Preparar a saída do euro é a procura de um modelo de desenvolvimento soberano
Os debates da integração europeia vão bem além de ser pró ou contra a Europa. Uma agenda soberanista passa por boas políticas em áreas como transportes, uso de solos, energia e produção alimentar
No âmbito das eleições europeias, a CDU organizou uma sessão pública sobre a economia portuguesa na União Europeia. Num painel que maioritariamente partilhou o diagnóstico que o processo integração europeia, e em especial o Euro, foram danosos para o desenvolvimento nacional, foi possível encontrar discordâncias sobre a capacidade de transformar a economia nacional dentro destes constrangimentos. Ricardo Paes Mamede e Paulo Coimbra, ambos economistas e autores do blogue Ladrões de Bicicletas, representaram os polos opostos.
Por um lado, Ricardo Paes Mamede argumentou pelo que podemos classificar de euroceticismo suave. Apesar de considerar o processo de integração negativo, o economista argumentou que a esquerda não deve cair na armadilha de achar que não pode fazer reformas progressistas. Seguindo o raciocínio, o economista também afirmou que colocar as culpas na União Europeia tem sido uma prática de forças neoliberais que não querem ser responsabilizadas pelas suas próprias políticas. O famoso “a União Europeia obriga” que justificou políticas como as privatizações.
Segundo Pais Mamede, sem moeda própria para fazer uma política cambial nem um Banco Central para fixar juros, Portugal deve aproveitar o curto espaço de manobra que tem com os fundos de coesão, investimento em investigação e desenvolvimento e as compras públicas para delinear e executar uma política industrial. Sem dar exemplos concretos, talvez por estar numa sessão da coligação liderada pelo PCP, a estratégia de usar a compra de comboios da CP para atrair uma fábrica para território nacional, pela mão de Pedro Nuno Santos, está em linha com a estratégia apontada por Paes Mamede.
Dito isso, Paes Mamede reforçou o realismo reformista da sua proposta ao afirmar que estes instrumentos não nos permitem ter uma verdadeira estratégia industrial (como aquela que foi experimentada na Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e mesmo no Brasil em certos períodos históricos). Do ponto de vista de grau transformativo, podemos arriscar em dizer que o economista não acredita que uma “política industrial coxa” nos consiga levar ao pelotão da frente europeu, mas talvez a uma periferia mais sofisticada, talvez comparável a Espanha.
Por outro lado, o economista Paulo Coimbra, num eurocepticismo mais duro, afirmou que a soberania funciona como um espectro, onde os Estados Unidos estão no topo da hierarquia, devido ao seu vasto poderio económico e militar, e que depende de um equilíbrio externo. Indo além de uma discussão num estrito sentido económico, apontou que fatores como o poder militar e industrial são necessários para obter algum grau de soberania e logo para executar políticas económicas. Para isso, Portugal necessitava de um novo padrão de especialização e de mecanismos de controlo económico-financeiro, considerados como impossíveis no atual quadro europeu.
Enquanto partilhamos a visão de Paes Mamede, quando este aponta para os perigos de não se disputar opções porque “não se pode fazer nada dentro da UE”, o diagnóstico de Paulo Coimbra levanta um ponto essencial sobre o equilíbrio externo, e o controlo de importações, que não são diretamente confrontadas nas prescrições de Paes Mamede. Felizmente, talvez haja mais espaço de manobra nesta vertente do que aquela que a disciplina económica tende a imaginar.
Apesar de o debate ser focado no papel de Portugal no espaço europeu, os temas que rasgam este debate vão bem além disso. Mesmo entre os maiores adeptos da integração europeia, as políticas soberanistas em ramos como a energia, agricultura, uso de solos e os transportes deverão colher apoios.
NÃO SE PODE DEIXAR O URBANISMO AOS URBANISTAS
O planeamento urbano é um tema pouco visível no debate sobre o desenvolvimento e estabilidade económica. Qualquer definição de política industrial sofre por tabela. Até aos dias de hoje, a análise do urbano como espaço económico tem tido um papel marginal na ciência económica, dominada pela escola de pensamento neoliberal. A ausência de um campo progressista faz com que um dos principais contributos teóricos que conecta a economia ao espaço urbano continue a ser da urbanista, Jane Jacobs, publicado em 1969.
