Portugal deve desenhar um plano para fabricar carros eléctricos chineses
A vontade da UE em aumentar tarifas sobre carros chineses é uma manobra de desespero, após uma década perdida com planos de austeridade. Portugal pode contrariar este falhanço.
CICLO DE UM NOVO MODELO DE DESENVOLVIMENTO
Este texto arranca numa nova série de textos focados em debater alternativas para um novo modelo de desenvolvimento nacional. Para saberes mais sobre o nosso objetivo com esta série, consulta a ligação abaixo.
Entendemos que este é um projeto ambicioso, com debates que exigem muito mais do que a equipa dos Pijamas sabe. Assim, encorajamos os nossos leitores a utilizarem a caixa de comentários para contribuir para os tópicos que abrimos.
O MILAGRE CHINÊS MOVIDO A BATERIAS
O crescimento exponencial da indústria de carros eléctricos chineses é sem dúvida um dos maiores desenvolvimentos industriais das últimas décadas. Após anos de promessas de vir a destronar os gigantes automóveis europeus e norte-americanos da parte da Tesla, a empresa de Elon Musk foi ultrapassada pela BYD, empresa chinesa relativamente desconhecida na Europa. Em 2023, a BYD representava 17% das vendas globais de carros eléctricos (o top 10 contava com outras três empresas chinesas, duas delas com uma quota de mercado de 5%, o equivalente à Volkswagen) e com uma penetração em mercados do chamado norte-global, como no caso da Nova Zelândia.
A empresa fundada em 2003 no ramo das baterias a lítio, foi-se desenvolvendo e tornou-se altamente especializada na produção de veículos eléctricos relativamente baratos (em Portugal, com carros abaixo dos 30.000 euros) através de um modelo de produção altamente integrado (detendo minas e fábricas de baterias). Os paralelos com o modelo fordista não passaram despercebidos dos mais atentos analistas ocidentais (aqui e aqui). Dada esta superioridade tecnológica e competitiva, a administração Biden anunciou recentemente que iria impor elevadíssimas taxas de importação aos carros chineses, numa tentativa de salvar o seu plano de promover indústrias nacionais neste setor emergente. Semanas mais tarde, a União Europeia - como em muitas outras matérias - seguiu as pegadas da administração Biden.
O surgimento da BYD como a principal empresa de carros elétricos do mercado mundial e relativa surpresa por parte do ocidente não pode ser explicado por meras estratégias empresariais. Este fenómeno tem de ser analisado como o resultado de diferentes políticas industriais na China, Estados Unidos e principalmente na Europa.
No pós-crise financeira, a Europa adotou uma política de aprofundamento da competição interna através da redução dos custos de trabalho e corte de direitos sociais (algo abertamente reconhecido por Mario Draghi, antigo presidente do BCE e primeiro-ministro italiano). A austeridade orçamental, em diferentes graus de intensidade, e as reformas laborais seriam a forma de manter a Europa competitiva face à China e outros blocos económicos.
Para os pensadores do ocidente, as interpretações sobre a China baseavam-se numa imagem em que milhões de formigas trabalhadoras, que coagidas pelo sistema repressivo, trabalhavam mais horas e por menos dinheiro do que os ocidentais, habituados a garantias e privilégios. A despesa pública em infraestruturas e inovação, o papel de uma política energética na competitividade industrial, eram vistas como as receitas ultrapassadas de um passado longínquo.
Ao contrário desta visão centrada nos custos do trabalho, a mão de obra (cada vez menos) barata na China não é suficiente para explicar o surgimento da BYD, até porque empresas ocidentais têm beneficiado dessa mesma mão de obra durante décadas. Enquanto a BYD e outras empresas participavam ativamente nas estratégias de modernização tecnológica (alinhada com objetivos políticos e sociais) do governo chinês, como o projeto piloto do governo para fabricar autocarros eléctricos (2009) e subsequente processo de internacionalização para países como o Uruguai (2012), as empresas e líderes do norte global desvalorizavam o progresso sínico. Em 2011, Elon Musk da Tesla gozava com a aparência dos carros da BYD; e a Volkswagen operava, entre 2009 e 2015, um esquema de fraudar emissor poluentes dos seus veículos, que não era mais que uma tentativa de negar a realidade cada vez mais competitiva.
