A burguesia portuguesa está a promover a sua eutanásia
As últimas décadas mostram a burguesia portuguesa a diluir-se entre a burguesia internacional. Fica a questão se isso poderá tornar-se numa clivagem política.
Na ressaca imediata das privatizações da governação de Pedro Passos Coelho, um autor lamentava como a abertura de parte do capital das empresas públicas portuguesas ao setor privado, iniciada nos 80, se tinha prolongado. A dinâmica iniciada então culminava na completa privatização de vários grupos de referência.
Para explicar esta “tragédia nacional”, este falava de um “fascínio pelo modelo inglês” e salientava “o processo de alienação da empresa a grupos empresariais internacionais.”
Para concluir, afirmava que “os nossos filhos mais promissores terão de emigrar, não por falta de emprego, mas por ausência de empresas onde aprendam e cresçam profissionalmente, como nós tivemos.”
O autor não era um quadro do Partido Comunista Português, nem do Bloco de Esquerda. Nem sequer vinha do espaço da esquerda. As linhas foram escritas por Luís Todo Bom, que conta no seu CV com registos como membro do Conselho Consultivo do PSD, antigo secretário de Estado da Indústria e Energia (de um governo liderado por Aníbal Cavaco Silva) e o primeiro presidente da Portugal Telecom (PT).
Todo Bom, que é sem dúvida parte da burguesia nacional, toca num ponto fulcral: o destino dos seus filhos, ou mais especificamente, o destino dos filhos na burguesia portuguesa.
MULTINACIONAIS PORTUGUESAS?
A Troika trouxe várias mudanças ao Capitalismo português. Os salários, face aos lucros, perderam peso no PIB, o investimento afrouxou. Entre outros indicadores, como sumarizado por Vicente Ferreira no blogue Ladrões de Bicicletas, há um antes e um depois da intervenção da Troika em Portugal.
A par destes indicadores, ganhou força o modelo de crescimento baseado na monocultura do turismo, em que “a periferia da moeda única viu-se forçada a encontrar formas de exportar parte da capacidade produtiva instalada. No caso português, e sem grande aparato industrial, era em grande medida a construção e o imobiliário.”
Ainda há mais um desenvolvimento: o valor acumulado de investimentos estrangeiros em Portugal disparou. Em especial a partir do ano de 2013, a meio da intervenção da Troika, a tendência foi um inchar dos ativos dos investidores estrangeiros em Portugal. Crucialmente, este não se tratou de um fenómeno bilateral de aprofundamento da internacionalização - os investimentos portugueses no estrangeiro estagnaram.
No final de 2012 a diferença entre os dois valores era de cerca de 45,5 mil milhões de euros, 27% do PIB, e no início de 2022 esta passou a ser quase 110 milhares de milhões, 45% do PIB. Isto é detalhado numa nota de informação do Banco de Portugal.
Como notado por Nuno Serra, também do blogue Ladrões de Bicicletas, este investimento estrangeiro em Portugal é, em grande parte, e cada vez mais, investimento no setor imobiliário que “é indissociável do estímulo ao investimento estrangeiro em imóveis no período da troika.”
Estes elementos mostram dois fenómenos relacionados. Em primeiro, a galopante insignificância dos capitais nacionais face aos internacionais. Em segundo, a cada vez maior dependência da economia portuguesa para com atividades pouco sofisticadas como o imobiliário. No seu todo, se prolongarmos o raciocínio de Todo Bom, temos uma eutanásia da burguesia portuguesa, em que esta se deixa absorver cada vez mais por capitais estrangeiros, e assim os filhos deixam de poder seguir as passadas dos pais na frente das grandes empresas nacionais.
Para elucidar os dados acima, devemos começar por olhar para os acontecimentos significativos entre as grandes empresas portuguesas na última década. Depois disso, para como a burguesia portuguesa se vai reproduzindo de uma forma cada vez mais degenerada.
AS PARTES ESTRANGEIRAS
A divergência acima assinalada está ligada ao colapso e à alienação de grandes empresas nacionais e ao afastamento dos grandes centros de decisão de Portugal. Não só os acionistas deixaram de ser portugueses, como os postos de gestão, onde a média burguesia se encontra, foram desfalcados.
