A criação de uma clivagem geracional é um retrocesso no debate político
A constante chamada de “jovens brilhantes” para o espaço público e a criação de um ministério da Juventude apenas aprofundam a tecnocratização do debate político e a vilificação dos mais vulneráveis.
Celebrava-se o 45º aniversário do 25 de Abril, em 2019, quando João Marecos, co-fundador d’Os Truques da Imprensa Portuguesa, foi desafiado num programa do Prós e Contras a criar uma lista de autodesignados especialistas com menos de 30 anos. Chamou-lhe “100 Oportunidades” e a iniciativa consistiu num website com jovens dispostos a serem ouvidos pelos meios de comunicação social. Quatro anos depois de criar uma página nas redes sociais que contestava coberturas mediáticas, Marecos deixara de escrutinar os meios de comunicação para lhes pedir mais espaço mediático
Passados quase cinco anos, a RTP, através do programa sucessor do Prós e Contras (É Ou Não É?), voltou a emitir um programa sobre os jovens e a sua relação com a política nacional. Fê-lo num contexto em que as sondagens mostravam a popularidade relativa do Chega entre os mais jovens. Dias mais tarde, os quatro jovens que participaram no painel fizeram parte de um grupo de 50 assinantes do “Coletivo Matéria” (que incluía João Marecos), uma espécie de manifesto que pede, mais uma vez, que os jovens tenham um lugar à mesa, e que está aberto a receber ideias de outros jovens. No dia em que esta iniciativa foi lançada, o 100 Oportunidades de Marecos já não estava online.
Os principais meios de comunicação inflacionam a popularidade do voto jovem no Chega, fazem-no ao mesmo tempo que tentam entendê-la através de paineis de jovens hegemonicamente sociais-liberais. Ao serem incapazes de ligar estas duas juventudes numa narrativa coerente, socorrem-se de teorias condescendentes em torno do papel do TikTok junto do voto jovem. Afinal, para que servem os contínuos paineis em prime time focados em vozes mais novas?
O DESESPERANTE CARROSSEL DA JUVENTUDE
Estas duas iniciativas de promoção de vozes jovens, sempre tão parecidas mas no entanto tão vendidas como novidades, revelam um claro padrão do debate sobre o papel dos jovens no espaço mediático.
O carrossel começa com um pequeno grupo de jovens a ser convidado para falar nos principais meios de comunicação, quase sempre a título pessoal, sem que represente um coletivo. Esses jovens são geralmente apresentados como os “mais brilhantes da sua geração”, geração essa descrita como “a mais bem preparada do país”, mas que infelizmente os políticos velhos não sabem aproveitar. Esses jovens, que já têm um espaço razoável na arena pública, lançam depois algum tipo de plataforma ou coletivo. Fazem-no sem uma agenda ideológica e propostas claras, levando a que não sejam associados a qualquer radicalismo, mas estes grupos acabam por ser meros agregadores de individualidades da sua geração. Usam-se a narrativa simplista de serem jovens sem voz, mas a verdade é que ocupam lugares de privilégios. Usam, basicamente, essa narrativa para se auto promoverem
Nem todos conseguem singrar. Passados uns anos, a maioria dos jovens prodígios caem no esquecimento mediático, e uma nova vaga ocupa o seu espaço. Quando a nova leva de jovens é convidada para o espaço público, não é questionada sobre o falhanço do anterior manifesto/coletivo. Tal como os hashtags e memes das redes sociais que se tornaram populares entre estes jovens, uma questão de meses costuma ser suficiente para a lista de prodígios cair no esquecimento. Os vários nomes que se vão repetindo entre as listas atestam a futilidade do exercício.
Mesmo que apresentem credenciais académicas ou profissionais, estes debates colocam os seus créditos na sua juventude, uma característica inerentemente temporária, mesmo que o estatuto de jovem já roce os 40 anos. É nesta tensão, entre ser jovem com algum espaço público e deixar de sê-lo no futuro próximo, que surgem os manifestos e as plataformas. Sem estarem integrados em movimentos políticos e sociais que garantam a sua continuidade no debate público (recordar que figuras como Pedro Nuno Santos e Assunção Cristas já foram os jovens dos Prós e Contras), estas plataformas são um grito de desespero de quem entende que pode perder o acesso privilegiado à comunicação social.
