O Estado Empreendedor perdido e o privatismo primário
O Estado foi responsável por algumas das maiores inovações tecnológicas portuguesas. O longo processo de privatizações interrompeu um ciclo de modernização promissor.
As privatizações do período da Troika são um tema recorrente na política portuguesa. O debate reaparece sempre que estas empresas estão sob fogo. O caso mais emblemático são os CTT. Em quase uma década de gestão privada, a empresa falhou consistentemente indicadores de qualidade definidos pelo regulador, enquanto adoptou uma estratégia de descapitalização (com a entrega de dividendos acima dos lucros) e uma total falta de foco na sua principal área de negócio, com a abertura de um banco ou a venda de ‘crypto selos’ e raspadinhas. Para piorar a situação, o chairman do Banco CTT, e ex-CFO do BES pós-Salgado por dois meses, - que segundo a CNN é um mero economista - achou-se no direito de pedir que o governo suspendesse a emissão de certificados de aforro.
As polémicas em torno do privatismo estão longe de se ficar pelos CTT. O peso de Pequim - que sugeriu retaliar a decisão portuguesa de excluir a Huawei do 5G - na estrutura accionista da EDP é um incómodo até para muitos privatistas. A venda da ANA, ao grupo Vinci, tornou-se em mais uma força de bloqueio em relação a um novo aeroporto em Alcochete; e a privatizada Fidelidade vendeu centenas de imóveis sem dar direitos de preferência aos inquilinos.
O colunista Daniel Oliveira analisou o trajecto de várias ex-empresas públicas para demonstrar o repetido falhanço do privatismo português. João Vieira Pereira respondeu criticamente, num texto supostamente não ideológico [‘porque a ideologia tem a capacidae inata de toldas as pessoas mais inteligentes’] que inclui frases como ‘as nacionalizações pós-abril representam um dos período mais negros da história económica recente’ e ‘bancarrota, aquela causada por José Socrates’. Apresentar-se acima de qualquer viés ideológico é uma tática comum usada por aqueles que defendem a ideologia dominante, e o diretor do jornal Expresso não é a exceção. Ainda assim, João Vieira Pereira viu-se forçado a concordar com vários pontos apresentados por Daniel Oliveira. O colunista do Expresso tem toda a razão quando aponta que várias empresas eram mais inovadoras, e prestavam um melhor serviço, quando estavam nas mãos do Estado. Mas os danos dessas privatizações vão muito para além do desempenho individual dessas empresas. As ondas de privatizações iniciadas nos anos 80, e continuadas pelo ‘arco da governação’, devem ser vistas como um dos fatores pelos quais Portugal não conseguiu tornar a sua estrutura económica mais sofisticada.
O ESTADO INOVADOR
Na última década, Mariana Mazzucato tornou-se uma figura incontornável do debate económico mundial. No seu primeiro livro, ‘O Estado Empreendedor', a economista Ítalo-Americana desmonta por completo o mito do Estado burocrático e ineficiente (em contraponto com um setor privado que detém o monopólio da inovação) ao mostrar o extenso historial do governo norte-americano a gerar e fomentar inovações. Segundo Mazzucato, não há uma única tecnologia-chave por trás do iPhone que não tenha sido financiada pelo Estado.
Tanto no ‘Estado Empreendedor’ como na ‘Economia de Missão’ (seu terceiro livro) a esmagadora maioria dos casos de inovação estatal enunciados são focados nos Estados Unidos - a maior potência económica e militar do planeta - e associados a disputas geopolíticas e militares. De forma não intencional, Mazzucato acaba por criar uma falsa narrativa de excepcionalismo americano (critiquei e apresentei contra exemplos aqui), algo que pode ser contrariado com alguns casos de inovação portuguesa fomentada pelo Estado.
Na primeira metade da década de 90, após anos de democratização e convergência com a Europa, Portugal começou a apresentar inovações tecnológicas promissoras na área dos serviços de comunicação, com instituições públicas na vanguarda deste processo. A colaboração entre a Brisa e a Universidade de Aveiro resultava na Via Verde, e assim Portugal foi o primeiro país com um sistema de pagamentos de portagens non-stop (1995). No mesmo ano, a Portugal Telecom lança o Mimo, o primeiro cartão pré-pago do mundo. As inovações nesta área não se ficaram pelo setor público: a SIBS criou uma das redes mais sofisticadas de multibancos da Europa. Quase 30 anos depois, estas continuam a ser algumas das mais importantes inovações portuguesas. Estes feitos reforçam o pensamento de Mazzucato, que defende que o setor público pode funcionar como um motor da inovação, cooperando e estimulando o setor privado.
