Cavaco Silva continua a alimentar os mitos da sua governação, apesar das suas políticas terem sido nefastas
O antigo primeiro-ministro e Presidente não perde uma oportunidade para se vangloriar da suposta era de ouro da sua governação. Mas a verdade é outra.
Quando Aníbal Cavaco Silva se dirige à nação, o país pára, escuta e comenta. Ou pelo menos quem lhe dá importância. Cavaco Silva fá-lo com longos textos de opinião ou publicando livros de memórias, nos quais deixa recados e críticas políticas, ajustando velhas ou novas contas. E o cortejo segue e avança: notícias televisivas em loop a dar conta das suas palavras, horas e horas de comentário político que tentam desvendar as suas intenções e, se assim o justificar, respostas de quem ele atacou. O país mediático pára, escuta e comenta. Mas será que há genuinamente novidade no que ele nos diz? Ou limita-se a alimentar mitos que ele próprio criou?
Um tema recorrente das intervenções do antigo presidente Aníbal Cavaco Silva é o seu legado. O economista foi primeiro-ministro pelo PSD durante uma década (1985-1995), com duas maiorias absolutas pelo meio. Nas suas intervenções declara frequentemente este período como uma era de ouro do desenvolvimento em Portugal. Nas palavras do próprio, no passado dia 17 de janeiro, “por ação dos meus governos, o desenvolvimento de Portugal, em todas as suas dimensões, deu um salto em frente que muito surpreendeu a União Europeia e que, depois, em nenhuma outra década foi alcançado resultado semelhante”.
Ainda em dezembro, num texto desconexo, em que cita um economista de esquerda, critica as contas certas do PS, e ao mesmo tempo, fala do “monstro da despesa pública”. Cavaco Silva revelou profundas contradições oportunistas de cariz eleitoral.
Mas, no seu jeito autoelogioso e dentro dos seus ziguezagues oportunistas, existem duas constantes nas intervenções de Cavaco Silva: 1) a ideia de ter sido um governante reformista de matriz keynesiana e social-democrata e 2) ser o grande obreiro de um grande período de bonança e convergência económica entre as economias portuguesa e europeias. Os títulos escolhidos para os seus dois últimos livros - 'Uma experiência de Social-Democracia Moderna' e 'O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar' - não deixam margem para dúvidas.
O livro ‘O Neoliberalismo não é um slogan', de João Rodrigues, é um ponto de partida útil para analisar os mitos fundadores do cavaquismo. Além de uma análise mais global ao neoliberalismo, o economista e fundador do blogue Ladrões de Bicicletas sintetiza a evolução histórica do neoliberalismo português e o seu enquadramento político-institucional.
Ao contrário da imagem do último bom governante reformista, este livro demonstra que o projeto político de Cavaco Silva é o início do ciclo de fraco crescimento e divergência da economia portuguesa com as do centro da Europa.
CAVACO SILVA, O KEYNESIANO DE MATRIZ SOCIAL-DEMOCRATA
Portugal, ao contrário dos países do centro do capitalismo, construiu um Estado Social tardio por via de um processo revolucionário, já no final da década de 1970. Por outras palavras, enquanto a então primeiro-ministro britânica, Margaret Thatcher, começava a desmantelar o modelo do pós-guerra Britânico, Portugal criava o SNS e aprovava, em contracorrente com o resto da Europa,direitos sociais.
Se o neoliberalismo original proveio da Sociedade Mont Pèlerin (organização intelectual criada em 1947 para combater o modelo social do pós-II Guerra Mundial), a sua versão portuguesa cresceu através da Universidade Católica e da Faculdade de Economia da Universidade Nova, fundada em 1978 e que hoje se chama Nova School of Business and Economics. Estas instituições começaram a integrar economistas portugueses, muitos deles com doutoramentos nos Estados Unidos, ideologicamente contrários ao intervencionismo económico (de várias escolas de pensamento) dominante no pensamento intelectual pós-revolucionário.
