Sexta-Feira é o Novo Sábado: Como não defender uma causa
Ao ler a obra escrita e pública do Pedro Gomes, fica claro que não podemos esperar nada de bom da sua coordenação do teste da “semana dos quatro dias”
Este texto é o primeiro de um ciclo da República dos Pijamas sobre a denominada agenda da “semana de quatro dias”. Como ponto de partida, começamos pela obra escrita de Pedro Gomes, coordenador do Projeto Piloto em Portugal.
O melhor motivo para fazer uma revisão literária é querer divulgar um livro que contribui para a sabedoria coletiva. O segundo melhor é querer atacar um livro que a contamina. Pela primeira vez na República dos Pijamas, encontramo-nos no segundo caso. O livro em questão é o “Sexta-Feira é o Novo Sábado”, da autoria de Pedro Gomes, professor universitário.
É um exercício difícil, ainda mais quando o livro traz uma proposta simpática – reduzir a semana de trabalho em um dia. Seguindo o espírito do podcast “If Books Could Kill”, entregamo-nos à tarefa.
UMA PROPOSTA SEM POLÍTICA?
No que torna o livro mais difícil de desconstruir, está o tom positivo dos primeiros capítulos. Este apresenta como ideia principal reduzir a jornada de trabalho de cinco para quatro dias. É complicado não ver tal proposta com bons olhos, e é fácil supor que boa parte dos argumentos contra a sua implementação sejam falsos ou exagerados.
É precisamente esse o caminho que Pedro Gomes faz, ao contextualizar, e corretamente, que os horários de trabalho sofreram reduções ao longo do último século. Apesar de muitos argumentos de que a redução para a semana de cinco dias laborais iria causar o caos económico, esta foi de facto implementada e generalizada pelo mundo ocidental.
Depois desta introdução, e antes de chegar aos pecados capitais do livro, são levantados alguns sinais de alerta.
O primeiro sinal é o tom abertamente a político tomado. Enquanto Gomes foca-se no debate ao nível das ideias, o combate político, neste caso geralmente conduzido por trabalhadores e as suas organizações, é eclipsado. Passando ao lado das lutas laborais, as reduções de horário do passado são aludidas como conquistas numa batalha de ideias, das quais a política esteve ausente. Quando se trata de encontrar responsáveis pela redução do horário laboral, o empresário Henry Ford, famoso pelas inovações no fabrico de automóveis, é o mais próximo que encontramos de um personagem principal. Na hora de descrever a redução de trabalho durante a era New Deal, a militância sindical pujante da altura é omitida, e a conquista é resumida à agência individual de Ford.
O segundo sinal é que, tanto ou mais do que querer mostrar que a sua proposta está correta, Gomes insiste que esta não é, e não deve ser, radical. Chega a dizer que a obra não é “um livro ideológico” e equipara a divisão política de esquerda-direita a uma rivalidade entre equipas desportivas. Nas palavras deste economista[i] “eu prefiro formar a minha opinião ao olhar para a melhor solução para um problema, não importa de onde venha”. Enquanto os comuns mortais fazem os seus posicionamentos como se fossem um adepto do Benfica a ver um jogador do Sporting a ser derrubado na grande área, Pedro Gomes olha para os factos. Jeremy Corbyn, antigo candidato trabalhista à liderança do Reino Unido, que colocou a semana de quatro dias no seu programa, é apresentado como um fardo à causa devido ao seu radicalismo. A vontade de Gomes exorcizar o confronto ideológico é tal, que ataca um político que jogou o sucesso da sua campanha eleitoral ao apostar na ideia.
O terceiro sinal de alerta é a redução de horário ser apresentada como quase indolor, ou mesmo benéfica, para todos os interesses da sociedade, um mero exercício a ser resolvido por boa tecnocracia. Gomes apazigua as preocupações de quem tema que a proposta venha a significar cortes nos salários, aumentos de preços, reduções de lucros ou outras penalizações.
Ao longo de oito capítulos, são apresentados os porquês de reduzir a jornada de trabalho para quatro dias. Desde alimentar a economia através do consumo acrescido, passando por aumentar a produtividade e reconciliar uma sociedade polarizada. Há uma ideia-chave inviolável ao longo de (quase) todo o livro: a redução do horário semanal é um ganho para toda a sociedade. Apesar desta favorecer diretamente os trabalhadores, Gomes acalma os ânimos de qualquer empresário que se possa sentir chamuscado.
Durante boa parte do livro, sempre que o caminho conduz a uma contradição, Gomes inventa uma contracurva que volta a colocar o percurso em bons termos. A argumentação segmentada permite que o economista não confronte as contradições e conflitos dos benefícios apresentados (p.ex: a medida de ser simultaneamente boa para o turismo de curta duração e para a redução da pegada carbónica). Não é de estranhar que Gomes se coloque acima da política - este coloca o sucesso da sua proposta refém da inexistência de confrontos entre interesses.
O “PROTOCOLO DE AJUSTAMENTO”
Os pontos acima poderiam ser suficientes para considerar este um mau livro, mas não o suficiente para lhe dedicarmos uma newsletter. Nem o são outros fatores, como por exemplo, uma péssima simplificação do que era a sociedade da Grécia antiga, a insistência no namedropping de economistas do passado (atrelados em curiosidades largamente disponíveis na Wikipedia), tangentes argumentativas intermináveis com opiniões sobre assuntos aleatórios, que fazem o leitor desesperar por um regresso ao tema dos quatro dias, e as anedotas sobre a vida pessoal do autor, que só reduzem a estima que se tenha por este. Poderíamos considerar o livro aborrecido até este ponto, mas o autor não se conforma com deixar o leitor apático.
