O imobilismo do centrão torna o corte de impostos a única aspiração imaginável
Os sucessivos episódios que marcaram os atrasos do TGV trazem ao de cima dinâmicas de décadas entre o PS e o PSD
António Costa foi secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares de 1995 a 1997, ministro dos Assuntos Parlamentares de 1997 a 1999, ministro da Justiça de 1999 a 2002, ministro da Administração Interna de 2005 a 2007, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa de 2007 a 2015 e primeiro-ministro de 2015 a 2024 (ainda em funções depois de apresentar a demissão). Mais notavelmente, depois da saída de João Galamba, António Costa passou a ser ministro das Infraestruturas.
Durante o curto espaço de tempo com este novo cargo, António Costa desdobra-se em apresentações de obras públicas. Mais notavelmente, António Costa é o ministro que conseguiu lançar a linha TGV. 25 anos depois de ser anunciado pela primeira vez, oito anos depois de Costa ser primeiro-ministro, o projeto de alta velocidade vai por fim arrancar naquilo que o ainda primeiro-ministro diz ser “histórico”.
Enquanto é descabido dizer que António Costa esperou durante oito anos de governação para lançar o TGV em cima de uma campanha eleitoral, é óbvio que o timming da aprovação da obra tem algo a ver com as eleições legislativas que vão acontecer em menos de dois meses.
Ao fazer a decisão depender da aprovação do PSD de Luís Montenegro, Costa colocou o opositor numa posição de ou aprovar o projeto (admitindo implicitamente uma conquista do PS à porta das eleições) ou de ser uma força de bloqueio face a uma obra há muito ansiada no país. Criar uma clivagem entre o PS fazedor pronto a aproveitar o PRR e o PSD sem iniciativa política, que arrisca o desperdício de fundos europeus, é um spin eleitoral poderoso. Costa desdobrar-se em inaugurações e apresentações de obras durante a campanha eleitoral não só favorece o PS, como o futuro da sua própria carreira política.
Enquanto é fácil ver o cinismo do PS, também é oportuno perceber o contexto que levou Costa a colocar o PSD em xeque em relação ao TGV. Ao olharmos para as posições dos dois partidos sobre este projeto em particular, e sobre a ferrovia em Portugal em geral, entende-se como se chega à situação atual.
Naturalmente, a comparação com o concorrente da ferrovia - a rodovia, e em particular as autoestradas - é indispensável para entender esta dinâmica. Portugal é o único país da Europa com mais quilómetros de autoestrada do que de ferrovia.
Enquanto a ferrovia foi negligenciada nas últimas décadas, com sucessivos encerramentos de linhas motivadas “por razões de segurança”, ou seja, falta de investimento, a rodovia chega a 2021 com mais de 3 mil quilómetros de Autoestrada, o segundo maior rácio por habitante da União Europeia.
DESPESISMO POUCO FERROVIÁRIO SOCIALISTA
Analisando as abordagens PS em relação à ferrovia antes de Costa, começamos por um exercício em que levamos à letra a descrição da direita de este ser o partido que governa com um despesismo desenfreado.
Por exemplo, Jorge Paulino Pereira, professor no Instituto Superior Técnico, aponta os governos de António Guterres como os projetores de autoestradas em excesso e pouco rentáveis. Face a isto, não podemos deixar de questionar porque esse despesismo não foi capaz de fazer avançar o TGV em 1999, quando foi inicialmente proposto.
Passando ao seguinte primeiro-ministro socialista, José Sócrates, se os seis anos deste foram marcados pelo suposto regresso despesismo socialista, que “trouxe a bancarrota”, como é que o TGV não saiu finalmente do papel?
Nos anos finais do seu mandato, este insistia em projetos:fazer a autoestrada chegar a Bragança, e lançar o TGV Lisboa-Porto. Com a chegada da direita ao poder, ambos foram cortados. Apesar de Sócrates ser visto por muitos como o primeiro-ministro defensor do TGV, a sua governação colocava este projecto e uma autoestrada para uma das capitais de distrito mais remotas no mesmo patamar.