Nas salas destas universidades começou a ser trazido e adaptado o conceito de “a pequena economia aberta”, que parte da ideia de que o planeamento numa economia pequena periférica é ineficaz, ou mesmo contraproducente, e que o caminho para o progresso se dá através da integração europeia. Por arrasto, viria uma suposta bonança das exportações, ditada pela boa vontade das leis do mercado livre global, caso Portugal fizesse as “reformas estruturais”, termo deliberadamente vago.
Dadas as diferenças e constrangimentos políticos, o neoliberalismo português é caracterizado por um “lento reformismo contra-revolucionário” (versus terapia de choque do Bloco de Leste) que posteriormente passou para o “neoliberalismo incrustado” inscrito nas instituições europeias.
A produção de conhecimento por si só não levou a uma transformação política, e Cavaco Silva foi o principal executor político deste projeto de transição, transformando a formulação da pequena economia aberta em realidade irreversível. Também foi nos governos de Cavaco Silva que a prática de pôr tecnocratas (Jorge Braga Macedo ou Miguel Beleza) e homens do mundo dos grandes negócios (Eduardo Catroga) em ministérios chave se tornou normalidade política, com o intuito de simbolizar um falso desprendimento ideológico.
Hoje o cavaquismo é largamente associado a grandes projetos de infraestrutura e crescimento económico, mas o economista João Rodrigues é claro ao mostrar que o seu legado histórico é a integração europeia com o Tratado de Maastricht, o que teve como consequência a inevitável adesão à moeda única europeia. Uma adesão que ainda hoje tem consequências nefastas para a economia portuguesa.
A revisão constitucional de 1989, a segunda de sete até hoje, foi feita em parceria com o PS liderado por Vítor Constâncio, posteriormente Governador do Banco de Portugal e vice-presidente do BCE, e garantiu as ferramentas necessárias para o início de um processo de desregulação, privatização e liberalização da economia portuguesa. Um processo que começou a corroer os pilares fundadores do SNS.
Da mesma forma que Thatcher disse que o programa do líder trabalhista Tony Blair foi o seu maior feito político, Cavaco Silva fez semelhante confissão sobre António Guterres. Além de Cavaco Silva e Guterres terem aprovado a constitucionalização do Tratado de Maastricht em 1992, o antigo líder do PSD afirmou que “a mudança de governo, em novembro de 1995, não perturbou a paridade do Escudo, pois a preferência pela estabilidade nominal tinha sido já assumido pelo partido vencedor [o PS de Guterres] e a perspectiva de continuidade da política económica nas suas linhas fundamentais já tinha sido antecipada pelo mercado”. Foi já com Guterres que se perdeu o Estado Empreendedor na maior vaga de privatizações de que há memória, o que ao contrário do cavaquismo, incluiu privatizações totais.
Mesmo nos dias de hoje, depois de uma presidência que convivia bem com uma política de austeridade que ambicionava ir além da Troika (em nome das contas certas) e com a precarização do Trabalho, Cavaco Silva ainda é apresentado como político Keynesiano e social-democrata (aqui e aqui). Esta ideia zombie, convenientemente alimentada pelo próprio, parte de dois erros.
O primeiro está na concepção do keynesianismo, que assume que este se resume ao uso dos gastos públicos para estimular a economia. Esta ideia alimenta-se de afirmações passadas de Cavaco Silva, como “oxalá que os outros, no futuro, saibam fazer tantas como nós sabemos fazer”, e de comparar o seu ministro das Obras Públicas, Joaquim Ferreira do Amaral, a Duarte Pacheco. Nesta falsa formulação, o keynesianismo seria meramente uma roupagem teórica da caricatura apresentada, pela direita atual, do despesismo do socialista-socrático. Este equívoco ignora todo o aparato político-ideológico das economias mistas e planeadas de inspiração keynesiana do pós-II Guerra Mundial.
O economista João Rodrigues mostra de forma clara que o projeto político de Cavaco Silva foi a antítese do keynesianismo. A arte de governar de Cavaco Silva foi o uso político da integração europeia para colocar Portugal na trajetória do neoliberalismo vigente nos países do centro do capitalismo, mas sempre numa condição periférica. Curiosamente, a sua recente proposta de determinar o saldo orçamental por um “comité de especialistas” seria apenas um aprofundamento deste modelo (ordoliberal) europeu. As ferramentas políticas (ainda existentes) seriam totalmente retiradas das mãos do poder democrático e soberano.