A procura pela janela de oportunidade que se vai fechando explica porque os jovens com espaço mediático procuram integrar estas listas, mas há outro elemento que explica o fascínio da comunicação social dominante por estes jovens.
A CONTÍNUA TECNOCRATIZAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO
As gerações, por passarem coletivamente por crises e choques específicos, acabam por ter vários pontos em comum. Apesar das diferenças sociais sempre existentes dentro de uma determinada geração, o exercício de trazer para o debate um grupo que partilhe essas experiências coletivas pode ser útil, de forma a discutir desafios, lições e soluções. Esta dinâmica é válida tanto para os jovens de hoje, que enfrentam problemas como o acesso à habitação digna, como para as gerações mais velhas, que passaram por outras crises, como o pico de toxicodependência das décadas de 1980 e 1990, ou por experiências de como a Guerra Colonial ou o verão quente do pós 25 de Abril. Todas estas reflexões coletivas, mais ou menos recentes, podem ter um contributo útil para se ajudar a navegar o presente.
Infelizmente, as repetidas chamadas de jovens ao espaço público pouco ou nada servem para este exercício. O recente episódio do programa É Ou Não É? demonstra isso na perfeição. Para debater o afastamento dos jovens da política, após a publicação de um trabalho que sugeria que os mais novos eram mais propícios a votar no Chega, a RTP convidou um grupo jovens sem grandes divergências ideológicas (três dos quatros definiram-se como sociais-liberais) e sem representar qualquer movimento político (não partidário) ou social.
As apresentações dos jovens convidados são focadas nas suas qualificações académicas ou nos respetivos títulos profissionais. Eles são a montra da suposta “geração mais qualificada” de sempre. É uma formulação redutora e burocrática que se cinge meramente ao grau académico e profissão de cada indivíduo, o que é uma afirmação verdadeira para cada nova geração portuguesa, visto que as qualificações formais têm aumentado significativamente nas últimas décadas.
A relação umbilical entre ceder espaço público a alguns jovens e o seus galhardetes académicos revela o exclusivismo tecnocrático presente no espaço público. Se o objetivo é dar espaço aos jovens, este ambiente retira automaticamente a voz a uma larga maioria de jovens sem ensino superior e que em geral sofrem de forma mais intensa as crises e ansiedades dos “jovens mais brilhantes” da sua geração e que, diga-se, têm muito para dizer. Se o objetivo é trazer os representantes políticos da juventude, então esse critério de destaque dominante peca pelo credencialismo e tecnocracia, com ligações ténues ao exercício político.
Contudo, ambos os critérios servem como certa mordaça deslegitimadora das gerações mais velhas. Se nos restringirmos a estes termos, uma figura como Jerónimo de Sousa, operário que foi sindicalista durante o Estado Novo, que fez serviço militar na Guiné durante a Guerra Colonial e foi depois deputado constituinte, é um mero representante dos mais velhos. Nesta óptica tecnocratizante, Jerónimo de Sousa é automaticamente alguém com mais palco e menos qualificado que os jovens de hoje em dia.
Os meios de comunicação usam uma pequena minoria de jovens para replicar padrões mediáticos já existentes. Assim, aumentam o seu portfólio futuro de comentadores, tanto especialistas como generalistas, sem promover uma reflexão sobre os reais desafios geracionais. Enquanto os jovens se destacam, de forma antagónica e simultânea, no ativismo climático ou como na base eleitoral do Chega, os media dominantes oferecem-nos uma visão que nada representa estas diferentes tendências.
No fundo, estamos perante um aprofundar mal camuflado da tecnocratização do debate político, um no qual o grau de especialização técnica se sobrepõe a qualquer outro critério de natureza política, revestido numa fachada fresca, jovem e desempoeirada. Podemos mesmo classificar de identitarismo geracional dos dominantes. Um caso caricato do elitismo mal disfarçado da abordagem são as figuras escolhidas no “100 Oportunidades” para a área do desporto. No grupo restrito de cinco pessoas, podemos encontrar um jogador profissional de golf e um surfista, modalidades distantes da maioria dos jovens portugueses.