Mesmo se assumirmos que a vontade de gastar fosse enorme, a ferrovia além TGV não acolhia apoios suficientes para fazer parte dos grandes desígnios socialistas.
Enquanto é difícil encontrar uma oposição frontal do PS à ferrovia, “ronha” é uma forma útil de descrever a posição do partido, agora liderado por Pedro Nuno Santos. Sem nunca se opor formalmente, e até sinalizando preocupação, o problema do atraso da ferrovia só agora foi sinalizado como uma prioridade. Há que recordar que, em 2015, o mesmo António Costa que agora celebra o TGV, fez uma campanha eleitoral implicitamente hostil a este projeto (“obras faraónicas”), de forma a distanciar-se de José Sócrates.
Enquanto a aposta na ferrovia, ainda antes da aprovação da linha do TGV, tenha ganho alguma importância durante os executivos de Costa, os proveitos foram limitados. Na linha do Oeste, promessas de fazer o comboio minimamente competitivo com a rodovia vão sendo atrasadas, a linha do Douro mostra que adiamentos de quase dez anos continuam a ser a regra. As compras de comboios de alta velocidade foram sofrendo sucessivos atrasos - o que era anunciado em 2022 para acontecer em 2023, foi de novo anunciado em 2023 para vir a acontecer em 2024. Mesmo o TGV, projeta-se só chegar ao seu pleno potencial na próxima década.
A emblemática e indispensável limpeza do histórico da dívida acumulada à CP e consequente encomenda de comboios no valor de 746 milhões de euros acontecem no crepúsculo dos oito anos de Costa. Notavelmente, em 2020, face ao fim do comboio noturno que ligava Lisboa a Madrid, a ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, afastou a hipótese de um TGV entre as duas cidades pois “as pessoas vão de Lisboa a Madrid de avião”.
Além disso, os governos Costas tiveram uma preferência pelo Metrobus face às soluções ferrovias para resolver os problemas da mobilidade coletiva, nos centros urbanos. Uma opção política que tenta camuflar a falta de ambição por detrás de chavões em torno do hidrogénio.
Para compreender as políticas de desprezo do PS na ferrovia é indispensável olhar para as posições do PSD. Como em outras áreas da governação, não foi por acaso que Costa jogou no terreno da direita, e colocou o chumbo do TGV como eventual desperdício de 750 milhões de euros de fundos europeus.
AUSTERIDADE DO ALCATRÃO SOCIAL DEMOCRATA
Ao examinarmos as posições do PSD na ferrovia, podemos começar logo por apontar o facto praticamente consensual de que a desvantagem da ferrovia, face ao alcatrão, ganhou força nos mandatos de Aníbal Cavaco Silva como primeiro-ministro. A sua governação caracterizou-se por fortes cortes na ferrovia pelo país afora, sem um reforço desta nos centros urbanos. Notavelmente, a Ponte Vasco da Gama, segunda travessia sobre o Tejo – que começou a ser construída no último ano de Cavaco como Primeiro Ministro – avançou sem a possibilidade de transportar comboios (a ponte Øresund entre a Suécia e a Dinamarca, sendo da mesma geração, contempla o uso de comboio).
Durante o curto governo de Durão Barroso, o PSD foi a favor de quatro linhas de TGV, mas rapidamente o partido recuou à sua posição anti-ferroviária. Na campanha eleitoral frente a Sócrates em 2009, Manuela Ferreira Leite, ex-ministra das finanças de Durão Barroso e candidata a primeira-ministra pelo PSD, lançou “sendo Governo riscarei imediatamente o TGV” pois este obra “empobrece o país” e que em relação aos benefícios da obra para o emprego afirmou "[ao] desemprego de Cabo Verde, desemprego da Ucrânia, isso ajudam. Ao desemprego de Portugal, duvido".
Como Primeiro Ministro em 2012, Pedro Passo Coelho garantia que o “TGV é um projeto que está arrumado”. Em ambos os casos, a oposição ao projeto ia além das restrições orçamentais. Não se vislumbrava o TGV como um projeto positivo para o país, tanto que o governo de Passos Coelho avançou na calada, com uma versão raquítica da alta velocidade.