O segundo equívoco, que em grande medida parte do primeiro, é associar o nível de gastos públicos (défices) durante os mandatos de Cavaco Silva a um conjunto de decisões essencialmente ideológicas. Cavaco Silva governou durante a primeira década de Portugal na Comunidade Europeia, o que trouxe um fluxo significativo de fundos comunitários. Ao contrário da execução de fundos europeus, as decisões realmente políticas estão na forma como são direccionadas (por exemplo,investir em estradas ou ferrovias). Nesse campo, Cavaco Silva traçou o início de um modelo de investimento público que aprofundou os nossos desequilíbrios externos, através da forte aposta inicial nas autoestradas que promovem a importação de produtos petrolíferos e carros em larga escala.
Na melhor das hipóteses, Cavaco Silva foi um keynesiano de conveniência, um título que pode ser atribuído a Viktor Orbán, a Donald Tusk e a dezenas de outros líderes que governaram em períodos de forte absorção de fundos comunitários.
O MILAGRE ECONÓMICO CAVAQUISTA
Outra ideia-chave no livro de João Rodrigues é o contrariar do mito da “mini idade de ouro cavaquista”. O economista demonstra que o crescimento económico nos anos dos seus governos não foi particularmente alto em termos históricos. Infelizmente, o livro passa ao lado de uma oportunidade de ir mais além e desmantelar por completo a farsa do boom cavaquista. É que o projeto político de Cavaco Silva resultou num longo ciclo de divergência entre a economia europeias e as restantes europeias, principalmente com as do centro.
A mitologia da economia portuguesa, descrita pela classe económica dominante, acompanha o seguinte guião: crescimento forte na última fase do Estado Novo; seguiu-se o caos causado pelos excessos da revolução, com danos até aos dias de hoje; excessos que felizmente foram corrigidos com as intervenções externas do FMI, revisões constitucionais e integração Europeia; Portugal passou de um país pobre para uma economia moderna europeia com o milagre económico do Professor Cavaco Silva. Por fim, e já depois de totalmente integrado no Euro, o país passou por um quarto de século de socialismo-despesista, período que interrompeu a convergência com o pelotão da frente e fez com que Portugal fosse ultrapassado por antigos países do bloco de Leste. A lenda combina anedotas da classe dominante durante o PREC; estatísticas económicas sem qualquer enquadramento regional e histórico, durante o período Cavaquista; e mais recentemente, comparações de Portugal com o antigo Bloco de Leste.
Um exercício simples, historicamente e temporalmente coerente, como comparar Portugal e Espanha, mostra os buracos argumentativos desta história. Os dois países ibéricos passaram por longas ditaduras fascistas que terminaram a meio da década de 1970 e entraram na União Europeia e na moeda única em simultâneo. Neste período, o grande contraste entre os dois países seria a ausência de excessos revolucionários em Espanha, que não teria destruído a burguesia nacional e descapitalizado o país.
A trajetória de Portugal e do seu vizinho ibérico contradiz teimosamente esta mitologia da economia nacional. Entre a década de 1950 e o início dos anos 1990, Portugal e Espanha mantiveram uma certa tendência de rendimento por habitante (ajustado ao nível de preços), apesar de volátil.
A grande reforma estrutural cavaquista foi a divergência Ibérica e o seu boom económico é invisível quando visto a partir de Badajoz
O período de crescimento económico nos anos do cavaquismo, e realmente sentido pela população, reflete em grande medida uma conjunção de fatores positivos globais, como a queda abrupta do petróleo nos mercados internacionais (1986) e uma política monetária da Reserva Federal relativamente suave, aliada à entrada de fundos europeus.
Quando a prosperidade cavaquista é comparada com a economia espanhola, que beneficiou dos mesmo fatores, é difícil identificar encontrar motivos para celebrar. Ou seja, da mesma forma que o PREC não colocou Portugal, de forma estrutural, a milhas de Espanha, a arte de governar cavaquista não nos aproximou do nosso vizinho.