O FALSO GOLPE DE ESTADO GERACIONAL
Na comunicação social, cada vez mais dominada por vozes de uma direita que esteve fora do poder por quase uma década, tentou-se criar a ideia que o PS estava a tornar-se um partido hegemónico, totalmente assente no voto dos mais velhos. Uma ideia alimentada por uma interpretação no mínimo exagerada de estudos de opinião em que o PS se apresenta mais forte no eleitorado mais velho (por exemplo: em 2022, foi o segundo partido mais votado entre os jovens, praticamente empatado com o PSD).
De forma subtil, foi-nos apresentada a ideia de um lento golpe de estado geracional, resultado de uma política altamente oportunista. António Costa teria conseguido criar um bloco eleitoral dominante com a compra de votos dos mais idosos, muitas vezes classificados como aqueles que “dependem do Estado”, através da reversão dos cortes nas pensões e noutros benefícios sociais e que supostamente colocam em causa o futuro das novas gerações e forçam os mais jovens a emigrar. Esta narrativa tem uma base relativamente frágil, como um em cada três jovens estarem emigrados, tornam-se convenientemente em grandes certezas nacionais. Neste contexto, os jovens colocados no espaço mediático cumprem a sua segunda função: serem o rosto das vítimas do golpe de estado grisalho, liderado por Costa.
Nas últimas eleições legislativas, alguns dos principais interlocutores da direita ensaiavam este discurso para justificar uma eventual derrota nas urnas. Carlos Guimarães Pinto, cabeça de lista da IL pelo Porto, comparou o PS ao PURP (Partido Unido dos Reformados e Pensionistas) e associou o voto dos mais velhos aos seus baixos níveis de qualificações. João César das Neves, um dos quadros económico-tecnocráticos da direita, foi mais longe e afirmou que o PS comprou votos com os aumentos das pensões.
O líder do PSD e futuro primeiro-ministro, Luís Montenegro, reforça esta dicotomia. Em vez de continuar a demonizar abertamente os mais velhos, o PSD criou o ministério da Juventude, uma decisão elogiada pelo PAN, para sinalizar ser o representante da ala dos mais novos na suposta guerra geracional. Entretanto, as expectativas do executivo Montenegro de relançar velhas receitas como os vistos gold, cujo impacto se faria sobretudo nos mais jovens que arrendam habitação, é vista como indiferente para o destino dos jovens.
O confronto de gerações não é uma invenção original de setores da direita portuguesa, mas o seu uso é uma cópia precária e descontextualizada do debate internacional. Existe um discurso político cada vez mais forte, em especial nos países anglo-saxónicos, que coloca gerações (Millenials e Baby Boomers) em confronto direto.
Nos últimos 40 anos, estas sociedades viram as suas estruturas de participação política e cívica, como os sindicatos e as igrejas, perderem espaço. Consequentemente, o debate ficou cada vez mais centrado no indivíduo, e na sua ação individual, em detrimento do coletivo. Dadas estas alterações, o confronto geracional surge como um atalho para a formação de um coletivo político: o nós contra eles.
As experiências díspares entre Millennials (qualificados mas muitas vezes precários e sem acesso a habitação própria e estável) e os Boomers (aposentados depois de carreiras mais estáveis, com habitação própria, e por vezes senhorios) são terreno fertil para uma clivagem geracional. Assim, do lado dos mais velhos surgem argumentos moralistas sobre padrões de consumo, que passam a ser justificação para a precariedade das gerações mais novas. Um exemplo notório e caricato desta narrativa aconteceu quando um milionário do imobiliário culpou a incapacidade dos jovens em comprar casa por causa das suas preferências por tostas de abacate, enquanto aos olhos dos Millennials, as gerações mais velhas passam a ser vistas como vilões e os reais operadores do capitalismo neoliberal vigente.
Este atalho segue, apesar de todas as suas simplificações e limitações óbvias (por exemplo: a riqueza familiar sempre foi transferida via herança), uma certa coerência interna. Contudo, a sua importação para Portugal, de forma a explicar tendências eleitorais, esbarra com a realidade das condições de vida dos portugueses. Ao contrário dos países do centro do capitalismo, devido ao atraso histórico da economia portuguesa e da formação tardia do Estado Social (que afeta as carreiras contributivas dos mais velhos e a limitadíssima rede de lares e centros de dia), uma grande parte dos idosos vivem em situações de pobreza e exclusão social.
