O milagre chinês deveu-se ao planeamento estratégico
O livro 'Como a China Escapou da Terapia de Choque' supera debates estéreis sobre o sucesso económico chinês e o planeamento na economia
A ideia de uma nova Guerra Fria entre Estados Unidos da América e China tem-se popularizado nos últimos anos. Por detrás desta ideia está o crescimento do poder político, económico e militar da China, que veio substituir a União Soviética, três décadas depois da sua dissolução.
Tanto a queda do poderio sovietico como o crescimento chinês têm origem na década de 1980. Ambos os países passaram por um período de transformações políticas e económicas, com métodos e resultados opostos. Por um lado, a Rússia, inicialmente liderando a União Soviética, implementou uma liberalização agressiva da sua economia, legitimada pelas reformas políticas e eleições abertas, que levou a um colapso social. Este processo foi apelidado por Naomi Klein de terapia de choque. Por outro lado, a China optou por reformar o seu modelo económico, de forma gradual, sempre com o objetivo de preservar o seu sistema político.
A terapia de choque prometia dores imediatas a troco de prosperidade futura, mas a realidade não suporta tal promessa. Em 1991, a Rússia e a China tinham sensivelmente a mesma dimensão económica (PIB). Desde então, a economia chinesa, medida em dólares, tornou-se 14 vezes maior, e a economia russa viveu décadas de relativa estagnação. A China passou de uma relação de dependência tecnológica face aos Soviéticos, com efeitos nefastos após a ruptura sino-soviética, para uma posição dominante. Hoje a China exporta bens tecnologicamente avançados, em troca de petróleo e outras matérias-primas russas.
Este é o ponto de partida para a leitura do livro “Como a China escapou da terapia de choque”, de Isabella Weber. Nesta obra Weber analisa em detalhe o “período de reforma” chinês, focando-se nos debates internos, e como estes se refletiram por um caminho diferente do Russo/Soviético (e outros).
Dentro das reformas liberalizantes da economia, a autora foca-se especificamente na desregulação de preços. Para Weber, esta componente é a verdadeira “terapia de choque” do pacote reformas neoliberais implementadas no bloco de leste. A velocidade da sua implementação foi essencial.
O DEBATE DE COMO REFORMAR
No Ocidente, em especial nos círculos neoliberais, o milagre económico chinês é resumido à liberalização da economia pela liderança de Deng Xiaoping. A percepção deste sucesso é de tal forma dominante, que Tony Blair - político liberalizador dentro de uma organização de esquerda - se inspirou na linguagem política de Deng Xiaoping. Contudo, o livro demonstra que a liberalização da economia chinesa foi tudo menos um processo simples, linear, liderado por um homem só, e incontestado internamente.
Na segunda metade da década de 70, após a morte de Mao Tsé-Tung e outras figuras poderosas do Partido Comunista China (PCC), a necessidade de reformar a economia tornou-se um consenso dentro do Partido. O debate não era sobre se a China deveria liberalizar a sua economia, mas como deveria ser implementado um pacote de reformas liberalizantes. A economia vivia décadas de preços regulados, apoiados em subsídios e compras estatais, que causavam uma dificuldade de redirecionar a economia chinesa.
O debate dividiu-se essencialmente em dois campos: os defensores da terapia de choque e os defensores do experimentalismo gradual. Para colocar o mercado a funcionar, o primeiro grupo colocava como primeiro passo a desregulação total e imediata dos preços . Esta causaria um choque inflacionário no imediato que deveria ser equilibrado com austeridade. Após o choque de preços, viria um conjunto de reformas mais lentas e graduais, em torno dos direitos de propriedade, da promoção da concorrência e do sistema de crédito. De grosso modo, esta foi a receita aplicada na União Soviética e Polónia.
O grupo dos gradualistas experimentais defendia um método de liberalização parcial dos preços, com sistemas de preços duais, e dando prioridade ao relaxamento de preços nos bens não essenciais, em que as forças de mercado poderiam levar a uma queda de preços. Este campo entendia que nem todos os preços são iguais (p.ex. carvão versus televisões), articulando essa visão com experiências políticas com milénios na China. Segundo estes, a desregulação de matérias primas como o carvão e o aço - devido ao seu contributo na formação de outros preços - devem ser feitas de forma especialmente cautelosa e gradual. Estes gradualistas experimentais não representam um campo ideológico coeso. Eram um corpo heterogéneo, com divergências sobre as formas de reformar a economia chinesa, mas que se opunha fortemente à terapia de choque.
Weber demonstra que estas tensões iam muito além de uma discussão sobre o ritmo da desregulação de preços, mas um embate entre abordagens divergentes de como fazer política económica.
