O legado da Nova SBE: meio século de atraso económico
As grandes decisões de política económica do Portugal pós-revolucionário confundem-se com os rumos da Nova Economia. Se Portugal falhou na convergência, o papel desta faculdade não pode ser ignorado.
Em Julho de 2020, a Nova Economia (Nova School of Business and Economics, a antiga Faculdade de Economia da Universidade Nova) encontrou-se na rara situação. A Revista Sábado – pela mão de Bruno Faria Lopes – reportava que os altos escalões da faculdade se sentiam incomodados com os artigos de opinião de Susana Peralta. As colunas desta docente no Público, que por vezes criticavam mecenas da instituição, como a EDP, não eram bem acolhidas.
Esta não foi a primeira vez que a faculdade foi atacada, mas marcou uma mudança no rumo das suas relações públicas. Dias mais tarde, era a vez de Fernanda Câncio assinalar que o reitor da faculdade recebia centenas de milhares de euros do Santander, apesar de ter exclusividade com a faculdade. Se antes deste episódio, os seus críticos eram figuras abertamente de esquerda – o colunista Britânico Owen Jones apelidou-a de universidade do consenso – agora a Nova Economia passava a ter de lidar com fogo amigo. As críticas começaram a partir de personalidades como o economista Luís Aguiar-Conraria da Universidade do Minho, insuspeito de afinidades revolucionárias.
Quase quatro anos depois, no programa É ou Não É da RTP, sobre os 50 anos do 25 de Abril, Pedro Oliveira, o atual reitor da Nova Economia, afirmava que uma das grandes vitórias do Portugal democrático era o progresso no ensino, em especial no nível superior. Minutos depois, como um exemplo dessa conquista de Abril, este citou o facto de a sua faculdade ter 72% de alunos de mestrado estrangeiros. A atriz Rita Blanco, algures entre a confusão e a estupefação, perguntou qual o benefício de recebermos tantos estrangeiros no sistema universitário nacional. A resposta de Pedro Oliveira não mencionou mudanças no tecido produtivo nacional, através da criação de novas empresas por ex-alunos em território nacional, fruto de um ambiente propício ao intercâmbio de ideias; também não citou ocasiões em que o tecido empresarial português tenha beneficiado desta mão de obra especializada. A explicação era bem mais simples: os alunos estrangeiros não ficam cá depois de acabarem o mestrado, mas enquanto cá estão gastam dinheiro e arrendam casas. Ao que Rita Blanco exclamou, compreensivamente, “credo!”.
Atualmente, a reação da atriz portuguesa pode parecer normal, dada a crise habitacional que o país enfrenta, mas é uma novidade na vida da Nova Economia. Em especial no período da Troika, a faculdade viveu uma longa década de lua de mel mediática. No decorrer desses anos duros, a instituição era celebrada acriticamente pela sua estratégia de internacionalização, pela subida nos rankings e pela construção de um novo campus moderno em Carcavelos. Era a janela para tornar Portugal na “California da Europa”.
Com o passar dos anos as fileiras daqueles que questionam os benefícios para o país dos feitos da Nova Economia têm vindo a alargar-se. Contudo, o papel desta instituição no desenvolvimento nacional vai bem além da última década. Os seus quase 50 anos confundem-se com a evolução da política económica portuguesa no período pós-revolucionário. Se o sonho da convergência com a Europa continua por concretizar, qual foi e será o papel da Nova Economia nesse falhanço?
BOYS DE CAMPOLIDE: A NOVA E O PROJETO EUROPEU
A Nova Economia foi fundada ainda na ressaca da revolução em 1978, por Alfredo de Sousa, um académico que foi deputado constituinte pelo PSD e orientador de economistas como Miguel Beleza (Ministro das Finanças de Cavaco Silva) e António Borges (consultor para as privatizações no governo Passos Coelho). Como foi descrito pelo economista João Rodrigues, no seu livro ‘O Neoliberalismo não é um Slogan', a faculdade foi criada como um contrapeso ideológico no Portugal pós-revolucionário, em que o intervencionismo económico era dominante nos círculos intelectuais.
