O que realmente diz o estudo da semana de 4 dias?
Sem entender o que o estudo mede, citar os seus resultados torna-se numa armadilha divisionista
Nota prévia: Este texto usa a expressão “semana de 4 dias” para a experiência do projeto piloto, apesar de grande parte das empresas envolvidas não terem implementado exatamente essa política.
No passado mês de junho, foi publicado o relatório final do projeto-piloto da semana de 4 dias em Portugal, da autoria de Pedro Gomes e Rita Fontinha. Nos títulos das notícias, a razão estava do lado dos mais optimistas e principais apoiantes desta ideia (politicamente representados pelo Livre e Bloco Esquerda): “Maioria das empresas que testaram semana de quatro dias decidiu não voltar atrás”; “Semana de quatro dias beneficia mais trabalhadores com baixos salários”; “Semana de 4 dias é (afinal) boa para a saúde mental dos trabalhadores e não prejudica as empresas”; Semana de 4 dias não afetou lucros na maioria das empresas.
Nesta história marcada por um clima consensual, em que a aplicação da ciência económica destroi mitos e aponta para um política sem perdedores, surge um vilão. A CGPT, defensora de medidas como as 35 horas semanais no privado, apresenta-se muito mais céptica. Entre outros fatores, a Central Sindical refere a impossibilidade de fazer extrapolações do estudo para a economia portuguesa, dado o tamanho e as características das empresas avaliadas.
A CGPT sempre se manifestou pouco agradada com a falta de “envolvimento directo dos trabalhadores e dos sindicatos“ no processo, o que pode ser visto por alguns como o motivo do seu cepticismo aos resultados do projeto. Ainda assim, as dúvidas da central sindical são bastante relevantes e levantam uma outra questão: o que realmente significa o estudo?
MUITO MENOS RADICAL DO QUE PARECE
Em primeiríssimo lugar, é fundamental realçar que esta experiência não avaliou uma “semana de quatro dias”. As empresas que se voluntariaram a entrar no processo tinham de reduzir os horários de trabalho, sem corte nos salários, mas a redução podia ser muito mais suave do que os títulos das notícias sugerem.
As opções eram as 32 horas semanais (semana de 4 dias), as 34 horas semanais, ou as 36 horas semanais. A opção mais popular foram mesmo as 36 horas semanais, sendo escolhida por parte de 53% das empresas. Mesmo sendo uma redução expressiva da carga de trabalho, as 36 horas semanais continuam a ser mais do que o horário de trabalho na função pública (35 horas). Este é mesmo inferior ao conquistado em algumas empresas do setor privado, através dos seus Acordos Coletivos de Trabalho, como a seguradora Fidelidade ou o Banco Millennium BCP.
A relevância de um estudo sobre a redução da carga horária mantém-se, mas o nível de radicalismo da experiência é muito menor do que os seus slogans. Esta não é uma particularidade da experiência portuguesa. O caso islandês também foi uma redução das 40 horas para as 35 ou 36 horas (algo implementado em França há quase 20 anos), e foi artificiosamente apresentado ao mundo como a introdução da “semana de 4 dias”.
Dificilmente as diferenças entre a realidade e a percepção ficaram-se pelo título do relatório.
QUEM QUER SER COBAIA?
Dada a natureza voluntária do projeto piloto, o processo começou com a divulgação de sessões de esclarecimentos. De acordo com o relatório da primeira fase, apenas 99 empresas decidiram participar nas sessões e cerca de metade (46) avançaram para a fase de implementação. Um número insignificante quando enquadrado com o panorâma nacional, equivalente a duas em cada dez mil das empresas que foram criadas só no ano de 2022.
Este não é um detalhe menor quando tentamos entender as consequências políticas, económicas e sociais do piloto. Ao contrário dos ensaios clínicos, nos quais a economia se tem inspirado, o projeto piloto não é executado num ambiente controlado, em que os seus participantes espelham, da melhor forma possível, a diversidade do tecido empresarial nacional.
A natureza voluntária sinaliza que as empresas interessadas partem confiantes de que conseguem implementar esta forma de organização do trabalho sem grandes problemas e custos - algo tipicamente chamado de viés de auto-selecção. Caso contrário, não faria sentido perderem qualquer tempo e recursos com o processo. Ainda assim, o facto de que 53 empresas terem decidido não avançar no processo não deve ser visto como uma mera nota de rodapé. As desistências demonstram que existem desafios e conflitos na redução de horas para a sociedade como um todo.