No ramo das telecomunicações, os Estados Unidos proibiram a chinesa Huawei de participar em leilões de 5G. Com paralelos com os carros eléctricos, vários países europeus (Portugal incluído) seguiram as diretivas dos Estados Unidos, mas sem desenvolver um plano de aceleração tecnológica que garantisse a soberania nesta área. No entretanto, a Huawei sobreviveu ao cerco e emergiu como uma empresa ainda mais avançada do ponto de vista tecnológico.
Em vez de uma análise séria e objetiva, que permitisse à Europa montar uma estratégia industrial competitiva, o progresso chinês foi constantemente desvalorizado e negado. Ao mesmo tempo que a Volkswagen fraudava as suas emissões, o pensamento hegemónico ocidental, encapsulado na revista The Economist, apresentava diversas teses em torno de um iminente colapso económico: a China falsifica estatísticas; a política de filho único tornou o país inviável; o desenvolvimento tem como base o roubo de propriedade intelectual; os governos locais corruptos alimentam uma bolha imobiliária que irá levar a uma estagnação comparável ao Japão; a reabertura da pandemia iria causar milhões de mortos. No plano português, Luís Campos e Cunha - economista da Nova SBE e ministro das finanças de José Socrates durante quatro meses - era uma espécie de tradutor informal da revista The Economist; e Medina Carreira, no seu habitual pessimismo pouco rigoroso, afirmava que “os chineses copiam tudo tudo o que os outros inventam”.
Durante esta silenciosa revolução tecnológica chinesa, a Europa debatia temas como a entrada da Uber - um instrumento essencialmente de precarização laboral - e outras aplicações de serviços de baixo valor como se se tratassem das inovações mais importantes do século XXI.
A análise aos carros elétricos assume contornos parecidos em indústrias de alta inovação como os Microchips. Dado que nenhuma das previsões de colapso chinês se materializou e a Uber e a revolução das Apps não tornaram a economias ocidentais dinâmicas e prosperas, sobrou o protecionismo tardio, na forma de impostos a produtos chineses importados, como estratégia de último recurso na disputa pela hegemonia tecnológica.
DIVERSIFICAR A DEPENDÊNCIA
A falta de investimento em tecnologia e inovação na Europa, aliado às fragilidades ligadas à falta de soberania energética foram tornadas evidentes na guerra da Ucrânia e colocam sérias questões sobre um alinhamento português totalmente acrítico face à política económica e industrial do centro da Europa. Neste contexto, ancorado em novas vantagens competitivas nacionais, como a produção de energética renovável (ou mesmo a presença de algum lítio em solo nacional), aprofundar as relações económicas com a China poderá ser uma oportunidade para Portugal tentar contornar o iminente suicídio industrial do centro da Europa (normalizado pelo Bundesbank).
Devido a uma combinação de factores históricos, como o processo de entrega de Macau, e a vaga de privatizações da Troika, Portugal tem estreitas relações económicas e diplomáticas com a China. Os governos nacionais têm evitado a hostilidade característica de governos como o alemão - agora encabeçada pelos Verdes alemães que chefiam os negócios estrangeiros - e um boicote de tecnologias e bens chineses (apesar do caso do 5G), muito para o desagrado dos nossos tecnocratas mais americanizados. Por exemplo, o Metro do Porto é um comprador de comboios chineses e a mesma empresa, no concurso de compra de comboios da CP, mostrou-se disponível a instalar uma fábrica, em Matosinhos.
Na linha de pensamento em que o anterior governo procurava uma Autoeuropa ferroviária para o norte do país (na lógica dos clusters de componentes eólicas em Viana do Castelo e Aveiro), Portugal deve repensar a dependência da indústria nacional face a uma empresa como a Volkswagen, num contexto em que a indústria alemã mostra várias fragilidades. Diversificar o sector em termos tecnológicos e geográficos, com a atração da BYD (ou outro fabricante chinês), é uma proposta ambiciosa. No entanto, face à necessidade de um modelo de desenvolvimento alternativo, é um tipo de proposta que precisa de estar no centro da discussão económica nacional. Tal feito não tornaria Portugal altamente soberano, do ponto de vista económico, mas seria um passo para ganhar margem de manobra através da diversificação da sua dependência externa.