Ao contrário da teoria, a prática desenvolvimentista (que muitas vezes não envolve economistas) dos países citados por Paes Mamede revelam um uso cuidado do planeamento urbano, em sintonia com objetivos industriais. No contexto português, altamente restritivo, é fatal ignorá-lo.
No caso do Japão, dada a dependência externa do petróleo e outros combustíveis fósseis, o seu milagre económico da segunda metade do século XX não se limitou a ensaiar uma política industrial para replicar a indústria automóvel dos EUA. O país do sol nascente focou-se no desenvolvimento de carros pequenos e de baixo consumo, que contribuíssem para fugir à armadilha da alta dependência de importações de combustíveis fósseis. Para isso, o governo nipónico não aguardou que os seus cidadãos optassem de livre e espontânea vontade por pequenos carros nacionais.
Além das habituais restrições a importações, houve um outro instrumento, com consequências até aos dias de hoje: a introdução dos certificados de estacionamento, em 1957, quando o PIB per capita nipónico era comparável ao português e espanhol. Obrigar todos os donos de carros a ter um lugar privado para estacionar racionou o uso do espaço nas cidades. A política tem funcionado como um mecanismo de protecção da indústria nacional, sendo uma restrição qualitativa às importações - os enormes modelos norte-americanos tiveram sempre uma dificuldade em vingar no Japão.
A indústria nacional foi-se desenvolvendo para responder a estas restrições físicas, que promovem a compra de pequenos carros, logo de baixo consumo, até hoje. Ancoradas noutras políticas como a expansão da rede ferroviária, o Japão foi conquistando a sua soberania económica, limitando as necessidades de importação de combustíveis fósseis.
Singapura, no seu processo de modernização e desenvolvimento industrial, implementou políticas que seguem a mesma lógica: em 1975, na ressaca do primeiro choque petrolífero, introduziu portagens urbanas (congestion charge) e na década de 1990 regulou o número de carros existentes com um sistema de quotas, onde os carros de maior cilindrada pagam mais para serem registados. O desenvolvimentismo chinês, encabeçado por uma indústria de carros elétricos emergente, também conta com uma componente urbana o que desvia a procura para este tipo de carros.
DOS TRANSPORTES AO ARROZ
Portugal, apesar da dependência fóssil comprometer o equilíbrio externo de forma constante (as importações líquidas de combustíveis e óleos[1] representam 2.5% do PIB em 2023), nunca teve uma política de gestão urbana que fosse alinhada com objetivos de política industrial, equilíbrio externo e que favorecesse os mais pobres. As portagens e o estacionamento pago nas cidades nunca foram verdadeiros mecanismos de disciplinar o consumo das classes mais ricas (carros maiores e de alta cilindrada), mas formas de taxar o uso de carro de forma universal. A política altamente permissiva e barata de dísticos (até três por habitação e sem critérios baseados no tamanho do carro) para residentes no município de Lisboa (mais ricos, em média, do que a média nacional) e o adicional do IUC para os carros mais velhos, ensaiado por Fernando Medina, reforçam a ausência de uma política urbana soberanista, que promova a igualdade e os objetivos de transição energética.
O poder de grupos económicos como a Brisa e lobistas como a ACP (Automóvel Clube Português) influenciam a ação política, a favor da continuada dependência externa por fósseis. Carlos Moedas foi eleito presidente da câmara municipal de Lisboa numa plataforma para seduzir os motoristas. O atual ministro das infraestruturas, Miguel Pinto Luz, tem um historial simpático ao alcatrão: enquanto vice da câmara de Cascais encomendou um estudo para tornar a linha de Cascais no Metrobus, e mais recentemente (após o anúncio do TGV e terceira travessia) fez questão de garantir que o governo não se vai esquecer da rodovia.
Mesmo no executivo PS anterior, a política não foi muito diferente, com o número de automóveis em constante expansão, incluindo o aumento do número de carros em 7% durante os últimos 3 anos e uma política que nunca colocou em causa os lucros da Brisa.
No planeamento e no uso de solos encontramos dinâmicas semelhantes nos países do Leste asiático, nos quais Paes Mamede se inspira. Singapura e Coreia levam décadas de um modelo de expansão da habitação pública que se alinhe com os seus objetivos políticos e económicos. Singapura, apesar de ser hoje apresentada como um farol neoliberal, seguiu uma política inspirada no socialismo Fabiano, em que o Estado passou a ser o principal provedor de habitação. A habitação pública passou a abranger praticamente toda a população da cidade-estado (80%).