A par da austeridade da Troika, com a quebra do consumo português e as dificuldades no acesso ao crédito, o início da década passada foi apertado para as grandes empresas portuguesas. O resultado foi o colapso de algumas e o alastrar de capitais estrangeiros em muitas outras. Mesmo empresas lucrativas foram alienadas, como por exemplo a PT. Dentro do processo de ajustamento promovido pela Troika, uma série de empresas públicas foram privatizadas.
Entre as empresas privatizadas, podemos destacar a EDP, a REN, a ANA Aeroportos (concessionada à Vinci por 50 anos), a Galp (privatizada quase na totalidade uns anos antes), os CTT, a Fidelidade (alienada pela Caixa Geral de Depósitos, detida pelo Estado).
Embora as privatizações tenham tido um impacto esmagador, o processo já se vinha a agigantar desde há alguns anos, e o mesmo se vê nos alastrar de capitais estrangeiros nos grupos privados. Uma peça chave para este processo foi Isabel dos Santos, filha do presidente (1979-2017) de Angola, José Eduardo dos Santos.
Em especial, a partir de 2006, com a privatização da Galp, numa parceria com Américo Amorim, Isabel dos Santos adquiriu participações em grandes empresas portuguesas. A empresária angolana repetiu várias vezes a mesma tática: usar a petrolífera estatal angolana, da qual esta era gestora por nomeação, para alavancar a sua posição pessoal, e muitas vezes comprar com capitais emprestados pela banca portuguesa (que por sua vez se endividava na finança internacional). Além da petrolífera portuguesa, dos Santos adquiriu participações em várias empresas, tendo ainda hoje parte da NOS.
Com a queda de graça da empresária angolana, esta foi forçada a vender a posição no BPI aos espanhóis do CaixaBank (tornando o BPI numa subsidiária deste), e na Efacec (entretanto nacionalizada e de novo privatizada a capitais alemães). Dos Santos tem uma posição peculiar quando falamos da entrega de ativos a estrangeiros e do deslocamento de centros de decisão. Com o seu centro operacional em Angola, ao contrário do que aconteceu com as alienações a grupos dentro do espaço europeu, a deslocação da gestão teve uma força reduzida. Sem uma possibilidade clara de substituir quadros portugueses por angolanos, as atividades podiam ser conduzidas pelos “filhos promissores” de que Todo Bom falava. Em termos políticos, o impacto era menor e Isabel dos Santos era bem vinda entre a elite portuguesa.
Numa situação parecida, temos os capitais chineses (presentes em privatizações como a EDP e a Fidelidade). Dada a dificuldade de transferir várias competências para a geograficamente (e não só) distante China, grande parte dos centros de decisão mantiveram-se em Portugal. Com a entrada dos capitais da Fosun na Espírito Santo Saúde (hoje Luz Saúde), a gestão do grupo não sofreu alterações de maior.
Apesar dos benefícios da “situação intermédia” protagonizada por capitais angolanos e chineses, esta não tem garantias de durabilidade. Como dito acima, participações que foram de Isabel dos Santos passaram para capitais espanhóis e alemães. Nos últimos tempos, vai se desenhando a venda da participação dos capitais chineses no banco Millenium BCP (acionista de referência, com cerca de 20%). Na linha da frente, estão bancos espanhóis e franceses. A venda para um grupo como o BNP Paribas, com uma forte presença de backoffices em Portugal, seria trágica para a manutenção da linha da frente dos negócios em solo luso.
No banco público que resta, a Caixa Geral de Depósitos (CGD), a possibilidade de uma deslocação do centro de decisão também paira no ar. Pressentido uma privatização com este ciclo político, o seu presidente (e antigo Ministro de governação PSD-CDS, Paulo Macedo), lançou de imediato o altera para uma “parte estrangeira” se a CGD vier a ser privatizada.
GES - O PROTÓTIPO DE UM COLAPSO
O colapso do Grupo Espírito Santo (GES) acabou por ser o que mais estrondo fez. O Banco Espírito Santo (BES), detido por este, colapsou. A gestão do BES, dirigida por Ricardo Salgado, sucumbiu às necessidades do GES. Não só os recursos do banco foram sendo absorvidos pelo grupo, como a caixa financeira da PT foi entregue ao banco, arrastando a empresa de telecomunicações para o abismo. Hoje a PT faz parte do grupo francês Altice.