A par da privada Universidade Católica, foi o principal lugar de acolhimento de economistas neoliberais portugueses na década de 1970. Muitos destes vinham dos Estado Unidos da América, após concluírem os seus doutoramentos, e ambicionavam reverter o equilíbrio económico surgido do período revolucionário, caracterizado pelas nacionalizações, pela expansão das proteções sociais, laborais e do sindicalismo.
Os intelectuais da Nova Economia participaram na criação progressiva de um consenso em torno da integração no mercado único europeu. Com isto, o espaço para o intervencionismo económico seria reduzido e as transformações económicas de Abril eram revertidas. O Chile de Augusto Pinochet teve os Chicago Boys, que implementaram uma forte e rápida liberalização económica - a terapia de choque. Já em Portugal, com os governos do Centrão, surgem os Boys de Campolide - apesar de hoje a instituição se orgulhar de estar junto à praia de Carcavelos, a sua ascensão foi feita à entrada de um bairro de Lisboa.
Desdobrando-se entre as aulas, o comentário e funções executivas, figuras como Miguel Beleza, Jorge Braga Macedo e António Nogueira Leite defenderam durante anos medidas como as privatizações e a liberalização da banca, a desregulação do mercado laboral e das rendas, e a entrada na moeda única. A sua função ia além da defesa de posições ideológicas. As suas credenciais forneceram uma aparência de verdades científicas, o que podemos classificar de criação de consensos.
Assim, Cavaco Silva faz da integração europeia o seu principal projeto político. Jorge Braga de Macedo, seu ministro das finanças e catedrático da Nova Economia, é um dos signatários do Tratado de Maastricht, que torna a entrada no Euro irreversível. Os Boys de Campolide cumpriam a sua missão fundadora de colocar Portugal longe de uma política económica intervencionista de feições coletivistas.
Um episódio marcante deste papel de geradores de novos consensos foi o debate de ideias sobre o Euro, dentro do PS, entre Vítor Constâncio e António de Sousa Franco (ministro das finanças de Guterres) na década de 1990. O Euro era uma experiência inédita, em que os estados abdicam da sua soberania monetária. Existiram vários episódios de instabilidade durante o seu precursor (Mecanismo Europeu de Taxas de Câmbio). Constâncio alertava para os riscos da união monetária, contrastando-a com o modo de funcionamento nos EUA, apelidando mesmo o projeto do pacto de estabilidade de “pacto sinistro”. Quando confrontado com estas e outras preocupações, Sousa Franco afirmava que um estudo encomendado pelo Governo, coordenado por economistas da Nova Economia, mostrava que os instrumentos cambiais eram cada vez menos relevantes e que a economia nacional estava cada vez mais sintonizada com o Bloco Europeu. Décadas depois, a realidade veio dar razão ao diagnóstico de Constâncio, mas a Nova Economia nunca foi chamada a fazer um exercício de autocrítica.
HIATO: UMA NOVA FACULDADE DOS NEGÓCIOS
Com a integração europeia em marcha, a Nova Economia precisava de uma nova raison d'etre. O seu papel ativo na formulação de políticas, especialmente durante o Cavaquismo, guinou o país para um longo consenso neoliberal em torno da privatização de ativos do Estado, da contratualização de PPPs, da desregulação e liberalização de mercados chave, como o laboral. No final do século XX, numa economia em que os governos têm cada vez menos instrumentos, a faculdade aparenta estar num hiato, em que a sua função como formuladora ativa de políticas públicas e de disputa ideológica é reduzida. Também resultado dessa vitória ideológica, ao “modernizarem-se”, a maioria das faculdades de economia portuguesas adotaram o modelo americanizado da Nova Economia, retirando-lhe uma certa diferenciação. Depois de conquistar a dianteira na influência sobre as políticas públicas, a Nova Economia apostou em ser a primeira escolha dos alunos que aspiravam à ciência de Adam Smith.