Cruzando com a política energética, nos últimos anos, a agência de habitação pública avançou com a instalação de painéis solares em grande escala nos seus prédios. A Coreia do Sul, apesar de ter taxas de habitação social mais baixas - ainda assim acima da média europeia e em linha com a Finlândia - coloca o Estado como planeador na criação de novas cidades. Este modelo facilita a combinação das necessidades habitacionais com outros interesses, como a proximidade de transporte público. A habitação pública, ao reduzir o custo de vida da população, pode ter ajudado estas nações a competir na economia global, com custos de produção mais baixos limitando a supressão do poder de compra dos trabalhadores.
Esta lógica esteve praticamente inexistente no ciclo de desenvolvimento português do último século. A fraca rede de transportes públicos nunca foi verdadeiramente integrada num plano público de habitação. As consequências alastram-se a setores públicos como a educação, onde a dificuldade de atração de profissionais para as grandes zonas urbanas se faz sentir.
Contudo, não podemos falar de uma ausência de planeamento urbano. Este foi usado para atingir objetivos de natureza económica, infelizmente para reforçar a viragem do país para o turismo. Como Paes Mamede explicou, apostar no turismo deveu-se a escolhas políticas. Uma das mais importantes foi a liberalização do uso de habitações, que puderam ser convertidas em solos de uso comercial via Alojamento Local, com graves consequências para os preços imobiliários. Tornar o planeamento urbano num instrumento que reduza a dependência externa deve ser parte de qualquer política industrial dentro do quadro europeu.
No setor alimentar também encontramos Portugal numa direção oposta à do reforço da soberania. A aposta motivada por lucros de curto prazo, em produtos como frutos vermelhos e abacates, tal como o turismo, torna Portugal dependente das boas graças dos importadores, num setor que já parte com limitações ligadas ao alto consumo de água e a dificuldades de armazenamento. No sentido inverso, a produção nacional do trigo, alimento essencial, cobre menos de 10% da procura interna, longe dos 60% de 1990.
Do lado japonês, a política em relação ao arroz, em que grande parte do consumo interno é satisfeito pela produção nacional, apelidada de “irracional” do ponto de vista dos custos por muitos economistas, é mais uma vez uma garantia da soberania nipónica.
PREPARAR A SAÍDA
Uma das principais mensagens da campanha da CDU nestas eleições europeias é a preparação da saída do Euro. A campanha liderada por João Oliveira reconhece ser um processo longo, complexo e cheio de incógnitas (um acontecimento que pode acontecer mesmo sem o consentimento de Portugal), e esta newsletter não pretende fingir que sabe como fazê-lo. Contudo, podemos observar as diferentes experiências de países que sofreram processos similares ao português no início da década passada. As diferentes experiências e respostas das crises grega e a islandesa evidenciam alguns dos pilares a serem trabalhados num processo de preparação de saída.
Com total desregulação do sistema financeiro, a crise financeira de 2008 levou a pequena economia islandesa a entrar em completo colapso. Os bancos - demasiado grandes para serem resgatados - entraram em falência e investidores estrangeiros perderam as suas poupanças, o que levou ao episódio insólito do Reino Unido a usar leis anti-terrorismo contra o país. Tal como Portugal e a Grécia, o país pediu auxílio ao FMI, mas recuperou de forma muito mais rápida. Em grande medida, a recuperação deveu-se ao Estado islandês ser capaz de desvalorizar a sua moeda e colocar controlos de capitais (“fronteiras” ao dinheiro) por quase uma década.
Enquanto estas diferenças parecem reforçar os problemas do Euro, existe outra importante lição da recuperação islandesa - novamente, a soberania energética e alimentar foram essenciais Nem sempre um país com menos de 400 mil habitantes (aproximadamente o mesmo que o município de Sintra) consegue exercer uma soberania económica significativa, o que leva muitos países a optar por nem sequer terem a sua própria moeda (p.ex., Montenegro ou El Salvador). A capacidade de exercer alguma soberania não se deve a uma superioridade cultural. A Islândia sabia que por maior que fosse um eventual ataque económico contra si, contava com dois produtos em abundância: peixe e energia geotermal.