A terapia de choque era um fim por si só, maioritariamente ancorada em teoria económica ortodoxa, com exemplos e contraexemplos trazidos do estrangeiro. O campo do gradualismo experimental baseava-se em ter uma abordagem menos determinista, mais flexível e reativa face às suas próprias reformas, de forma a manter o sistema estável, sem saber exatamente qual o equilíbrio final do processo. Um método inspirado no experimentalismo económico do período da guerra civil terminada na década de 1940, e até mesmo em práticas políticas da China antiga como os monopólios estatais de sal.
Weber usa o jogo de jenga para marcar as diferenças de abordagem: os terapistas de choque queriam derrubar a torre e reconstruí-la de novo; os gradualistas experimentais queriam reparar a torre cuidadosamente, peça a peça, sem derrubá-la.
Este tipo de abordagem experimental tinha sido aplicada pelo Economista John Kenneth Galbraith, durante a Segunda Guerra Mundial, período em que os Estado Unidos da América recorreram amplamente ao controlo de preços. Galbraith iniciou o combate à inflação de guerra com um plano de regulação previamente definido. Ao ver-se incapaz de implementar a estratégia delineada, Galbraith passou para uma abordagem flexível e experimental, em que existe uma constante interação entre a teoria e a prática.
O sucesso da correção política de Galbraith é incontestável: ao contrário da Primeira Guerra Mundial, os Estado Unidos da América foram capazes de expandir a sua capacidade produtiva enquanto fixavam os preços.
OS MITOS VINDOS DO OCIDENTE
A tese da terapia de choque tinha aliados de peso fora da China. Milton Friedman, uma das principais figuras do neoliberalismo mundial, e um conjunto de economistas exilados do bloco de leste aconselhavam o governo chinês a seguir este caminho.
Friedman usava recorrentemente como exemplo a liberalização dos preços na Alemanha Ocidental em 1948 (o “milagre de Erhard”), um processo que supostamente tinha sido “muito simples”, com resultados imediatos. Os economistas de leste, com algum grau de divergência nos diagnósticos, diziam que o gradualismo tinha sido tentado na Hungria e na Jugoslávia sem sucesso. Alguns, nas entrelinhas, defendiam que a reforma económica seria impossível sem uma reforma política.
Ao ler-se o livro, fica-se com a sensação que muitos dos diagnósticos dos economistas exilados eram mais uma oposição ao sistema político socialista, do que pareceres económicos que ambicionavam uma transformação económica estável, dentro do regime e regras do Partido Comunista chinês.
O caso mais paradigmático é o de János Kornai, um forte defensor da terapia de choque, cujo detalhado trabalho intelectual em torno das economias socialistas contradiz a sua própria prescrição. Apesar de recomendar um choque de preços para que os agentes económicos tivessem incentivos de mercado, o economista húngaro defendia (noutras obras) que as empresas socialistas não seriam capazes de reagir a incentivos de preços devido ao modo de funcionamento das economias planificadas.
A UM PASSO DA TERAPIA DE CHOQUE
O livro de Weber mostra que na década de 80 existiu a possibilidade real de abandonar o gradualismo experimental e abraçar a terapia de choque. Ironia do destino, essa possibilidade foi descartada durante a visita de uma comitiva chinesa à Hungria e à Jugoslávia (1986). Estes países eram frequentemente apresentados como a prova de que o reformismo gradual de preços não era possível dentro de uma economia planificada.
A comitiva de economistas observou que, tal como na China, estes países tiveram sucesso no início do seu processo de liberalização gradual e parcial de preços. O seu falhanço deveu-se a não terem empresas e mercados suficientemente desenvolvidos, capazes de reagir aos novos incentivos resultantes da desregulação parcial de preços. Esta ideia está em linha com Wang Xiaoqiang, um influente intelectual no período de reforma que fazia parte da comitiva. Wang defendia que a liberalização total de preços, nas condições vigentes na China, estaria condenada a falhar.
Segundo o Wang, uma economia planificada não seria capaz de reagir a mudanças abruptas de preços da mesma forma que uma economia de mercado. Sem a capacidade das empresas de ditarem salários, contratar e despedir trabalhadores, e com decisões de investimento centralizadas, a terapia de choque traria o caos, sem promover uma nova composição e organização económica. Por isso, outras alterações da estrutura institucional-económica – direitos de propriedade e regras de operar empresas públicas – seriam uma peça fundamental do xadrez gradualista. Sem estas, a China arriscava-se a sofrer o destino húngaro e jugoslavo.