Neste contexto, a faculdade segue um processo de transformação. No final dos anos 1990, o inglês era introduzido no currículo, e viria a tornar-se num dos pilares da instituição. A constitucionalidade desta iniciativa foi posta em causa por Jorge Miranda, um dos principais constitucionalistas do país. A partir no novo milénio, este processo acelera e entra num novo patamar. A faculdade muda a sua identidade de forma radical. Em 2012, passou da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa para Nova School of Business and Economics (Nova SBE). Uma alteração que vai além de objetivos de internacionalização. Em vez de ser uma mera tradução do nome, algo como Nova School of Economics, a Economia perdia peso no nome, em favor das áreas da Gestão e dos Negócios. A instituição é pioneira na organização de Feiras de Emprego e os discursos internos falam da emigração como algo sexy e desejável. Em 2015, a reitoria passou de José António Ferreira Machado, um economista da sua tradição fundadora e antigo quadro do Banco de Portugal, para Daniel Traça, ex-diretor do programa de MBA de uma universidade estrangeira, a cara da internacionalização enquanto vice-reitor da faculdade.
A par disto, transformava-se numa máquina de fornecimento de cérebros para as grandes empresas, limava a sua reputação com uma gestão de relações públicas ao nível das melhores multinacionais e começa a participar no jogo dos rankings internacionais. Numa economia que já não mostrava a pujança salarial dos anos 1980-90 para os diplomados, a Nova Economia dava garantias no mercado de trabalho nacional, e um caminho suave para a emigração qualificada. Com tudo isto, a Nova Economia tornou-se na faculdade de Economia em que muitos pais aspiravam ver os seus filhos e as médias de entrada aproximavam-se dos patamares cimeiros. O prestígio dos seus dois cursos de licenciatura - Gestão e Economia - tornaram a faculdade numa espécie de Medicina das Ciências Sociais. Mas este processo não foi feito sem uma nuance: enquanto construiu a sua reputação apostando em wannabes de economistas neoliberais e intelectuais públicos ao estilo de Milton Friedman, as referências de hoje aproximam-se de figuras como Elon Musk ou Jeff Bezos.
As reformas liberais defendidas pela Nova Economia nas décadas anteriores abriram as brechas para esta transformação interna e posterior estratégia de internacionalização. Com as revisões constitucionais, a introdução de propinas e o processo de Bolonha, que veio normalizar os mestrados sem teto de propinas, a Nova Economia focou-se na venda de mestrados e MBAs - mais caros do que em muitas faculdades privadas - a quem os possa pagar. Os alunos de licenciatura que transitavam para mestrado na mesma instituição passaram a conviver nos mestrados com colegas, geralmente estrangeiros, que se mostravam bem menos preparados. A cuja capacidade de pagar propinas e o contributo para os rankings internacionais sobrepõe-se- ao mérito académico.
A Economia na sala de aulas pode ter passado para o segundo plano, mas o período da Troika demonstrou que o papel da faculdade na definição dos rumos políticos e ideológicos do país se manteve intacto. Mesmo acolhendo mais do que nunca a primazia dos mercados, a Nova Economia não se deixou intoxicar pela sua própria propaganda. Recorrendo a outra prática importada, começou a promover programas de networking entre antigos alunos e programas de mentoria destes para alunos atuais. Apesar de ensinar que um empregador procura um trabalhador apenas pelo valor que potencialmente trará à empresa, na hora da verdade, a Nova Economia não ignora a força que um bom contacto pode ter para encontrar um emprego.
A NOVA NA TROIKA: ACONSELHAR ATRAVÉS DO EXEMPLO
Enquanto nos primeiros anos a influência da Nova Economia nas opções do país fazia-se pelo caminho da conquista ideológica e na participação em governos, a sua segunda vida acrescentou uma nova dinâmica. Agora a Faculdade também liderava pelo exemplo, dando o corpo ao aprofundamento neoliberal da sociedade portuguesa. Esta nova vocação coincide com a crise financeira e a chegada da Troika a Portugal, em que a estratégia de “desvalorização interna” (melhorar o equilíbrio externo através do empobrecimento) foi a regra.
Enquanto o governo falava em promover exportações e encontrar novos mercados, a Nova Economia vendia mestrados caríssimos a estrangeiros. A Moody’s cortava o Rating da dívida da República para lixo; o Financial Times subia os mestrados da Nova Economia nos rankings. Ministros diziam que não havia dinheiro para despesa pública e que era preciso cortar as gorduras do Estado; a faculdade financiava um novo campus ao apostar no mecenato dos grandes grupos económicos. A coligação PSD-CDS pedia aos portugueses que saíssem da sua "zona de conforto" e considerassem emigrar; a Nova Economia criou parcerias para mestrados executivos com a Angola Business School.
