A febre do empreendedorismo dos anos da Troika foi um beco sem saída que convenientemente caiu no esquecimento
Sinais de Fumo, romance de de Alex Couto, captura o espírito do empreendedorismo vazio de Portugal durante os anos da Troika.
Se tivermos de selecionar o que se destacou em Sinais de Fumo, primeiro romance de Alex Couto, para os autores desta República, foi de uma memória dos tempos da Troika. Entre o bairro do Viso em Setúbal e o consumo de cannabis, o motor desta história são as narrativas sobre o empreendedorismo que eram injetadas em doses massivas nas cabeças dos portugueses, em especial nas dos mais jovens sobre quem pairava o desemprego e a precariedade.
Enquanto o país se “ajustava” sob a supervisão do trio Comissão Europeia-Banco Central Europeu-FMI, a solução para o desemprego quase nos 18% ( o desemprego jovem rondava os 40%) e a vaga de emigração em massa, passava pelo empreendedorismo. Empresas como a Green, fundada pelo círculo de amigos que Sinais de Fumo retrata, eram a receita apresentada para Portugal expiar os anos de pecado em que se “viveu acima das possibilidades”. Se a ditadura militar brasileira teve o slogan propagandístico, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, o Portugal desses anos parecia ter “Jovens, empreendam ou emigrem”.
Em resposta ao “brutal aumento de impostos”, um sistema bancário sem liquidez e próximo do colapso, aos cortes de salários e pensões e ao congelamento de tudo o que era iniciativa pública, a luz ao fundo do túnel estaria na capacidade dos portugueses inventarem novos negócios, nos escombros da austeridade. O então ministro da Economia apontava para uma espécie de McDonalds dos pastéis de Nata. A ministra da agricultura sugeria que embalar ovos estrelados era uma forma de superar os limites da imaginação.
Em vários discursos, o problema era a cultura portuguesa, que valorizava essa relíquia arcaica que era a estabilidade laboral (nunca colocada em causa no centro da Europa), e treinava os portugueses para serem trabalhadores em vez de empreendedores. Nem as crianças passavam ao lado do discurso do empreendedorismo – nunca se sabia quando um jovem Mark Zuckerberg poderia surgir e salvar Portugal através de uma nova startup.
A direita encontrava num vendedor de T-Shirts de 15 anos um herói nacional, projetado para a ribalta quando a historiadora Raquel Varela questionava a viabilidade de negócios de baixo valor acrescentado que este protagonizava. E claro que este herói se chamava Martim, um nome que se enquadrava perfeitamente no estereótipo de beto. Na obra de Couto, os betos também têm espaço, e o nome para a personagem da classe alta da Estrela (Lisboa) é Constança.
As personagens de Sinais de Fumo tentam navegar este delírio, e citam várias vezes um dos grandes elementos do Panteão do Empreendedorismo Luso dos anos da Troika: as cuecas pixel. De acordo com o jornal detido por milionários, o Observador, que na altura dava as suas primeiras passadas, promover “as primeiras cuecas pixelizadas do mundo” era uma missão nacional. Onde antes os portugueses lançavam as suas caravelas, agora o futuro do país estava na roupa interior com tons da Nintendo.
“Era o tempo das startups, das incubadoras de startups, das aceleradoras de startups e das aceleradoras de incubadoras. Quando a Troika bateu em força e a terra tremeu, os tugas tiveram de ser imaginativos e, meu Deus, ninguem vai conseguir acreditar na projeção destes projectos.
De um milhão de pessoas que foram para o desemprego, houve tipo cem mil restaurantes de hambúrgueres com logótipos cool, depois cem mil carrinhas de comida com conceitos cool, para ai dez mil barbeiros (igualmente cool), assim como centenas de ideias de negócio que se afirmavam como inovadoras e disruptivas, mesmo quando grande pare delas eram algo desnecessárias. Apps que so serviam para mandar um yo aos amigos, encomendas de kebab num clique.
Será que tudo isto fez bem ao mundo? Ainda ninguém suspeitava que podiam existir empresas a mais? (…) Cestos de piquenique, cuecas no recorte de um pixel, tudo parece ter tempo de antena.”
Alex Couto, Sinais de Fumo
Enquanto o turbilhão do discurso empreendedor pode ter passado, os seus efeitos não. As cuecas de pixels não passaram a fazer parte dos guarda roupas de famílias da Alemanha e as t-shirts do herói Martim nunca mais foram vistas. No entanto, um outro tipo de empreendedorismo tomou conta do país: o turismo.
Não foi coincidência este negócio ter chegado a níveis que até surpreenderiam os seus adeptos mais optimistas. Edifícios de habitação foram transformados em Alojamentos Locais, casas de férias foram postas no Airbnb e restaurantes passaram a viver virados para a clientela de fora, com obras tais como o pastel de bacalhau com queijo da Serra.
No meio dos destroços dos projetos de empreendedorismo que saíram frustrados, o edifício do turismo paira sólido. Enquanto a febre do empreendedorismo era totalmente focada no acto de empreender, sem qualquer discussão dos setores a desenvolver e que ferramentas estariam disponíveis para os promover, o turismo era a grande aposta económica do Estado português. O governo desenvolveu uma política industrial-exportadora para uma atividade de baixo valor em que o país já tinha algum grau de especialização.
Os empreendedores do turismo não se limitaram a empreender, contaram também com uma política direcionada para a sua atividade. As leis e as isenções de impostos promoviam o Alojamento Local; as companhias aéreas estatais (TAP e SATA) introduziram o Stopover para captar turistas de voos intercontinentais; e os vistos gold e os residentes não habituais procuravam novas procuras. Todo este sistema não só foi preservado quando a direita saiu do poder, como foi acarinhado pelas governações Costa. (Podes consultar artigos sobre o desenvolvimento do turismo publicados por esta newsletter, por exemplo, aqui, aqui, aqui e aqui.)
Tal como as personagens empreendedoras de Sinais de Fumo terminam a história a perceber que, apesar do crescimento, o sucesso da Green assentava em fundações frágeis, também o tempo coloca em xeque o sucesso do modelo de desenvolvimento português da última década.
Quando se torna claro que os grandes sucessos económicos dos últimos anos estão nos Microchips de Taiwan, nos carros elétricos Chineses, fármacos europeus, e nas aplicações de inteligência artificial dos Estados Unidos da América, o lema de “bater o punho” que foi patrocinado em Portugal mostra as suas fragilidades profundas.
Tal como a personagem ”a Velha” - uma veterana no negócio da cannabis - fecha o livro a dar uma lição aos empreendedores Charlie, Alex e Igor, a realidade ensina-nos que as receitas antigas e convencionais, no caso dos modelos de desenvolvimento, o planeamento, a soberania e a estratégia, são o caminho para o sucesso.
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas, fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
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