O Novo Banco, que surgiu da carcaça do BES depois de o Estado português injetar capitais, foi entregue ao fundo de investimento estadunidense Lone Star. Negócios mais saudáveis do grupo, como na área da saúde e seguros (Tranquilidade) também foram vendidos a capitais estrangeiros.
Quanto aos capitais que restaram do GES, reza a lenda que estão espalhados entre contas e fundos de países offshore como a Suíça e imobiliário pelo mundo fora. A ligação política desses capitais com Portugal cessou - passaram a ser apenas mais uns capitais internacionais.
O colapso do clã Espírito Santo teve uma dinâmica central. Com o passar das gerações e o alargamento dos membros da família, o destino dos membros da família sem vontade ou capacidades de gerir o negócio tornou-se um desafio. A solução passou por deixar essa parte da família gerir empreendimentos em áreas pouco sofisticadas, como o turismo, o imobiliário e a restauração. O resultado foi uma série de negócios ruinosos que contribuíram para levar ao abismo todo o GES e as poupanças de vários aforradores.
Hoje o Novo Banco é liderado pelo Irlandês Mark Bourke. Num processo que vai além das estatísticas de capitais, outros CEOs estrangeiros vão ganhando espaço, como Andy Brown que passou pela Galp e Christine Oumières-Widener pela (pública) TAP. Embora só estejamos a olhar para os CEOs, a redução dos cargos de gestão portugueses foi generalizada.
Apesar de nem sempre as consequências serem tão drásticas como no GES, o mecanismo burguês de direcionar os filhos menos dinâmicos para áreas menos sofisticadas é recorrente. A análise deste fenómeno é importante para compreender uma burguesia periférica em declínio. A história de um chef português apresenta-nos uma ilustração.
O FILHO BURGUÊS
O chef Kiko é um dos chefs mais conhecidos em Portugal. Além de Francisco Martins ter vários restaurantes de alta gama, é uma personalidade mediática. O seu negócio cresceu já nos tempos finais da Troika, o que apesar de poder não ter sido determinante no seu percurso, é ilustrativo da economia portuguesa.
Mesmo sem parecer um oligarca, os seus maneirismos e alcunha traem a sua origem - é o que vulgarmente tratamos por um “beto”. Nascido no Brasil em 1979 (parte da burguesia que facilmente se integra entre as elites portuguesas e brasileiras), tem oito irmãos (uma marca das famílias portuguesas abastadas) e um relato de vida repleto de viagens desde jovem.
Kiko não fez o seu percurso como cozinheiro depois de ter feito os estudos numa escola profissional. Tirou uma licenciatura em Gestão de Marketing, e depois de entender que não era a sua vocação, seguiu para a formação em cozinha numa escola de elite em Paris. Como também costume entre os ricos, após os estudos, fez voluntariado em Moçambique através de uma organização católica frequentada pela elite portuguesa (Leigos para o Desenvolvimento). Na hora de lançar-se nos negócios, certamente os meios financeiros e sociais da família foram-lhe úteis. Desde cedo Francisco Martins teve acesso aos media para construir a sua marca.
Esta narração é mais uma forma de olhar para como a elite (portuguesa e não só) funciona do que uma crítica ao chef Kiko e aos seus negócios. Por exemplo, é natural reparar que a nova ministra da Justiça, Rita Júdice é filha de José Miguel Júdice, sócio de um escritório de advogados e presença assídua no espaço mediático (além de fundador do MDLP, antiga rede armada de extrema-direita).
Embora conheçamos bem os filhos dos empresários que sucedem aos pais à frente dos negócios e os que os que seguem as suas passadas em profissões de alto prestígio como gestão, medicina e advocacia, damos menos atenção ao percurso daqueles que não o fazem. Outros chefs, como José Avillez, apresentam um percurso parecido ao de Francisco Martins.
Boa parte das vezes, restaurantes, bares e empreendimentos turísticos são como famílias já ricas conseguem mais dinheiro, não tanto como famílias pobres começam a fazê-lo. Muita da reprodução da elite faz-se passando este tipo de negócios para os descendentes que seguem percursos menos lucrativos do que os pais.