Se Portugal tem trabalhadores pobres para os padrões europeus, os seus pensionistas são paupérrimos. Logo, importar uma ideia que tem no centro do seu imaginário político um reformado que trabalhou 40 anos numa fábrica da General Motors ou numa mina de carvão britânica está condenada a ser fantasiosa e sem qualquer utilidade para interpretar padrões eleitorais lusos.
Se existe alguma “geração de ouro” portuguesa, esta ainda está no mercado de trabalho e pode ser encontrada naqueles que entraram no mercado de trabalho nos anos 1980-90. Uma parte beneficiou da expansão do ensino superior, do boom da entrada na União Europeia, aliados a investimentos imobiliários, que hoje garantem grandes retornos financeiros. A sua entrada no mundo do trabalho deu-se longe da crise financeira do início deste século e da austeridade permanente que se seguiu. É provavelmente entre esta geração que se encontra muito do voto em Luís Montenegro. É por esses e outros motivos que Portugal não se enquadra na divisão entre “esquerda brâmane” e “direita mercantil“, explorada pelo economista francês Thomas Piketty, famoso por defender a tributação do capital e heranças, longe do simplismo geracional.
Na ausência de uma “classe boomer” prospera, o apontar do dedo pelos jovens aos mais velhos com espaço mediático é confundir uma geração pobre com a elite nacional. Em última instância, alimenta-se o falso golpe geracional português, no qual medidas como o aumento real das pensões são supostamente a prova do domínio político-social dos mais idosos, que obrigam os mais jovens a emigrar.
Também no debate sobre a estrutura do capitalismo nacional, o binómio geracional ganha espaço, com o aval da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Segundo a narrativa desta organização dos donos do Pingo Doce, os empresários velhos e pouco qualificados (que na realidade são muitas vezes microempresários familiares) não permitem que os jovens trabalhadores qualificados tenham salários mais altos.
O aproveitamento oportunista das divisões geracionais para o benefício das classes dominantes não é um tema marginal, ou um mero exercício teórico ou especulativo. Além fronteiras, basta olhar para a evolução da política britânica.
Em novembro do ano passado, Boris Johnson, uma das principais figuras da radicalização da direita inglesa, publicou um artigo de opinião que reconhecia que os Baby Boomers tinham tido uma vida muito melhor que os Millennials. Para corrigir essa injustiça geracional, o antigo primeiro-ministro britânico defendia a abolição do imposto sobre as heranças (limitado a valores acima de £325,000). Quando dito por Boris Johnson num tabloide, as fragilidades dos atalhos geracionais tornam-se mais que óbvias. Em Portugal, e com o imposto sobre as heranças já extinto, o alvo mais provável de uma guerra geracional são as pensões, um dos cortes da coligação PSD-CDS ainda por cumprir.
No final de contas, as listas dos jovens mais brilhantes da sua geração alimentam um dividido recorte de gerações, que é muito menos útil que o nunca desatualizado corte de classe. Com o enfraquecimento de instituições coletivas que representam as classes populares na luta de classes, passou a ser frequente dizer que as fraturas políticas estão noutros lugares. Tanto Boris Johnson como as escolhas editoriais dos meios de comunicação portugueses mostram-nos que devemos continuar a analisar a sociedade nas mesmas matrizes que Piketty.
Os que não têm voz na comunicação social são sempre os mesmos, sejam menos ou mais jovens. Terminamos com este parágrafo do recente editorial do Abril Abril: “Quem não tem direito à palavra é o jovem que recebe o salário mínimo e tem um vínculo precário. Quem não interessa ouvir é o jovem que tem atividade sindical e se assume de esquerda. Quem é ignorado é o jovem que vê um mundo que pode ser transformado e dá a sua vida por essa transformação.”
NOTA
Foi com bastante tristeza que recebemos a notícia de que o jornal digital Setenta e Quatro terminou na passada quinta-feira, quase três anos depois da sua primeira publicação. Recomendamos a leitura do último editorial do jornal, com uma reflexão sobre o financiamento do jornalismo em Portugal.
Grande parte da vida da República dos Pijamas foi feita ao lado do Setenta e Quatro, que nos abriu a porta para partilharmos a nossa visão sobre economia e política. Queremos agradecer especialmente ao Ricardo Cabral Fernandes, pela oportunidade, camaradagem e profissionalismo. Muito obrigado.
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
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