Para além da desistência do TGV, a governação de Passos nos transportes públicos foi marcada por adiamentos de obras quase concluídas (como por exemplo na estação de Metro da Reboleira, na Amadora), cortes na qualidade e frequência do serviço, subidas que chegaram a representar mais do que duplicações do custo dos passes (com a excepção de quem não beneficiava da tarifa social), e encerrar o metro de Lisboa às 23 horas chegou a ser uma hipótese em cima da mesa. Em suma, um exercício que reduzia os transportes públicos a uma (péssima) opção a ser usada apenas pelos mais pobres.
Crucialmente, já nos últimos meses de mandato da dupla PSD/CDS, houve a tentativa de concessionar a Carris e o Metro de Lisboa. A reversão destas pelo governo de António Costa, pressionado à esquerda, foi em simultâneo um dos resultados mais despercebidos e importantes da Geringonça.
Quando a dupla PSD/CDS fazia campanha por um segundo mandato, sem a presença da Troika, e num contexto de redução do custo de financiamento do estado (juros), o retomar de projetos de infraestruturas adiados devido à crise financeira não era um tema. A campanha eleitoral ia pouco além da promessa de um crescimento económico virtuoso, que seria resultado da implementação de “reformas estruturais”.
Quanto aos Presidentes da República, na reta final de Sócrates, segundo as palavras do então comentador Marcelo Rebelo de Sousa, o governo recuou no TGV para evitar confrontar Cavaco. Recentemente, já como Presidente, Marcelo decide fazer da construção do novo Aeroporto de Lisboa uma marca do seu mandato, enquanto os projetos da ferrovia (o TGV e muitos outros) lhe passam ao lado.
Recentemente, mesmo com uma expansão pouco ambiciosa do metro de Lisboa, Carlos Moedas acena com exigir suspender as obras devido a atrasos.
Se sumarizarmos a posição do PSD em relação à ferrovia (e restantes transportes públicos), as posições oscilam entre indiferença e oposição. Sobretudo, há uma rejeição dos transportes públicos como um meio para o cidadão comum. Os custos financeiros acabam por ser apenas uma alavanca argumentativa.
J'AIME LES FAITES ACCOMPLIS
Miguel Pinto Luz, Vice-Presidente da Câmara Municipal de Cascais pelo PSD e um dos principais porta-vozes do partido na comunicação social, após o voto favorável do PSD ao TGV, afirmou o compromisso do PSD com o projeto, deixando várias críticas aos moldes em que a votação foi apresentada. Enquanto é legítimo o PSD queixar-se de a decisão ser apresentada como inadiável após todos estes anos e de um espaço para discussão ser inibido, é hipócrita o PSD apresentar-se agora como um defensor do projeto.
Carlos Moedas resume este oportunismo na perfeição: de repente o presidente da câmara de Lisboa considera a ligação Lisboa-Madrid (totalmente afastada quando este era secretário de estado de Passos Coelho) muito mais relevante para o país do que a ligação Lisboa-Porto.
Dias antes de Pinto Luz, Miguel Poiares Maduro, ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional durante o executivo de Pedro Passos Coelho, foi ao baú dos argumentos usados pelo PSD ao longo de décadas para ensaiar os argumentos que justificassem uma rejeição do PSD ao projeto de alta velocidade.
Já em Outubro passado, quando o TGV não era um assunto eminente, Sofia Vala Rocha, eleita à Assembleia Municipal de Lisboa pelo PSD, apontava para a tragédia da falta da aposta do TGV em Portugal.
Quando o tema não está na ordem do dia, ou depois do lançamento do projeto ser fait accompli, todas as oposições se esfumam. As posições contrárias do passado são esquecidas, e todos fingem sempre terem sido defensores da ferrovia. Entretanto, Portugal leva o atraso de 30 anos em relação a Espanha, que Vala Rocha tanto lamenta.