Portugal não seria o primeiro país a ponderar tal estratégia. O governo de Lula da Silva e o governo do seu partido no Estado da Bahia, têm trabalhado para receber a BYD no Nordeste do Brasil, simbolicamente localizada numa antiga fábrica da Ford. O México, país altamente integrado e dependente da indústria dos Estados Unidos - uma relação com paralelos com a de Portugal e os países de centro da União Europeia - tem sido capaz de aproveitar a tensão entre EUA e China para absorver investimento produtivo chinês, incluindo da BYD.
Além disso, a indústria automóvel chinesa já tem presença no coração da União Europeia, especificamente com a DR Automobiles em Itália e a própria BYD na Hungria. Para padrões europeus, Itália tem relações amigáveis com a China, tendo sido o primeiro país do G7 a entrar no grande ambição chinesa da “nova rota da seda”, em 2019. A recente deteriorar das relações Itália-China abrem uma oportunidade para Portugal.
Se até agora a relação económica entre Portugal e China foi dominada pela venda trágica de empresas estratégicas, como a EDP e Fidelidade, o desafio é tornar essas relações em oportunidades de absorver investimento produtivo emergente, de alto valor tecnológico. A ligação marítima entre Portugal e o Nordeste do Brasil, onde a empresa ja tem operações, pode ser uma vantagem a explorar.
O caminho aqui proposto não é desafiante apenas do ponto de visto económico - como também o é politicamente. Devemos esperar que uma estratégia de aproximação à China, de forma autónoma por parte de Portugal, seja combatida (e talvez sabotada) pela Alemanha e outros poderes do centro da Europa. Este risco ficou claro no livro de memórias de Yanis Varoufakis, antigo Ministro das Finanças grego, que narra a ingerência de Berlim-Bruxelas nas negociações do governo grego com a China (governo e empresas públicas) em torno da privatização do Porto do Pireu.
PLANEAR, PLANEAR E PLANEAR
A ideia de trazer “uma nova Autoeuropa” está longe de ser uma novidade no debate nacional. Apesar de ser um slogan recorrente, os instrumentos a mobilizar para tal feito raramente são discutidos. À direita, a ferramenta apresentada costuma ser a redução da carga fiscal, usando a Irlanda como exemplo. Num mundo de cadeias de valor globalizadas e complexas, onde o capital é suficientemente móvel para evitar vários impostos, borlas fiscais são ineficazes para atrair grandes investimentos com capacidade de transformação económica e social.
A ambição de expandir o setor automóvel em Portugal não é nova. Um movimento aspirava a trazer uma fábrica da Tesla através da dinâmica nas redes sociais. Para legitimar a nova corrida à mineração de lítio em Portugal, é acenado um horizonte em que a proximidade das cadeias de abastecimento espolete magicamente uma indústria de carros elétricos no país. Casos como o da China mostram que hashtags e fé cega não são o caminho para o sucesso industrial. É numa política industrial eficaz que devemos depositar as esperanças.
Para tornar Portugal realmente atrativo, o Estado português tem de ser capaz de casar vantagens emergentes, como o potencial de energias limpas e baratas (num contexto em que a UE planeia implementar impostos sob o carbono indiretamente importado), com um planeamento económico sério e coerente. Mais do que saber quantos impostos vai pagar, um gigante industrial procura saber como pode receber as matérias primas e os componentes que vai transformar em produtos exportáveis. Para isso, a existência de infraestruturas (portos, estradas e ferrovias) e de condições para ter trabalhadores disponíveis (qualificações e habitação) são chave.