O dono ou gerente de um empreendimento turístico é frequentemente herdeiro de um empresário ou de um profissional liberal bem sucedido. Desde os membros falhados da família Espírito Santo, aos negócios em expansão como o chef Kiko, os graus de sucesso são diversos.
A vertente social do capital também conta. Profissões onde os contatos e as normas sociais são essenciais para vingar – como decoração de interiores e curadoria de artes – são populadas por descendentes de famílias abastadas. Entre os cursos superiores preferidos por famílias mais favorecidas (com mais formação), Belas Artes posiciona-se ao lado de Direito e de áreas científicas. A recém casada Francisca da casa de Bragança estudou Comunicação Social e Cultural e dedica-se a premiar estudantes de Belas Artes. Com algum esforço, reparamos que boa parte dos atores partem de meios abastados.
Num cenário sem mudanças de fundo na economia portuguesa, esta dinâmica poderia passar despercebida, mas face aos desenvolvimentos recentes, é fundamental um olhar atento. A reprodução da nossa elite para negócios baseados no imobiliário e restauração é tudo menos indolor.
A PROMESSA DE RENTISMO
Como visto aqui antes, a par da redução de cargos de gestão em Portugal: “[depois da crise financeira] segundas habitações na praia e no campo tornaram-se alojamentos locais. Já nas áreas metropolitanas, com uma dinâmica semelhante, ocorreu uma transferência de casas do arrendamento tradicional para o alojamento local.“
Aquelas famílias que já detinham imobiliário encontraram novas oportunidades lucrativas para serem empreendedoras nas atividades pouco especializadas. Dentro do leque de hipóteses de vida do herdeiro burguês, as possibilidades de utilizar o capital familiar no imobiliário têm-se alargado.
Entre gerir turismo ou restauração, que ainda podem ser consideradas profissões, ou simplesmente ser senhorio, as opções de lucrar a partir do imobiliário e contactos herdados ganham espaço. No sentido inverso, continuar com os altos cargos dos pais vai perdendo espaço.
O estereótipo do filho de barão de fábrica que herda o negócio do pai vai perdendo espaço. Dá alas para o protótipo do filho de gestor de uma grande empresa (entretanto esvaziada de cargos de decisão) que passa a viver às custas do património herdado, dinamizando-o com investimento em negócios pouco sofisticados. Cada vez mais, o empresário e o quadro de topo dão lugar ao rentista puro.
Embora a reprodução de pai para filho seja mais explícita, este fenómeno dá-se em diferentes escalas. Percorre casos diversos, como o profissional que por volta dos 40 anos utiliza a suas poupanças para colocar a carreira de lado e passar a viver de rendas imobiliárias ou o profissional liberal que constrói um negócio de Alojamento Local (a partir dos seus contactos) para complementar os seus rendimentos.
O negócio do grupo Amorim, representa bem este arco dentro da grande burguesia. O negócio da cortiça surge no século XIX, ascende a um quase monopólio nacional durante o período do Estado Novo, entra na bolsa e expande-se internacionalmente nos anos 1980. Na primeira década deste século, sob a liderança de Américo Amorim, aproveita as privatizações para entrar para a petrolífera Galp. Hoje, com a herdeira Paula Amorim, o destaque vai para o Amorim Luxury Group, já antes abordado por João Rodrigues nos Ladrões de Bicicletas. Esta conta com um restaurante emblemático na Avenida da Liberdade e a tentativa de tornar a Comporta num feudo da burguesia internacional, entre outros negócios. Paula Amorim não desistiu do negócio petrolífero, mas o que a fascina passou a ser o imobiliário e o turismo de luxo.
As duas grandes possibilidades da burguesia deslocam-se em sentidos opostos. Gerir grandes empresas em setores como banca, indústria e telecomunicações perde força. O rentismo assente no baixo valor é cada vez mais atrativo. Este reequilíbrio é nocivo, pois todo o rentismo baseia-se numa relação com dois lados: o que recebe essa renda e quem a paga.
A valorização do imobiliário na última década, em que o papel dos capitais estrangeiros foi essencial, gerou um novo equilíbrio nessa relação, passando a favorecer cada vez mais o rentista. Grande parte destas novas possibilidades de lucros para a burguesia através do imobiliário têm como vítima a massa da população que precisa de arrendar ou comprar casa.