A falta de interesse por uma parte significativa das empresas é algo que os investigadores analisam em maior detalhe no relatório da primeira fase. Os próprios reconhecem estes conflitos e custos, pelo menos implicitamente, no seu relatório final. Assim, falam num período de implementação de 10 anos e “redução de impostos ou a concessão de créditos fiscais temporariamente” como um incentivo à implementação.
O setor de atividade das empresas voluntárias é igualmente relevante. A maioria das participantes são de sectores como “Atividades de consultoria, científicas, técnicas e similares” (cerca de 40%), “educação” e “informação e comunicação”, geralmente apelidados de serviços da “economia do conhecimento”. A indústria e retalho tem um peso diminuto no estudo, o setor público ficou de fora (apesar de uma creche incluída), e nenhuma empresa de construção (onde há uma aparente escassez de mão de obra) decidiu avançar. O nível de qualificações dos participantes reforça o contraste entre as empresas voluntárias e o tecido empresarial nacional. Segundo o relatório intermédio, 80% dos trabalhadores frequentou o ensino superior, comparado com 35% a nível nacional.
Na economia do conhecimento é relativamente fácil encontrar soluções rápidas e baratas para aumentar a produtividade, quer passem pela implementação de novos softwares ou por simples mudanças organizacionais. Isto ajuda a explicar que sectores como a construção, ou a restauração, onde a substituição de mão de obra é difícil e custosa, fiquem fora do estudo.
Projetar a ideia de que o piloto é uma microssimulação do tecido empresarial nacional é simplesmente errado, uma vez que o processo de autoseleção deixa de fora os setores em que é mais difícil fazer uma transição de forma indolor. Fica ainda por assinalar e avaliar eventuais impactos orçamentais no financiamento nos serviços públicos, resultado de uma redução de horários dos profissionais de saúde e da educação, duas áreas onde o estado tem cada vez mais dificuldade em encontrar mão de obra. No meio do estudo e sem nenhum destaque, é referido que a única creche que participou no programa teve de aumentar a sua força de trabalho em 4.5%, tornando evidente que a “semana dos 4 dias” colocaria pressões no funcionamento no Estado.
Estes aspectos não tornam o estudo inútil. Conclusões detalhadas sobre a implementação da “semana de quatro dias” em empresas dos serviços da economia do conhecimento (que se voluntariaram para serem cobaias) podem servir de ensaio para testar medidas que melhorem a eficiência e produtividade. Entre os méritos do projeto, surge abrir um debate sobre como disciplinar o capital, ao criar pontos de escassez como o tempo de trabalho. Ao invés de desregular e embaratecer o trabalho, pode ser uma ferramenta que promove a inovação e eficiência. Infelizmente, este ponto acaba por se perder no turbilhão mediático em torno do projeto, muito pouco esclarecedor e promovido pelos próprios autores.
Um ponto menos relevante do ponto de vista de distorção, mas importante de destacar, é o facto de os trabalhadores saberem que estão a ser avaliados para um estudo, cujos resultados podem influenciar a continuidade da “semana de quatro dias”. A motivação e os resultados reportados pelos trabalhadores nos inquéritos, mesmo que de forma inconsciente e marginal, correm o risco de contaminação.
FALTA DE CONTEXTO E DE ESCALA
“Semana de 4 dias não afetou lucros na maioria das empresas”, reportava o Observador, um jornal abertamente de direita. Mesmo com as ressalvas apresentadas acima, este seria um resultado impressionante. Reduzir a jornada de trabalho sem cortes salariais seria uma excelente política de paz social, mesmo apenas disponível para alguns setores de atividade. Infelizmente, esta conclusão não pode ser retirada do relatório, como os próprios investigadores alertam.
O relatório aponta que a maioria das empresas (72%) viram os seus lucros aumentar face ao ano anterior (2022). O aumento dos lucros pode ser resultado de fatores externos à experiência. No ano do estudo (2023), a economia cresceu de forma razoável (nesse ano o PIB cresceu 2,3%), o que pode ter aumentado as receitas destas empresas. A juntar a isso, a inflação relativamente alta (4,3% ano) pode ter levado a um aumento dos lucros por via do aumento de preços. Empresas semelhantes que não participaram no piloto (grupo de controlo) podem ter tido aumentos dos lucros superiores. Assim, Pedro Gomes e Rita Fontinha afirmam corretamente que “sem um grupo de controlo de outras empresas semelhantes, um aumento ou diminuição das receitas ou lucros durante o ano, não podem ter uma interpretação causal, ou seja, não são necessariamente uma consequência da semana de quatro dias.” Acrescentamos ainda que, das empresas que se mostraram interessadas e decidiram não avançar com a “semana de quatro dias”, o motivo mais citado foi não ser “altura ideal pelas condições económicas”.