O clímax do livro chega nas secções finais. Depois de Pedro Gomes tentar convencer o leitor da irresistibilidade da sua proposta, introduz o seu “protocolo de ajustamento”. O autor questiona-se com “como é que as empresas podem ajustar-se, assim, sem cortar os salários em 20% [a mesma proporção que a redução de horário]?”.
Para Gomes a resposta é simples e sinistra “se as empresas anteciparem a mudança, podem restringir os aumentos salariais durante um período de ajustamento” e prossegue com “os salários no Reino Unido cresceram nos seis anos anteriores à pandemia a uma taxa de 4 por cento por ano. Se as empresas e os trabalhadores concordarem em não subir os salários no ano antes e depois do ajustamento, isto resolveria 8 pontos percentuais, dos 20 necessários para o ajustamento” - ou seja, não aumentar os salários quando tal era suposto acontecer, para depois compensar o encurtamento do horário laboral. Acrescenta ainda ”este ajustamento simples diz-nos porque os ‘quatro dias de trabalho sem perda de salário’ é um slogan (vazio) mais eficaz”. O aborrecimento para com a obra de Gomes rapidamente transforma-se em estupefação.
Depois de prometer que a sua proposta será indolor, positiva para toda a economia, sem viés ideológicos e baseada no conhecimento dos melhores economistas da história, Gomes propõe fazer o ajustamento através de, nem mais nem menos, do que cortes salariais (mal) dissimulados. Para comprovar os méritos da sua proposta, este conclui que apesar de ser um slogan vazio, é eficaz - para que fim, podemos apenas supor.
As sugestões do autor não se ficam por tentar ludibriar os trabalhadores. Em algumas situações “se os trabalhadores trabalharem mais uma hora por dia nos restantes quatro dias, já compensaria metade dos 20 por cento do ajustamento em salários” e ainda “alguma compensação adicional poderia vir de reduzir férias”. Para outras indústrias “parte do ajustamento poderia ser refletido em preços mais altos” e chega mesmo a ironizar os efeitos da inflação com “alguém que vai a restaurante de luxo importará-se com £16 extra numa conta de £200, ou um estudante iria ficar chateado com um aumento de 40 cêntimos na sua sandes de £5?”.
Quando se fala de redução de lucros devido a menos horas trabalhadas, Gomes ameniza a situação utilizando a Apple, um exemplo que qualquer economista deveria saber que a fatura salarial (dos trabalhadores que emprega diretamente) representa uma fatia reduzida de todos os custos. Para rematar, este economista ainda alude a um aumento da idade de reforma: “considere um trabalhador com 25 anos no começo da sua carreira, esperando reformar-se aos 65 anos. Se juntarmos os dias em que este não vai trabalhar ... reformar-se-ia aos 75 anos”.
Procurando o Henry Ford moderno, o autor recorre ao bilionário Mexicano Carlos Slim, que alavancou a sua fortuna na privatização da empresa de telecomunicações estatal Mexicana, para citar um novo modelo de trabalho, de três dias de trabalho semanal, com o inconveniente de serem jornadas de 12 horas diárias. Em outras passagens do livro, sugere que trabalhadores usem o dia extra de descanso para ter segundos empregos, sob a suposta mais valia de os tornar menos dependentes de apenas um patrão. A proposta que se dizia ser indolor rapidamente passa a uma imolação, ignorando por completo a participação dos trabalhadores no seu menu de “protocolos de ajustamento”.
MAIS DO QUE UM MERO ECONOMISTA
Depois de prometer uma redução da semana de trabalho indolor nas primeiras 20 páginas e de nos aborrecer durante outras 160, Pedro Gomes assassina, sem cerimónias, a sua proposta. No final fica apenas uma obra que faz um desserviço a quem luta e lutou por condições dignas de trabalho.
Enquanto poderíamos só achar Pedro Gomes um economista numa faculdade do Reino Unido que publicou um péssimo livro, o assunto é mais sério. Gomes é o coordenador do projeto-piloto da semana de quatro dias conduzido pelo Estado português, pela mão do executivo de António Costa.
No início do livro, Gomes diz que o que vai propor não é uma “magia-negra económica” e tem razão. Apesar de todo o bravado intelectual, aos espremermos o que propõe, sobra apenas um exercício de contabilidade duvidoso emaranhado em histórias sobre os percursos de economistas do passado e más anedotas.
Ao ler o livro, fica claro que devemos olhar para Gomes como um veículo de medidas como a redução de salários, aumento da idade da reforma e aumento do horário diário - não de transformar a sexta-feira no novo sábado.
A obra de Pedro Gomes acaba por explicar a falta de “entusiasmo dos sindicatos” com o projeto piloto que ele coordena. Se os sindicatos são os representantes e mediadores históricos dos interesses dos trabalhadores, Pedro Gomes pretende substituir este papel pelo ilusionismo, alegadamente desprendido de amarras ideológicas.
Em breve vamos voltar à “semana dos quatro dias”, ao discutir o mito fundador por detrás desta: o milagre do teste Islandês.
[i] Traduções livres a partir da versão do livro em língua inglesa. Em português o livro encontra-se com o nome Sexta-Feira é o Novo Sábado.
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