Estes contrastes cimentavam a faculdade como símbolo incontestável do sucesso, em contracorrente com o contexto nacional. Num país marcado pelo desemprego e a emigração, esta faculdade de Economia parecia ser a única instituição ligada ao Estado que prosperava. O governo tentava desesperadamente mostrar que o Estado e o tecido empresarial português estavam num processo de transformação, e a Nova Economia servia de montra para a nova vida da economia portuguesa, a caminho de se tornar a Califórnia da Europa.
A capacidade de influenciar as políticas pelos corredores dos ministérios persistiu, mesmo sem ter os seus quadros nos principais postos. A Nova Economia é um importante pilar da estratégia do governo PSD-CDS e do trio composto pelo Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional. As políticas de austeridade, o reverso da medalha da integração europeia defendida nas décadas anteriores, argumentavam que Portugal, sem ter soberania cambial por estar no Euro, deveria desvalorizar o valor do Trabalho para aumentar a competitividade e as exportações. As impressões digitais da Nova Economia podem ser encontradas nas duas principais componentes desta estratégia.
A revisão do Código do Trabalho, que incluiu medidas como a redução nas indemnizações por despedimento e no pagamento por horas extra, dá-se pela mão de Pedro Silva Martins, então Secretário de Estado do Emprego e Professor Catedrático da faculdade.
A redução da Taxa Social Única (TSU, contribuição da segurança social), financiada por um aumento do IVA (imposto extremamente desigual), era a principal bandeira dos defensores da desvalorização interna. A medida foi estudada por outro quadro da Nova Economia, o economista italiano Francesco Franco, que ficou conhecido como o “pai da TSU”. A política era tão impopular que acabou por não ser implementada, após uma forte contestação social e alguma resistência por parte dos empresários. Apesar do total falhanço político da medida, o título de “pai da TSU” continuava a ser apresentado como uma medalha - o tratamento mediático favorável à faculdade era inquestionável.
NA VANGUARDA DA GENTRIFICAÇÃO E DA DESIGUALDADE
A estratégia de desvalorização interna desenhada no período da Troika, resultou num modelo de desenvolvimento altamente dependente do turismo, sinónimo dos dias de hoje, que trouxe consigo uma crise habitacional por arrasto. O aconselhamento através do exemplo da Nova Economia, que criou um campus em Carcavelos, também trouxe os custos sociais da mercantilização e aprofundamento de desigualdades.
Da mesma forma que os turistas criam pressões no mercado de habitação, acabando por expulsar trabalhadores dos locais onde vivem, este turismo universitário tornou as propinas incomportáveis para a esmagadora maioria dos estudantes residentes em Portugal. Com os programas de mestrado a 13.000 Euros (com duração de um ano e meio), é natural que mais de 70% dos alunos venham do exterior. O Reitor da faculdade afirma que existem bolsas (menos de 500), financiadas com os seus “lucros”, para que “ninguém fique de fora” e para que “todos aqueles que têm condições académicas para serem estudantes na Nova possam de facto ser admitidos“. O argumento é ancorado nas suas próprias contradições: os lucros, através de preços incomportáveis para a realidade nacional, criam um número reduzido de bolsas. Uma estratégia de relações públicas que tenta camuflar os efeitos gentrificadores do turismo universitário.
Para aqueles que fazem um grande esforço financeiro, muitas vezes assente em dívida, para tirar um mestrado nesta instituição, os preços e o seu programa são um convite à emigração. Enquanto esta é uma decisão legítima e racional para recuperar o investimento feito, este processo levanta sérias questões sobre o papel de uma instituição pública. No seio do setor público, ganha espaço uma versão do Estado Social elitizante e contra os princípios da Constituição da República, em que domínio da língua inglesa e o preço dos mestrados tornam a corrida entre ricos e pobres ainda mais difícil.