Infelizmente, o governo português, em vez de se tentar usar o peso do Estado para fomentar um ecossistema de empresas tecnologicamente avançadas e exportadoras nestas áreas, decidiu iniciar o processo de privatização da Brisa e da Portugal Telecom. É impossível saber o que teria sido diferente na economia portuguesa, que já se encontrava no início de um processo de desindustrialização, financeirização e liberalização económica. Contudo, podemos constatar que algumas das economias (pequenas) mais bem sucedidas do espaço europeu, como a Finlândia e a Suécia, se modernizaram (e evitaram os efeitos mais nefastos da desindustrialização) através deste tipo de setores, com empresas como a Nokia (através de apoio ativo do Estado Finlandes) e Ericsson, respectivamente. Nos últimos anos, estes países conseguiram surfar a nova onda tech com empresas como a Rovio (empresa do Angry Birds) ou Spotify (que segundo o seu fundador, o sucesso é em parte resultado de um política pública de provisão de internet subsidiada na Suécia). Entretanto, Portugal mantém o seu papel essencialmente periférico com uma economia cada vez mais baseada no turismo e com quadros altamente qualificados a trabalhar remotamente para empresas estrangeiras ou a emigrar. A aposta quase cega nas altas qualificações, dentro dos constrangimentos existentes dentro da UE e sem uma estrutura económica inovadora, tornou-se praticamente numa política de fuga de cerebros patrocinada pelo Estado.
Naturalmente que a privatização destas empresas não acabou por completo com este setor em Portugal. Empresas como a Vision Box (que utiliza fundos comunitários) continuaram a inovar e exportar. Ainda assim, foram perdidas oportunidades de criar sinergias entre várias instituições do Estado. Por exemplo, em 2012, a empresa municipal de transportes públicos de Londres (TfL) desenvolveu internamente a tecnologia de pagamentos contactless e hoje exporta-a para vários sistemas de transportes. Dado o histórico português, não seria absurdo imaginar que universidades, empresas públicas e o Estado tivessem conseguido desenvolver semelhante tecnologia. O mesmo pode ser dito sobre a Portugal Telecom e o desenvolvimento de uma tecnologia de banco-telemóvel, numa lógica semelhante ao cartão Mimo e ao MB WAY. A Vodafone criou o M-Pesa, que se tornou um absoluto sucesso no Quénia, usado por milhões de habitantes. Hoje em dia este tipo de sistema existe em dezenas de países, incluindo Moçambique. Ao invés disso, a privatizada PT acabou por ser capturada por oligarcas nacionais e tornar-se numa mera subsidiária da holandesa Altice.
Mesmo depois de todas as vagas de privatizações, as poucas empresas públicas ainda existentes mostram sinais de vitalidade, inovação e um papel estratégico no planeamento da economia nacional. Por diversas vezes, a RTP liderou o seu setor em Portugal. Foi pioneira nos canais temáticos, nas transmissões em HD e na criação de uma plataforma de streaming. Esta estratégia forçou os privados a acompanhar, fazendo com que todos o setor estivesse mais bem preparado para a dura competição externa, tanto dos canais a cabo como das novas plataformas de streaming. O sucesso da empresa pública é tal que foi esta a trabalhar com a Netflix, na série Glória, e não um canal com vasta experiência na produção de novelas. Até a TAP, mesmo integrada num setor de baixa inovação como o turismo, conseguiu diversificar a origem da procura do turismo e tem um papel relevante para que Portugal consiga atrair trabalhadores de países como o Brasil e Cabo Verde.
Este é o raciocínio de João Ferreira quando critica a decisão do PS de privatizar a EFACEC e reforça as potencialidades de uma EFACEC pública o reforço desenvolvimento económico e na inovação nacional. A empresa foi nacionalizada temporariamente em resposta a um ‘impasse accionista’ com a saída de Isabel dos Santos após os Luanda Leaks, e tem provas dadas em áreas como a mobilidade em países de primeiríssimo mundo. O governo de maioria do PS decidiu vender a empresa ao fundo alemão Mutares.
Durante a atual maioria absoluta, os ministros Costa Silva e João Galamba, em ocasiões diferentes, acusaram Mariana Mortágua e Bruno Dias de terem posições retrógradas e anacrónicas, em temas como a inovação estatal e a gestão das telecomunicações privadas. Costa Silva chegou mesmo a dizer (sobre a EFACEC) que o ‘Estado não é bom accionista’. Mais do que insultar os seus anteriores parceiros de governação, estes ministros mostraram um total desprezo pelo histórico inovador do sector público português e alimentam a narrativa da agenda privatista, que continuará sem entregar o milagre prometido há pelo menos quatro décadas.
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Quanto ao exemplo da RTP, notar que este começou quando esta estava falida, exatamente por culpa do Cavaco (abolição da taxa de televisão + venda ao desbarato da rede de emissores), e também pena que pelo menos uma das iniciativas tenha servido apenas para alimentar mãos privadas (a Sport TV, de acordo com Jorge Schnitzer: http://pulpuscorruptus.blogspot.com/2011/10/o-cancro-do-futebol-mafia-da-palermo.html).