as claques tiveram um papel ativo nos protestos como Mubarak (Primavera Árabe) e no combate a Bolsonaro e seus atos golpistas, respetivamente. Desistir de disputar esses espaços é, usando a gíria futebolística, optar por jogar apenas com dez jogadores no campo da política. Por estes motivos, qualquer projeto político popular deve olhar para o desporto como uma ferramenta de transformação social.
NOTAS
Um dos princípios desta República é a divulgação de autores nacionais e trabalhos na língua portuguesa. Embora seja difícil encontrar um conteúdo do mesmo género e frequência deste podcast no panorama nacional (ou talvez seja mesmo só ignorância nossa), listamos abaixo conteúdos que mais se aproximam:
Texto
F80: A história do futebol português através dos seus heróis, parte da newsletter de António Tadeia (conteúdo pago)
De Calcanhar (última publicação data fevereiro de 2024), newsletter da autoria de Miguel L. Pereira – autor de um livro sobre o futebol português.
Áudio
O Futebol, a História e a Política entram num bar, podcast do Público da autoria de Ana Martins e Aline Flor (10 episódios publicados em 2021)
O Sequestro da Amarelinha, podcast da brasileira Piauí em parceria com a Swissinfo (6 episódios)
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