Outro elemento por vezes ignorado é o papel do campus localizado em Carcavelos como um mecanismo geográfico de exclusão social. Como grande arquiteto financeiro deste campus, surge Pedro Santa Clara, mais um docente português com um percurso nos EUA. Mas ao contrário de um perfil como o de Jorge Braga de Macedo, este não provém de uma escola da prestigiada Ivy League, mas sim da Californiana UCLA. A sua missão não era a de se apresentar em tons de cinzento na televisão para esclarecer o cidadão sobre os benefícios da flexibilização dos mercados de trabalho. Tal como a própria faculdade, o professor modelo transforma-se. Santa Clara encarna a função de empreendedor com uns toques de influencer a la Steve Jobs, pronto para dar uma nova roupagem ao aprofundamento neoliberal.
A faculdade, ao deslocar-se do centro de Lisboa, para um lugar a 20 minutos a pé da estação de comboios de Carcavelos, optou por distanciar-se de milhares de jovens da Área Metropolitana de Lisboa, potencialmente interessados em fazer a licenciatura (com propinas reguladas) nesta instituição. Ao contrário do campus da Nova de Ciência e Tecnologia, não coloca uma zona como a Charneca da Caparica no mapa. Para os jovens de zonas como o Montijo, Sintra ou Alverca, a faculdade passou a ser semi-inacessível por transportes públicos. Apesar de não ser a única faculdade a tomar esta decisão, o caso da Nova Economia enquadra-se na lógica elitizante do seu novo modelo de atuação.
Dentro das instalações em Carcavelos, uma nova fronteira de concessão de espaços é explorada. Com mais uma importação dos EUA - as doações de mecenas e de antigos alunos - e recorrendo às velhas práticas da burguesia portuguesa - os apoios generosos do Município de Cascais -, a comoditização do espaço foi levada a um outro nível. Da mesma forma que uma parte significativa dos espaços públicos das cidades foram concessionados para esplanadas e outros negócios turísticos, o turismo universitário da Nova Economia monetiza os cantos do seu novo campus. Em contraste com o antigo colégio de Jesuítas em que a faculdade deu os primeiros passos, o novo e moderno campus confunde-se com um centro comercial, não só pela sua arquitetura, como também pela presença de marcas no seu espaço. As denominações comerciais não preenchem apenas o espaço de serviços, como dão também o nome a salas de aulas e espaços públicos - os alunos têm o luxo de se cruzar na EDP plaza (o tal mecenas cujas críticas de Susana Peralta geraram incómodo), de assistir a palestras no auditório Jerónimo Martins, de estudar na Teresa e Alexandre Soares dos Santos Library e acabar o dia na praia, após percorrer o Sagres Beach Way. A fantasia anarco-capitalista de bilionários ganha vida no campus de Carcavelos.
QUANTO VALE A NOVA SBE?
A Nova Economia existe há quase 50 anos, o currículo das licenciaturas foi mudado para inglês há quase 20 anos e o novo campus aproxima-se do seu décimo aniversário. Em todo este período, contou com os maiores elogios por parte da opinião publicada em Portugal. Assim, em 2024, é válido colocar a pergunta: qual é o valor que a “Nova SBE” traz para o país?
O atual Reitor, ao afirmar que a faculdade tem um contributo positivo para o país porque os estudantes estrangeiros pagam rendas em Portugal, ilustra a fragilidade do fraco legado da Nova Economia. Os alunos estrangeiros e o novo campus não trouxeram uma economia de alto conhecimento por arrasto - pelo contrário, encaminharam o rentismo imobiliário e a elitização do acesso à educação. O reitor da Nova Economia não tem o equivalente (na sua área) a um desenvolvimento de uma tecnologia inovadora como a Via Verde (Universidade de Aveiro) ou uma parceria tecnológica com a Bosch (Universidade do Minho) para mostrar.
Há um outro fator a que a faculdade habitualmente se socorre para medir o seu sucesso: a sua posição nos rankings. Como foi mostrado na newsletter Fratura Exposta, de Diogo Martins, os rankings em que a Nova Economia e outras faculdades participam não medem a qualidade do ensino ou a produção de conhecimento científico; regem-se por critérios como a percentagem de alunos estrangeiros. Esta divergência entre os rankings internacionais, a atratividade das faculdades para estudantes estrangeiros, e o nível de desenvolvimento de uma região já era uma experiência bem conhecida no Reino Unido. O Norte de Inglaterra, uma região relativamente pobre, desenvolveu e expandiu universidades prestigiadas, com posições nos rankings acima da maioria das Universidades noutros países do norte da Europa. Ainda assim, esta região continua estagnada, com níveis de produtividade abaixo da Área Metropolitana de Lisboa e incapaz de reter cérebros.