Dito isto, a divergência ibérica existe, simplesmente não veio com o PREC mas com Maastricht. Apesar de ambos os países terem entrado no Euro ao mesmo tempo, Portugal fê-lo com uma moeda sobrevalorizada (valor do Escudo quando aderimos ao Euro), em especial quando comparado com Espanha, que teve uma política cambial mais suscetível a desvalorizações na década de 1990. Estas diferenças de política cambial foram celebradas pelos media dominantes e pelo próprio Professor Cavaco Silva, quando valorizou a “preferência pela estabilidade nominal” do Escudo seguida por Guterres.
Para piorar a situação, na ausência de uma política cambial, Portugal tinha uma base exportadora mais distante da Alemanha (o setor automóvel forte, por exemplo) e, por isso, mais vulnerável à concorrência chinesa no comércio internacional. O nosso vizinho ibérico tem um maior poder político-institucional dentro da Zona Euro, sobretudo por causa do seu tamanho e por usar instrumentos de planeamento económico interno ainda existentes, como uma revolução na ferrovia aliada às energias renováveis, para combater desequilíbrios externos.
Tirando as diferenças de tamanho entre Portugal e Espanha, todos os outros fatores fizeram parte da essência da arte de governar de Cavaco Silva. Esta trajetória divergente pós-cavaquismo talvez ajude a explicar o porquê de a classe dominante lusa fazer comparações bastante seletivas e pontuais com Espanha. Geralmente são feitas em torno de impostos muito específicos (gasolina ou IVA zero) ou de taxas de crescimento anuais (aqui) totalmente desenquadradas do contexto de divergência ibérica pós-Maastricht.
Para se mascararem as origens da promessa falhada de chegar ao pelotão da frente, Portugal começou a ser comparado com países do Leste Europeu, que, ao contrário de Espanha, passaram por processos históricos e institucionais incomparáveis. O mais recente fantasma é uma espécie de contagem decrescente, e coletiva, de quando Portugal vai ser ultrapassado pela Roménia (aqui, aqui e aqui).
O ano zero desta “crítica liberal”, que aponta para um suposto quarto de século de socialismo cujo falhanço resulta em Portugal ser ultrapassado pelo Bloco de Leste, é algures no início dos anos 1990. Uma dupla seletividade que convenientemente ignora os efeitos nocivos da integração portuguesa na moeda única (ao contrário da maioria desses países); o completo caos vivido nos países de Leste após o colapso da União Soviética; e outros fatores históricos, como o seu nível educacional superior a Portugal e um padrão de especialização industrial muito mais próximo do Centro da Europa (aqui e aqui).
Quando se queixam da estagnação real do país, as classes dominantes escolhem convenientemente ignorar o papel das maiorias absolutas de Cavaco Silva na construção da “pequena economia aberta”, periférica dentro do Euro e sem qualquer rumo estratégico. É a partir dessas regras que os seus sucessores tentam encontrar a sua própria arte de governar.
O Neoliberalismo Não é um Slogan marca o regresso da crítica da mini idade de ouro cavaquista, apontando para os seus efeitos estruturalmente nefastos. Cabe a nós, coletivamente, continuar a caminhada desmistificadora. Usando o léxico de Cavaco Silva, a sua arte de governar como primeiro-ministro tornou “o sonho português de se aproximar aos níveis de desenvolvimento dos países mais avançados da União Europeia está cada vez mais longe”.
NOTAS
1 - Séries históricas com estimativas de PIB per capita ajustadas a nível de preços entre países têm divergências dada a complexidade deste exercício. Por exemplo, outras fontes de dados disponíveis- como Feenstra et al. (2015), Penn World Table (2021) - mostra uma relação entre Portugal e Espanha diferente. Dito isso, ambas as fontes confirmam as principais conclusões deste texto: a performance económica do período pós-revolucionário não mostra mazelas do PREC irreparáveis nos anos seguintes; o crescimento económico nos mandatos de Cavaco Silva não apresentam uma convergência com Espanha mas sem se destacar dos anos anteriores também de convergência; e a longa divergência de Portugal com Espanha surge no período pós-Maastricht.
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