Como Nathan J. Robinson notou sobre o caso particular bibliotecas para o caso dos EUA, apesar de serem valorizadas e ainda hoje consensuais, a sua lógica de serviço público é oposta à mercantilização. Hoje seria difícil sequer imaginar as bibliotecas públicas serem criadas de raiz.
A mesma dinâmica entra em jogo na ferrovia e em muitos outros projetos públicos. Depois de décadas de oposição e indiferença, em que todos os argumentos servem para fazer uma guerrilha contra uma política pública, assim que aprovado e usufruído, as antigas críticas esfumam-se. Um apagão coletivo faz-se sentir nas memórias e os opositores de antigamente transformam-se em apoiantes vitalícios da causa.
Esta dinâmica não é exclusiva do PSD. O passe social, uma reivindicação antiga do PCP, que chegou a ser chumbada pelo PS e pela direita, acabou por ser aprovada em 2019 depois de anos de insistência. O simbolismo da medida é tal que, desde então, o valor de referência de 40 euros para os passes metropolitanos, ao contrário dos preços dos bilhetes, não sofreu qualquer aumento. Com a medida consolidada e valorizada pelos utentes, António Costa assumiu-lhe a paternidade e colocou-a no panteão das conquistas socialistas dos últimos anos.
Focando em iniciativas ligadas ao PCP, foi sob a insistência de Bernardino Soares, enquanto presidente da câmara municipal de Loures, que a linha violeta, recentemente lançada, ganhou iniciativa. Em 2021, um Eurodeputado do PCP, João Pimenta Lopes, fez uma viagem de 57 horas de Lisboa a Estrasburgo para criticar o estado da ferrovia. Em campanha eleitoral, não são partidos à direita que se dedicam a colocar a ferrovia como um tema.
À direita do PSD, apenas encontramos a dedicação vocal da parte da Iniciativa Liberal à ferrovia (o Chega foi o único partido a não votar a favor do TGV, na semana passada). No entanto, essa afinidade para com a ferrovia assemelha-se mais a um saga contra a empresa pública CP.
E para ainda melhor entendermos a postura da IL, é de notar que esta considera o passe social como “lógica de facilitismo” e “não de justiça social”. Nos tempos de José Sócrates, um dos argumentos contra o foco no TGV, em depreciação da restante ferrovia, era de que este seria um serviço que apenas iria beneficiar os mais ricos. A posição da IL mostra que a crítica não era totalmente infundada.
PING-PONG DO IMOBILISMO
O ping-pong entre o PS e PSD durante décadas explica bem o atraso dos serviços públicos das últimas décadas. O PSD exprime resistência a medidas, geralmente invocando temas tangentes, como o custo ou a origem de quem vai trabalhar nas obras . Do outro lado, o PS pode focar-se em combater nos argumentos absurdos do PSD, alimentando as esperanças do eleitorado de esquerda, mas sempre evitando grandes batalhas que exijam capital político. Como duas peças que apenas fazem sentido quando encaixadas juntas, o centrão funciona como uma máquina oleada de imobilismo.
Fica um equilíbrio de obras e de serviços raquíticos, com os investimentos necessários constantemente adiados. Quando é hora de expressar intenções, todos concordam. Quando o debate se torna decisivo, a direita traz o seu repertório de argumentos laterais e o PS a sua hesitação. Se depois de um combate político, por circunstâncias fortuitas um projeto avança, todas as divergências são esquecidas e todos se revelam adeptos do projeto. Os legados de antigos projetos concluídos, feitos quando o país era muito mais pobre, raramente são contestados.
Com a falta de investimento que se foi aprofundando nas últimas décadas, é difícil os mais jovens conseguirem identificar muitas obras que tenham visto desenvolver-se à frente dos seus olhos. Assim, não será de estranhar que estes se revejam em agendas à direita, como a redução imediata de impostos, mesmo quando não são os principais beneficiários, em contraposição a medidas como um parque habitacional público. Com os investimentos que ficam por acontecer, não é de surpreender que a única medida palpável seja uma redução do IRS.
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