A promessa da prosperidade e modernização económica através deste novo sistema de ensino superior não chegou, e, pelo caminho, não foram realmente debatidos os problemas deste modelo de escola pública, nomeadamente a influência que o mecenato privado tem sobre os quadros da faculdade, como ficou claro no episódio em torno de Susana Peralta. Em simultâneo, a elitização do acesso à faculdade por via de um novo campus foi desvalorizada como uma opção moderna, arrojada e socialmente indolor, sobrepondo-se a proximidade a uma praia aos outros custos da decisão. Daniel Traça (anterior reitor) ambicionava ter 40 a 45% alunos estrangeiros e excluía a possibilidade de quotas para alunos nacionais. A estratégia era aceite com naturalidade. No fundo, o que era bom para a Nova Economia, era ser bom para o país. Para esta instituição, se o objetivo era representar o interesse público, fazer o que lhe era conveniente bastava.
Do ponto de vista da transformação do tecido económico nacional, a faculdade é, na melhor das hipóteses, uma fraude relativamente inofensiva, aquilo que José Neves (professor e membro do Conselho Geral da Universidade Nova de Lisboa) apelidou de “fábrica de encher chouriços”, para o desagrado da Nova Economia. Numa hipótese pior, a Nova Economia é uma espécie de agência pública para a emigração de cérebros, fazendo a ponte entre a entrada no ensino superior e uma exportação de cérebros que pouco traz ao país e com custos para o contribuinte, promovendo, simultaneamente, o turismo universitário, uma atividade de pouco valor acrescentado para o país. Todas as críticas acima são verdade, mas ainda há um ângulo que tende a não ser exposto: a Nova Economia continua a difundir a raquitização do tecido económico do país e do Estado Social saído da revolução de 1974.
A FACULDADE ÓRBITA
A história da Nova Economia e as movimentações recentes dos seus principais agentes sinalizam que, embora incerto, o futuro desta instituição não se vai ficar pelo turismo universitário. Após imprimir a sua cultura e ganhar capilaridade, solidificou o papel de astro em torno do qual orbitam fundações de oligarcas, partidos políticos de direita e quadros empresariais. Dentro lógica descentralizadora, vai surgindo a ambição de a Nova Economia em se desvincular da Universidade Nova para ter “mais autonomia para competir nos rankings”.
A Nova Economia já encostou Portugal a uma posição marginal dentro do espaço europeu e direcionou a adaptação da economia portuguesa para atividades de baixo valor como o turismo. Não obstante, o seu papel desenha-se sob uma nova fronteira. Pedro Santa Clara é a figura que deixa o rasto mais evidente nesta nova dinâmica.
Do ponto de vista partidário, a relação outrora umbilical com o PSD tem perdido peso. O PSD deixou de ser o quase “Partido Único” da Nova Economia. Embora o partido e a faculdade mantenham uma forte relação através de quadros como António Nogueira Leite e Jorge Braga Macedo, o surgimento da Iniciativa Liberal (IL) e do seu Think Tank adjacente, o Mais Liberdade, alterou esta dinâmica. Santa Clara é um dos fundadores e membro do Conselho de Administração do Mais Liberdade e foi mandatário nacional da IL nas últimas eleições legislativas. Tal como outros académicos, empresta a sua reputação e credenciais para dar uma aparência técnica e rigorosa a meros exercícios de propaganda partidária.