Na mesma visita, a comitiva foi desaconselhada a fazer uma liberalização rápida de preços por um quadro responsável pela desregulação de preços na Alemanha Ocidental (o tal milagre de Erhard) durante o pós-guerra. Nessa conversa, a comitiva descobriu que o milagre de desregulação de preços, frequentemente citado por Friedman, não foi nem simples, nem liberal nem milagroso. O suposto milagre de Erhard tinha sido mais gradual e intervencionista do que aquilo que o guru neoliberal admitia em público. A Alemanha Ocidental manteve a regulação de preços e racionamento de bens estratégicos como o carvão durante décadas. Este facto confirmava a tese que nem todos os preços são iguais e que a desregulação dos preços de materias primas e energia, usadas em quase todos os produtos, foi um processo delicado na Alemanha Ocidental.
Ao entenderem em detalhe estas três experiências, a comitiva fica convencida de que a desregulação total e imediata de preços seria um falhanço que colocava riscos ao próprio sistema político. A comitiva não perdeu tempo e enviou imediatamente um telegrama ao primeiro-ministro chinês a avisar dos riscos desta abordagem. Este episódio marca uma das principais vitórias dos gradualistas experimentais sob a terapia de choque; a urgência sentida pela comitiva na Europa torna evidente que a terapia de choque era uma possibilidade bem real em 1986.
OS CUSTOS E RECEIOS DO MINI CHOQUE
O PCC entende que a sua subida ao poder esteve ligada à incapacidade da República liderada por Chiang Kai-shek em controlar a inflação; e a legitimidade dos comunistas veio em parte do seu sucesso em estabilizar preços, tanto durante a guerra civil como nos primeiros anos de governo. Esta relação material e histórica resume a tensão presente no PCC na década de 1970 e 1980.
O PCC não está disposto a fazer uma abertura e reforma política, uma espécie de Glasnost chinesa, e por isso sabe que a sua legitimidade depende de melhorar, de forma estável, as condições materiais da população. A terapia de choque russa veio junto de uma reforma política, que de certa forma legitimou o choque, mesmo que antipopular.
No capítulo final do livro, Weber mostra que mesmo a China passou por períodos com características de terapia de choque. Em 1988, foi tentada uma primeira liberalização que levou a um choque inflacionário (ainda assim nada comparável com a hiperinflação russa). Seguiu-se um passo atrás nesta política.
Aos olhos dos entrevistados por Weber, as tensões em torno de Tiananmen Square (1989) são consequência deste passo final da desregulação. Ou seja, os protestos foram liderados por questões materiais e não por exigências em torno de uma reforma política. Este não é um mero diagnóstico em retrospectiva, visto que que Zhao Ziyang (Secretário do PCC neste período) defendeu a mudança da lei de segurança pública antes do choque de preços de 1988, de forma a garantir estabilidade política face a potenciais protestos.
As tensões narradas por Weber, entre estabilidade política e económica, enquadram-se na a estrutura político-institucional definida por Fritz Bartel, na obra Triumph of Broken Promises, que narra as diferenças e semelhanças entre a viragem a neoliberal no ocidente e a queda do bloco comunista no leste europeu. Ao contrário desses dois campos, a China traçou o seu próprio caminho.
Acima de tudo, “Como a China escapou da terapia de choque” é um livro obrigatório para qualquer pessoa interessada na implementação de políticas económicas, independentemente do seu campo ideológico.
A história apresentada por Weber mostra que, apesar dos constrangimentos existentes a cada momento, a história não é determinística. Neste caso, decisões diferentes entre os círculos económicos e políticos chineses poderiam ter resultado numa outra evolução da China (e do mundo). Com o Fim da História, o filósofo e economista político Francis Fukuyama tentou resumir o futuro da humanidade aos mercados e à democracia liberal. Weber apresenta um contraexemplo com um modelo de desenvolvimento alternativo à hegemonia neoliberal.
A economia chinesa foi liberalizada, dando mais espaço aos mercados, mas sem que o Estado tenha abdicado de funções de planeamento estratégico. Ao guiar a economia, o Estado chinês chega hoje como pioneiro tecnológico e peça chave em vários setores. Indo além dos texteis e manufaturas básicas, a China é peça chave na descarbonização. Esta China domina por completo o mercado de paineis solares e a chinesa BYD tornou-se a maior vendedora de carros eléctricos no mundo. Nos semicondutores (microchips), oferece um desafio sério à hegemonia centrada nos EUA. Caso contrário, administração Biden não tinha anunciado pesadas tarifas nas importações de semicondutores, carros eléctricos e painéis solares.
O modelo de chinês surge como um modelo de desenvolvimento atrativo, comparado com o Consenso de Washington, para o Sul Global. Simultaneamente, ele torna evidente as fragilidades do neoliberalismo no Norte Global, tendo sido claramente uma força que pressionou a administração Biden a adoptar uma postura mais intervencionista nos seus pacotes económicos (IRA, CHIPS Act e tarifas). Dificilmente este rumo teria sido possível se a China tivesse caído na terapia de choque.
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