As vastas águas internacionais a que tem direito permitem-lhe pescar peixe para autoconsumo e exportação. A abundante e barata energia geotérmica garantiu que a ilha não corresse o risco de perder a capacidade de geração eléctrica, e que fosse capaz de usar essa energia para a produção bens de alta intensidade energética, como o alumínio - procurados nos mercados internacionais - e a produção alimentar em estufas. A pequena ilha do mar do Norte não seria capaz de se tornar numa economia auto-suficiente sem afetar o nível de bem-estar da população, visto que continua a depender de importar bens como petróleo, medicamentos e equipamentos tecnológicos, mas o seu relativo grau de soberania alimentar e energética são fundamentais para entender a capacidade de exercer controlos de capitais e uma política monetária autónoma.
A recuperação islandesa está longe de ser um conto de fadas e foi alavancada numa estratégia de expansão do turismo, com grandes paralelos com Portugal, o que também contribuiu para uma crise da habitação. O que esta demonstra é a importância da soberania em ramos estratégicos como o alimentar (o Japão e a Suíça nunca abandonaram o debate da auto-suficiência alimentar) e o energético, numa estratégia de soberania económica que permita superar as limitações para importar, e preparar (pelo menos) uma eventual saída do Euro.
Além disso, a necessidade de ter um equilíbrio externo, ou mesmo um superavit, corretamente apontada por Paulo Coimbra, deve ter um elemento quantitativo em conta. Um excedente externo baseado no turismo será incapaz de se sustentar num processo de instabilidade política, como seria um eventual processo de saída do Euro. Os turistas, com milhares de destinos para escolher no mundo, facilmente descartariam Portugal neste contexto, como ocorreu no norte de África com a primavera árabe. Esta fragilidade ficou exposta durante o confinamentos devido à pandemia do Covid-19, mas não tardou a ser de novo esquecida.
Semelhante ao caso grego, as principais exportações em que Portugal é altamente especializado - turismo ou têxteis - são claramente produtos de fácil substituição nas cadeiras de valor global. O abacate, ao contrário de outras culturas, apodrece rapidamente num cenário de conflito comercial e não faz parte do cabaz de consumo da maioria dos portugueses. A baixa “qualidade” do nosso equilíbrio externo mina a nossa soberania.
Continuar a expansão das energias renováveis em Portugal pode ser a alavanca para reindustrializar o país através da competitividade energética e reconquistar alguma soberania. Ao contrário dos combustíveis fósseis, a impossibilidade de importar painéis solares durante algumas semanas não ameaça um país de colapso. Uma política soberana em torno do lítio, através do controlo público como ensaiado no Chile e México, e da criação de uma cadeia de valor local, como a Indonésia fez com o níquel, aumentaria a importância portuguesa nas cadeias de valor global.
Em relação à soberania alimentar, uma política séria de gestão de recursos hídricos - focada em promover culturas que usem menos água - e um stock regulatório público de alimentos (que retire o peso da chantagem do retalho face aos produtores nacionais) são instrumentos disponíveis.
No fundo, o eurocepticismo suave e reformista não deve ser um fim por si só, mas um meio de combate pela soberania.
[1] Combustíveis minerais, óleos minerais e produtos da sua destilação; matérias betuminosas; ceras minerais.
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Serviço público
Excelente reflexão. Chamo a vossa atenção para o facto de as jazidas de Lítio existentes em Portugal nos terem sido apresentadas de forma extremamente empolada, em jeito de propaganda. Recomendo que sigam o que diz o Carlos Leal Gomes, um geólogo da Universidade do Minho, sobre o assunto https://rum.pt/news/em-portugal-nao-e-clara-a-divisao-entre-recursos-e-reservas-de-litio.
O peso do turismo no PIB dificilmente poderá ser reduzido a curto prazo, mesmo no quadro de uma estratégia soberanista. Mas talvez se possa alterar o perfil da oferta, distribuindo o fluxo mais equilibradamente pelo território. Por outro lado, uma saída do euro exigirá não apenas a nacionalização do setor energético, das infraestruturas rodoviária, portuária aeroportuária, como de grande parte do setor financeiro, o que implicará um grande esforço no plano diplomático. Finalmente, que fazer em relação ao papel? Não podemos ter tantos eucaliptos, mas o setor também tem um peso considerável...