A descentralização e a atomização têm sido mesmo a dinâmica marcante desta nova faceta da Nova Economia. Em termos corporativos, tem surgido uma rede de organizações na órbita da faculdade que permitem um aprofundamento de relações com o poder político e económico, onde tal como na própria instituição, a fronteira entre o que é privado e o que é público é nebulosa. De vocação privada nos dias de sol e de natureza pública nos dias de chuva, a Nova Economia sintetiza na perfeição a natureza da burguesia portuguesa. A construção do novo campus contou com a Fundação Alfredo de Sousa, formalmente na esfera da faculdade, a Câmara Municipal de Cascais, e representantes dos grandes grupos económicos em solo nacional como "parceiros fundadores", como é o caso do Santander e de instituições ligadas ao império Pingo Doce. Em 2021, a fundação passou a ser presidida pelo atual ministro das infraestruturas, Miguel Pinto Luz, que esteve envolvido no projeto através da vice-presidência da Câmara Municipal de Cascais. A publicação de estudos sem validação por pares, como o recente estudo do IRC coordenado por Pedro Brinca (com Paulo Núncio, deputado do CDS), publicado para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, os estudos encomendados “por parceiros” como a EDP e as cátedras patrocinadas por empresas, chapam a perversidade e falta de independência deste modelo de proximidade com o mundo das empresas.
Mais uma vez, Santa Clara reforça esta nova natureza descentralizada e menos institucionalizada Nova Economia. Depois de adquirir uma vasta experiência na angariação de fundos entre as elites económicas nacionais, e mantendo um pé dentro da Nova Economia, o professor universitário tornou-se “empreendedor social” com projetos de educação na área de programação e tecnologia. Com o espírito desempoeirado de um James Bond, fundou a empresa Shaken not Stirred, focada em expandir o modelo de ensino alavancado no mecenato de empresas. A fundação da Escola 42 valeu-lhe o aval da imprensa, com a Visão a distinguir Santa Clara como personalidade do ano. No caso da TUMO, veio ao de cima que não há mecenato que afaste as importações neoliberais do Estado, com Carlos Moedas a querer apressar um investimento de 5 milhões de euros no projeto, entretanto abandonado por pressão da oposição camarária.
Enquanto os velhos ideólogos da Nova Economia propunham grandes reformas para o país, Santa Clara dispõe-se a usar os conhecimentos e contactos adquiridos, através das suas funções numa faculdade pública, para penetrar as fendas deixadas pelo Estado raquítico e dar o exemplo a quem procure seguir as suas passadas. A sua visão para a educação, focada na redução no peso do Estado como provisor, assente na autonomia do ensino e na concorrência entre operadores, abriria mais oportunidades deste género para Nova Economia e para os agentes que se encontram na sua órbita.
Esta tendência de descentralização também já se manifesta na forma como a faculdade influencia o debate público. Sem renunciar ao papel histórico dos seus académicos na imprensa, a faculdade molda novas gerações de ex-alunos à sua medida. E, apesar de menos articulados em ciência económica, são veículos valiosos para a criação de novos consensos.
A jovem Mafalda Rebordão, co-fundadora do Coletivo Matéria, é talvez o exemplo mais visível deste fenómeno. A legitimidade conferida pela Nova Economia abre a porta para participar em debates na televisão portuguesa. Dado o tiro de partida num artigo na imprensa internacional, que se confunde com publicidade corporativa da Nova Economia, Rebordão lançou-se na acumulação de títulos em que as funções concretas são difíceis de interpretar para o comum mortal - membro do grupo de reflexão jovem junto ao Presidente da República, TEDx speaker, Young Leader no Symposium da Universidade de St. Gallen, membro do comitê executivo da AI Talent HUB lead, Membro do Conselho Executivo da Confederação Empresarial de Portugal (CIP) - entre muitos outros que povoam o Linkedin da jovem estrela.
Quando fala na imprensa, Rebordão é apresentada (e apresenta-se) como uma ex-aluna da Nova Economia cuja faculdade lhe deu os instrumentos necessários para optar pela experiência da emigração. Segundo a sua narrativa, viver em cinco países diferentes e trabalhar na Google abriu os olhos de Rebordão para a falta de ambição do seu país. Quando vamos além dos títulos e procuramos pela atividade política concreta de Rebordão, apenas encontramos a co-fundação do Coletivo Matéria. Com mais de meio ano de existência e amplo espaço mediático, o Coletivo Matéria tem pouco mais do que um manifesto publicado. Enquanto os quadros mais velhos se dedicam a acumular títulos nos conselhos de empresas, organismos públicos e instituições, Rebordão faz o mesmo para medalhas do Linkedin. Quando chega a hora de discutir políticas concretas, o discurso não diverge. As velhas conversas de empresas sufocadas por impostos casam-se com as novas posições favoráveis ao IRS jovem. Sempre puxando pela faceta pessoal no seu discurso, numa linguagem pesada em anglicismos, a jovem fala das expectativas frustradas dos amigos que regressaram a Portugal e continuam a aguardar por um choque fiscal (ignorando a existência das borlas do Programa Regressar). O tom moralista com que critica o país cruza-se com uma pretensão de telepatia com os jovens que Rebordão faz-se representar.
