Os unicórnios não são fabricados na Web Summit: lições de uma política industrial na periferia
A história da indústria de videojogos de Dundee, pequena cidade no norte da Escócia, mostra a necessidade de uma política industrial para promover a inovação.
Desde a intervenção da Troika que o tema da inovação tecnológica enche páginas de jornais e discursos de políticos. Geralmente são quase motivacionais. Primeiro apareceu na forma do empreendedorismo de bater punho de Miguel Gonçalves, misturado com termos como startups e incubadoras de empresas: o desemprego (que chegou a atingir os 18.5%) iria magicamente baixar se as centenas de milhares de desempregados ‘batessem punho’. Depressa o léxico evoluiu e surgiram termos mais grandiosos, como fábricas de unicórnios, alavancados na Web Summit e numa vaga de nómadas digitais.
À primeira vista, a discussão pode parecer útil por apresentar uma lógica que coloca no centro do debate a modernização da estrutura produtiva portuguesa, de forma a esta pague melhores salários e ponha um travão à migração de mão de obra qualificada. Infelizmente, a suposta receita portuguesa para o sucesso tecnológico está em todo o lado, excepto na produtividade.
Nos centros urbanos portugueses, a sociedade está cada vez mais dependente do turismo e de atividades imobiliárias, que levam ao empobrecimento da população através do aumento dos custos da habitação. Fora destes, vê-se uma economia focada nos setores primários, dependente da sobre-exploração de recursos naturais e migrantes.
Dentro dos constrangimentos do Euro e da União Europeia, Portugal tem espaço limitado para definir uma política industrial ativa. Por isso, em vez de esperar que um speaker da Web Summit cuspa algum conselho milagroso, é mais útil olhar para economias que conseguiram modernizar setores tecnológicos em contextos semelhantes ao português.
A pequena cidade escocesa de Dundee é um bom exemplo. Localizada no norte da Escócia e na periferia da economia britânica, Dundee (tal como Portugal) não tem controlo sobre a política monetária ou cambial do Reino Unido.
Nas últimas décadas, a cidade também sofreu um forte processo de desindustrialização e de austeridade. Dundee não teve a sorte da bonança do petróleo de outras regiões periféricas da Escócia. Ainda assim, a cidade tornou-se num importante hub para a indústria de videojogos. A pequena cidade foi responsável por jogos como os Lemmings, GTA e Minecraft.
Se o Algarve é um local atrativo para turistas e pensionistas britânicos, Dundee tornou-se uma economia interessante para programadores portugueses.
NÃO SE CONSTRÓI UMA CASA PELO TELHADO
As origens da indústria de videojogos em Dundee podem ser rastreadas a uma outra indústria com décadas: a produção de relógios. Em 1946, a empresa norte-americana Timex instalou-se na cidade como uma fábrica de relógios. A aliança geopolítica entre os Estados Unidos e o Reino Unido, e a localização geográfica de Dundee, próxima dos Estados Unidos num período em que os aviões tinham pouca autonomia de voo, certamente influenciaram a decisão da TIMEX.
Contudo, houve uma política industrial a nível municipal para atrair o gigante industrial. O município usou os recursos e poderes ao seu dispor para atrair a empresa. Em vez de oferecer benefícios fiscais diretos, o município disponibilizou à empresa terrenos públicos abaixo do preço de mercado.
Com o passar dos anos, a TIMEX foi alargando as suas áreas de atuação. Primeiro, e com o desenvolvimento tecnológico, o gigante norte-americano passou a produzir relógios digitais. Posteriormente, através do maquinário existente e das capacidades das suas trabalhadoras, a fábrica de Dundee passou a montar a consola ZX Spectrum, uma espécie de mini computador.
A modernização de uma economia, de forma independente, depende dos seus trabalhadores. A passagem dos relógios para as consolas é hoje vista como o catalisador para o sofisticado setor de videojogos do século XXI. A abundância de consolas ZX Spectrum - que permitia ao usuário algum nível de programação - criou uma cultura de formação e passagem informal de conhecimento entre os trabalhadores e os residentes da cidade. E foi neste ambiente que surgiu o primeiro estúdio de videojogos de Dundee (DMA Design), em 1987.