Dito isto, é razoável afirmar que a política não causou um colapso financeiro nas empresas, em linha com a experiência das 35 horas na função pública e em alguns setores do privado. Mas era difícil imaginar grandes consequências financeiras numa experiência de natureza totalmente voluntária e sem contrapartidas financeiras.
Por mais completo que seja um estudo desta natureza, existem sempre as incertezas sobre os impactos (negativos e positivos) numa implementação de larga escala. Um exemplo disso são os estudos do Rendimento Basico Incondicional (RBI), uma política que se tem de tornado popular a par da “semana de quatro dias”. O RBI tem tido vários projectos piloto mundo fora (mais de uma centena só nos Estado Unidos da América). Os primeiros estudos foram apresentados como o mesmo tom triunfalista, em que a política era um sucesso em toda a linha sem perdedores (aqui e aqui). No entanto, com o passar do tempo, mais projectos e de maior escala, os resultados passaram a ser menos consensuais. Num dos mais recentes estudos feitos nos Estado Unidos da America, 2% das pessoas deixaram de trabalhar de todo depois de receberem um pagamento incondicional de mil dolares mensais (aproximadamente €890). Mesmo considerando que 2% é uma percentagem pequena da amostra, tem de ser considerado que mil dólares mensais são um montante baixo face ao custo de vida dos Estados Unidos.
A “semana de quatro dias” em Portugal, como qualquer piloto, não consegue capturar estes efeitos de escala. Uma das soluções mencionada no estudo é o recurso a softwares informáticos para melhorar a estrutura organizacional das empresas. Se essa solução exigir a aquisição generalizada de novos softwares e tecnologias importadas, esta pode ter consequências no quadro macroeconómico. Uma eventual substituição significativa de mão de obra por importações de tecnologia, e eventual outsourcing de funções, pode afetar a posição de dependência externa do país.
ATALHOS QUE PODEM ACABAR NO DIVISIONISMO
Da mesma forma que os resultados do projeto piloto não o tornam uma prioridade, denunciar os seus mitos e as suas limitações também não são um argumento contra a redução de horários, uma bandeira histórica da esquerda e do movimento sindical.
Quando alguns sectores da esquerda apresentam a “semana de 4 dias” como uma política de conciliação de classes indolor, estão a tentar criar um atalho, em que a luta política é retirada de cena. O estudo ser coordenado por Pedro Gomes, alguém que disfarça uma agenda contra os interesses dos trabalhadores nas vestes de uma agenda social dificilmente é premeditado, mas também não é um acaso do destino.
Para piorar a situação, este atalho político é ancorado numa montanha de meias verdades e notas de rodapé metodológicas. As classes dominantes e a oposição política não irão hesitar em explorar estes detalhes quando lhes for útil. O uso excessivo dos resultados do projeto piloto abre o flanco para uma política de benefícios fiscais sugerida pelos autores do mesmo estudo.
Por fim, a composição setorial dos participantes – dominada pelos serviços da economia do conhecimento – mostra como a agenda da “semana de quatro dias” pode criar clivagens e divisões dentro dos trabalhadores. De um lado, trabalhadores da “economia do conhecimento” que conseguem imaginar esta utopia indolor. Do outro, os trabalhadores da indústria, construção, restauração e outros serviços. Estes podem considerar a medida irrealista num contexto em que boa parte das prioridades laborais são o alívio do trabalho por turnos, acabar com os bancos de horas, o trabalho aos domingos e feriados, e o aumentar dos salários para compensar o aumento do custo de vida.
A história mostra que estas diferentes batalhas podem ser conciliadas, mas dificilmente será possível fazê-lo através da citação exagerada, fora de contexto, dos resultados de um projeto piloto. Muito provavelmente este é o principal motivo por detrás do cepticismo da principal central sindical Portuguesa.
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Excelente. Tratar como mera questão tecnocrática uma das maiores fontes de conflito social no capitalismo, o horário de trabalho, inevitavelmente traz consigo agendas políticas pouco simpáticas aos trabalhadores.
Embora seja importante o número de dias se trabalho por semana, acaba por ser mais importante o número de horas de trabalho por dia (que acaba por se refletir no número de horas de trabalho por semana). Não vale a pena trabalhar todos os dias para depois me sentir sobrecarregado e "com os bofes de fora" ao fim de cada dia. Logo é mais importante a questão das 35 horas por semana (8 horas por dia), até porque muitas das propostas de 4 dias de trabalho acabavam por aumentar a carga diária de trabalho.