Não surpreende que a burguesia rentista aceite tão acriticamente a perda de soberania nacional ou que a preocupação para com políticas industriais e tecnológicas não vá além de slogans. Quando a opção favorita da burguesia era a industrialização, podíamos falar de um desenvolvimento do país que se intercalava com os interesses desta. Agora apenas sobram os interesses.
AS DUAS BURGUESIAS?
Enquanto a alternativa do rentismo ganhou espaço nas hipóteses da burguesia portuguesa, podemos assinalar outras três grandes hipóteses (não exclusivas).
A primeira, a criação de novas grandes empresas tecnológicas colhe alguns apoios, mas o sucesso não é generalizado. O florescer da nova economia portuguesa virada para as novas tecnologias tem sido uma promessa sempre no horizonte. Quando startups são bem sucedidas, a tendência é para se deslocarem além fronteiras.
A segunda, ligada à primeira, é a emigração (relativamente confortável) de quadros qualificados para o estrangeiro - os tais filhos de Todo Bom que optam por emigrar. Torna-se mais frequente um aspirante a burguês em Portugal tornar-se parte da burguesia internacional - desinteressado para com as opções nacionais ou cujos interesses são opostos aos do país abandonado.
A terceira, é trabalhar para os backoffices de empresas multinacionais estrangeiras que se vêm instalando em Portugal. Embora seja uma opção frequente, não é particularmente atrativa. Seguindo o modelo de expansão de call centers, as condições que estas oferecem tendem a ficar abaixo das grandes empresas com raízes em Portugal que ainda restam. Em grande parte, é a opção dos filhos da classe trabalhadora que, com a democratização do ensino, passaram a ter títulos académicos que antes eram quase exclusivos da burguesia.
Ter um negócio próprio numa atividade produtiva ou ser um quadro de uma grande empresa portuguesa são hipóteses cada vez mais difíceis. Dedicar-se a profissões liberais mantém-se atrativo, mas complementar isto com extração de rendas é cada vez mais aliciante.
Isto condiz com o percurso da economia portuguesa nos últimos anos. O turismo a ter um peso cada vez maior, o imobiliário inflacionado, as decisões económicas cada vez mais dependentes de capitais estrangeiros (como mostrado com o peso da ANA na decisão do novo aeroporto), e a eterna promessa tecnológica que fica por cumprir.
Os filhos de que Todo Bom falava podem não ter todos migrado, mas o destino que estes escolhem passa cada vez menos pelas grandes empresas. Muitos seguem o caminho do pior que o rentismo tem para dar.
A ascensão económica de uma burguesia rentista condiz com a crescente força das opções políticas desta - uma economia sem instrumentos públicos, um setor público empresarial raquítico e um salto modernizador cada vez mais distante. A par do seu poder económico crescente, estes rentistas têm cada vez mais espaço para direcionar as grandes políticas nacionais.
Ao mesmo tempo, é uma burguesia que promove a sua eutanásia. Sem restos de dinamismo, a capacidade de decisão é resumida a confirmar o interesse dos capitais internacionais, e a sua dedicação passa ao sacar de rendas da classe trabalhadora. As suas reivindicações políticas cingem-se a exigir borlas fiscais, apoiar a liberalização de mercados e a promover a entrega das empresas nacionais que restam. Podemos dizer que é anti-patriótica e anti-desenvolvimentista.
Devemos identificar uma outra burguesia ainda não extinta. Uma que floresceu nos anos 1980, em que a média empresa floresceu, que apostou na modernização, apoiada em empreendimentos públicos e que preferia interagir com o setor empresarial do Estado do que vê-lo engolido por multinacionais. Uma camada social que com a integração projeto europeu, viu mais uma oportunidade para exportar produtos do que para importar capitais.
Discutir a existência de uma burguesia “boa” e uma burguesia “má” é uma ótica possível, mas não a mais útil. Enquanto distinguir as duas burguesias seja um exercício difícil, uma divergência entre as duas pode tornar-se um fenómeno com implicações cruciais para os destinos do país.
Embora o cidadão português comum não seja um investidor ou gestor de empresas, os desenvolvimentos no seio da classe dominante afetam toda sociedade. No presente estado de coisas, as opções políticas desta têm um peso desproporcional na vida dos restantes cidadãos.
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