Na contracorrente do declínio característico da desindustrialização britânica dos anos 1980, um grupo de antigos trabalhadores da TIMEX fundou o primeiro estúdio de videojogos da cidade. Nos escombros de uma desindustrialização violenta, estes trabalhadores usaram a sua indemnização de despedimento, e o conhecimento adquirido durante anos com na Timex e com a ZX Spectrum, para fundar a DMA Design.
Esta dinâmica de inovação através da formação de conhecimento informal assemelha-se a um processo descrito pelo CEO e fundador do Spotify para justificar o sucesso sueco na área da tecnologia. Segundo o CEO da empresa de streaming musical, os subsídios estatais na provisão de Internet e compra de computadores na Suécia foram um dos principais elementos dinamizadores da indústria.
Criar polos tecnologicamente avançados requer mais do que o suor individual de pessoas. Ao contrário dos conselhos de Miguel Gonçalves (hoje um convertido ao credo da literacia financeira), o desenvolvimento não se atinge a bater punho e a pagar as propinas com a venda de pipocas num centro comercial.
UMA POLÍTICA INDUSTRIAL NÃO É DAR BORLAS PARA A GRANDES EMPRESAS
Se a produção industrial de relógios em Dundee surgiu e desapareceu com a TIMEX, o mesmo não pode ser dito com o novo setor dos videojogos. Na viragem do milénio, a DMA Design (hoje Rockstar North) mudou a sua sede de Dundee para Edimburgo, mas a pequena cidade escocesa foi capaz de manter o dinamismo desta indústria, e hoje tem mais de 40 estúdios na cidade.
Em vez de adotar, por exemplo, uma política de benefícios fiscais agressivos para manter a sede do principal estúdio de videojogos na cidade, o município de Dundee optou por uma outra estratégia. Apostou na diversificação empresarial no seio do setor e que tem garantido o seu sucesso de longo prazo, e no qual a Universidade Pública desempenhou um papel fundamental.
A pequena cidade escocesa foi a primeira cidade do mundo com um curso focado para a indústria de videojogos. A universidade disponibilizou, ao longo dos anos, espaço para novas empresas emergentes se instalarem. Esta combinação de políticas criou um ambiente em que antigos trabalhadores da DMA Design e os quadros formados na universidade desenvolveram a indústria local.
O modelo seguido em Portugal, que tem como dianteira a Nova School of Business and Economics (uma das faculdades de excelência do país) foi o da aplicação da lógica do turismo à condução de um estabelecimento de ensino. A faculdade, frequentemente apresentada como o cérebro económico da nação, desistiu de um país com um modelo de desenvolvimento tecnologicamente avançado e passou a vender um “estilo de vida californiano” a estudantes estrangeiros com propinas de vários milhares de euros, insuportáveis para a esmagadora maioria das famílias nacionais.
Principalmente a partir do período da Troika, o Estado português usou benefícios fiscais para atrair empresas estrangeiras. A subsidiação temporária da folha salarial, através dos estágios do IEFP, promoveu a atração de empresas que dependem de mão de obra facilmente substituível. Em vez de hubs tecnologicamente avançados, os cofres públicos financiaram os hubs de call centres e de back-offices, longe dos reais centros de decisão e apelidados de “centros de serviços” ou “centros de excelência”.
Os resultados destas duas estratégias estão à vista. Apesar de continuar a ser uma cidade relativamente pobre para os padrões do norte da Europa, a evolução económica de Dundee desde a crise financeira foi muito mais promissora que as principais áreas metropolitanas portuguesas, que se viram forçadas a expandir o setor do turismo. A produtividade de Dundee cresceu 15% entre 2009 e 2019, comparado com 9% na Área Metropolitana do Porto e um declínio de 1% na Área Metropolitana de Lisboa.