A jovem emerge como o verdadeiro produto da Nova Economia - a pujante economia que a instituição prometeu não se materializou, mas Rebordão corresponde à imagem de um jovem idealizada pela faculdade há dez anos atrás.
As últimas décadas mostram que a Nova Economia se reconfigurou gradualmente. Passou de uma instituição de ensino e criação de conhecimento para uma espécie de híbrido entre uma faculdade, as grandes sociedades de advogados e um Think Tank. Uma organização reputada, corporativamente descentralizada, envolvida nos bastidores de decisões de diferentes agentes políticos e em disputa por contratos e parcerias com o Estado, bem como na publicação de estudos feitos por encomenda. A sua Fundação (Alfredo de Sousa), as parcerias com grandes grupos económicos e Think Tanks partidários, as redes de ex-alunos e as organizações privadas na sua órbita tornam o universo Nova Economia tão influente como nunca e cada vez menos transparente e escrutinável. O futuro pode deixar-nos com saudades da “fábrica de encher chouriços” com tiques autoritários.
50 ANOS DE SOCIALISMO NOVA
No debate público, é frequente apontar-se o dedo aos políticos, à corrupção, ou mesmo a questões culturais do povo português para justificar a relativa estagnação vivida no século XXI. O papel histórico das elites da Nova Economia na formulação das grandes políticas económicas e na criação de consensos é convenientemente ignorado.
Primeiro, os principais quadros da Nova Economia desvalorizaram os riscos da entrada na moeda única. Quando a crise das dívidas soberanas chegou (e deu razão aos seus opositores) a faculdade falava na modernização da economia e no aumento das exportações através do empobrecimento. Os rankings, os alunos estrangeiros e o novo campus eram a cara da modernização necessária para o país. Em 2017, Daniel Traça (enquanto reitor da faculdade) afirmava que “o modelo de crescimento que saiu da crise é bom para Portugal”. Pouco anos depois, ficava evidente que esse modelo de crescimento - cujo papel da Nova Economia é fazer com que alunos estrangeiros “gastem dinheiro e paguem rendas” - tinha criado uma das maiores crises habitacionais do mundo desenvolvido e outras limitações que o tempo tratará de desvendar. O tempo veio mostrar que esta estratégia foi apenas uma fuga para a frente: afinal, a Nova Economia – tal como o resto do país – tinha apenas apostado no turismo, ignorando a existência dos problemas deste modelo para o resto da sociedade.
Por muito que seja popular atribuir aos "50 anos de socialismo" a causa da esclerose económica portuguesa, a realidade é que a Nova Economia foi essencial no desenho e promoção de muitas das políticas que atrofiaram o desenvolvimento económico e social do país. Com a instituição quase a celebrar meio século, um neoliberalismo cultural ramifica-se e promete ser a vanguarda da burguesia periférica e rentista de Portugal no futuro próximo.
Usando as sábias palavras de Rita Blanco, a questão que se levanta para a Nova Economia é: foi boa para o país como?
NOTAS
Recomendamos os seguintes conteúdos que contribuíram para a construção deste ensaio.
- O Neoliberalismo Não é um Slogan, João Rodrigues, livro
- Mão Invisível - uma história do neoliberalismo em Portugal, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, documentário/audiovisual
- O ranking do Financial Times é uma fraude académica, Diogo Martins, artigo na Newsletter Fratura Exposta
- A Universidade Neoliberal e os seus Rankings, Tiago Santos, artigo no blogue Ladrões de Bicicletas
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Correcção verbal: diz-se 'captar', não 'capturar'...
Bom dia, a menção que fazem ao choque de ideias entre Vitor Constâncio e Sousa Franco relativamente ao Euro está documentado ou é uma menção de memória? Seria interessante ler alguma coisa sobre isso. "googlei" e não encontrei nada de relevante. Se tiverem alguma dica, avisem :-)
Abraços