A ideia de criar um polo industrial em Sines, em 1971, com os seus sucessos e fracassos, é uma referência útil para desenhar uma estratégia de atracção de uma nova Autoeuropa de carros eléctricos. Dadas as condições naturais favoráveis para um porto de águas profundas, foram selecionadas um conjunto de outras indústrias a serem desenvolvidas em seu redor, como siderurgia, refinaria e a indústria automóvel (esta acabou por não se materializar, após tentativas na década de 1980). Apesar dos reveses que o projeto sofreu, em parte por causa do choque petrolífero dos anos 70, o seu papel transformador é inegável. O Alentejo Litoral, região economicamente centrada em Sines, é a mais produtiva de todo o país depois da Área Metropolitana de Lisboa; e o Porto de Sines tornou-se um porto de dimensão significativa no contexto europeu.
Dado o potencial transformador do plano numa área remota e rural, foi necessário expandir o parque habitacional, através da construção de uma nova cidade de raíz (Vila Nova de Santo André), inspirada nos projectos de novas cidades britânicas. A cidade e o polo industrial de Sines não atingiram a dimensão ambicionada, mas a capacidade habitacional instalada em Santo André foi útil para receber famílias de retornados no pós 25 de Abril. Mesmo sem nunca ter chegado à dimensão planeada originalmente, uma cidade para 100 mil habitantes, Santo André mostra que a eventual expansão industrial de Sines - como ambicionado com o projeto dos centros de dados - exige uma política urbana ambiciosa e alinhada com esses objetivos.
Usando Sines como hipotética localização preferencial para uma nova Autoeuropa de carros eléctricos, o Estado português teria de ser capaz de apresentar um plano detalhado e credível, que incluísse a localização da fábrica. Isto incluiria garantias de que esta estaria ligada (estrada e comboio) ao Porto de Sines e a Espanha; ligações rápidas e frequentes a Lisboa, Madrid e ao futuro aeroporto de Lisboa; e um plano urbano para acomodar novos trabalhadores, que tenha em conta habitação pública, redes de transportes públicos e serviços públicos como saúde e educação (p.ex: ensino especializados virado para as indústrias instaladas).
Em suma, um nível de transformação regional que não é visto desde o projeto da barragem do Alqueva, e que seria o oposto do imobilismo das últimas décadas em torno de projetos estruturais como o aeroporto e a ferrovia de alta velocidade.
O exemplo de Sines não deve ser lido como o “lugar certo” para uma indústria desta natureza, mas para retratar o nível de transformação e planemanento necessário. Certamente existem argumentos fortes de tentar atrair uma indústria desta natureza para perto de clusters existentes, como a Autoeuropa em Palmela, ou ambicionar criar um consórcio com empresas nacionais (p.ex: fábrica de autocarros da Salvador Caetano em Vila Nova de Gaia).
Naturalmente que uma estratégia desta dimensão corre o risco de criar tensões (p.ex: ambientais e com as populações locais), ou mesmo casos de corrupção. É exatamente por causa desses riscos que é essencial debater de forma democrática e prévia que modelo de desenvolvimento queremos, o que ele requer e quais os seus riscos. Um processo que constraste com o atual modelo de expansão agrícola e turística do sudoeste Alentejano em piloto-automático, que explora migrantes, sobre-explora e destrói recursos hídricos, enquanto privatiza praias pela calada.
NOTAS
Para os interessados no crescimento do setor automóvel e tecnológico da China, recomendamos os seguintes conteúdos.
America’s assassination attempt on Huawei is backfiring - The Economist, artigo (inglês).
The Electric Vehicle Developmental State, Paolo Gerbaudo - artigo (inglês).
How BYD is Upending the EV Market, com Paolo Gerbaudo - Tech Won't Save Us, audio (inglês).
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas, fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
Se gostaste do que leste, apoia-nos. É simples e não te vai custar um cêntimo: subscreve e partilha a nossa newsletter e os nossos artigos. Esse é o maior apoio que nos podes dar.
Não faria mais sentido projetar a criação de um cluster industrial integrado virado para os transportes públicos urbanos? É bastante provável que venha a haver um crescimento significativo da procura mundial de soluções nessa área, até tendo em conta o aumento da população nos grandes centros urbanos do Sul Global. https://www.sustainable-bus.com/electric-bus/electric-bus-public-transport/
Estou a escrever um artigo sobre a história do projeto da Área de Sines, caso vos interesse (dá-me sempre jeito receber comentários). Obrigado por mais um excelente ensaio.