LIÇÕES PARA OUTRAS ECONOMIAS PEQUENAS E PERIFÉRICAS
Cada experiência tem as suas características próprias, sujeita a processos históricos e sociais específicos, mas existem pelo menos quatro lições que Portugal pode tirar da indústria dos videojogos de Dundee.
Os setores existentes definem as possibilidades futuras. Esta é uma ideia básica do funcionamento de sistemas económicos complexos como o capitalismo (path dependence), que é convenientemente ignorada em actos propagandísticos. Portugal não vai ser o berço da próxima Google, ou criar um Silicon Valley, por receber a Web Summit, ou por ter inaugurado uma “Fabrica de Unicornios” (cuja paternidade é disputada entre Carlos Moedas e Fernando Medina). A capacidade produtiva de hoje define os destinos tecnológicos de amanhã. Uma economia cada vez mais dependente de turismo nas cidades, e de atividades primárias fora dos centros urbanos, afunda-se em setores de baixo valor e afasta-se da possibilidade de se tornar tecnologicamente avançada.
Leis laborais e redes de proteção social promovem a inovação por parte dos trabalhadores. Não foi a total desregulação laboral na ressaca da desindustrialização que criou o dinamismo necessário para uma transição para uma indústria dos videojogos. Os trabalhadores de Dundee conseguiram desenvolver e comercializar as suas ideias porque receberam indemnizações por despedimento, que lhes deram dinheiro para arrancar com os seus projectos. Uma lei laboral que torna fácil e barato despedir não permite que a classe trabalhadora use as suas capacitações para desenvolver a economia local.
Há vida para além das isenções fiscais aos tubarões do costume: a experiência de Dundee mostra que existem benefícios que o Estado (central, autarquias ou universidades) podem dar ao setor produtivo, que não envolvam a redução de impostos.
Existem pelo menos duas vantagens de política como a disponibilização de espaço, (que a TIMEX beneficiou nos anos 40, e ainda hoje existe para os estúdios de videojogos) face a isenções fiscais: não corre o risco de derrapagens orçamentais futuras, que coloquem em causa serviços públicos (dado o contexto de moeda única e restrições orçamentais); e não tornar o Estado alvo de chantagem por parte das empresas que já dominam a economia local.
Por exemplo, o Quebec também desenvolveu um setor de videojogos, ancorado numa política de benefícios fiscais na tributação do trabalho, e hoje tem dificuldades em reduzir o subsídio dado a empresas que ameaçam sair do Estado Canadiano.O Estado pode ser um agente planeador e inovador. Como já foi discutido aqui na República dos Pijamas, o Estado português foi responsável por algumas das maiores inovações tecnológicas, um ciclo interrompido pelas privatizações. Dito isso, ainda existem ferramentas que o Estado português pode usar para modernizar o tecido empresarial do país. Dundee alavancou um setor existente através da sua universidade, semelhante ao que foi feito entre a Universidade de Aveiro e a Brisa, ou a Universidade do Minho e a Bosch. Uma política industrial que passe pelas universidades tem de ir para além desse apoio. O Estado tem a obrigação de definir garantias e objetivos estratégicos dos seus parceiros privados, e não ser um mero provedor de cérebros abaixo do preço de mercado.
NOTA
Para quem tem interesse no tema, a BBC tem um documentário sobre as greves na TIMEX, em 1993, encaradas como o fim de uma Era do movimento sindical britânico.
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Muito bom, subscrevo inteiramente a substancia do artigo. Um pequeno reparo pedantico apenas:
Dundee fica na orla norte do chamado "Central Belt" Escoces - grosso modo,, o "Central Belt" descreve o centro geografico e economico da Escocia.
Muito interessante, não fazia ideia desse lado de Dundee! Infelizmente a cidade costuma aparecer na notícias pelas piores razões - tem uma das piores taxas de overdoses e mortes associadas ao consuma de drogas da Europa, embora esse seja mais um domínio em que a resposta é limitada pela centralização de poderes em Westminster para desespero do governo escocês...