O Dr. Jekyll de uma direita que quer ir além da Troika
O surgimento do economista Ricardo Reis no campo da direita reflete uma reconfiguração dos seus quadros intelectuais, cujo objetivo é ir ainda mais além da Troika.
A liderança do PSD de Luís Montenegro não tem sido de cortar o fôlego e a sua campanha eleitoral luta diariamente por ganhar força. A falta de carisma do líder “social-democrata” é uma das suas grandes fragilidades e, para tentar ganhar ímpeto programático depois de anos sem estratégia programática, muniu-se de 17 economistas. Montenegro recorreu, mais uma vez, a autoridades tecnocráticas, algo bem familiar no PSD (e que António Costa usou em 2015, com Mário Centeno), para tentar ganhar alguma credibilidade política.
A lista reúne, em grande medida, uma mistura de velhos quadros do PSD (Manuela Ferreira Leite ou Jorge Braga Macedo) e outros mais jovens ligados ao Passismo (Fernando Alexandre e Maria Luís Albuquerque). Talvez para surpresa de alguns, Ricardo Reis, professor na London School of Economics, faz parte do grupo seleto de economistas.
Mas como Ricardo Reis chegou ao grupo dos 17 de Montenegro? As suas credenciais académicas poderiam ter sido usadas para dar credibilidade e seriedade a este grupo (como Centeno, em 2015), mas a sua inclusão parece ir além disso. As intervenções deste economista no espaço público nacional, e as disparidades com o seu modo de atuação além fronteiras, oferecem pistas sobre qual o papel político-ideológico que este economista pode ter — não só nestas eleições mas também nos próximos anos e além do PSD.
AS DUAS FACES DE RICARDO REIS
Ricardo Reis é provavelmente o economista português mais reconhecido do mundo. As suas intervenções sobre temas nos quais é especialista, como as origens da inflação e a atuação dos bancos centrais, chegam aos ouvidos do célebre historiador-económico Adam Tooze e têm aparições nos principais espaços públicos, como é o caso do Financial Times e da NPR, a rádio pública norte-americana.
Em Portugal, o economista é mais conhecido pelas suas colunas de opinião no semanário Expresso, que normalmente abordam assuntos domésticos, e por entrevistas pontuais que geralmente se focam nos rumos e no futuro de Portugal — os economistas tecnocratas têm um fetichismo sobre prognósticos de futuro. Usa quase sempre um linguajar tecnocrático característico dos economistas ortodoxos.
Ao longo dos anos, Ricardo Reis tem usado de forma inteligente a sua exposição e reconhecimento internacional para chegar a esta posição doméstica. Se Fernando Pessoa tinha um heterónimo chamado Ricardo Reis, podemos constatar que o Ricardo Reis economista usa as diferenças geográficas para ter duas personalidades distintas no espaço público. Ou, se não quisermos pegar numa figura de proa da literatura portuguesa, podemos sempre referir-se-lhe como se fosse um Dr. Jekyll e um Mr. Hyde. Resta saber qual o rosto que exibe na sua intervenção em Portugal.
Quando está a participar no mercado global das ideias económicas, escrito e falado em inglês, o economista tem posições essencialmente técnicas e restritas à sua área de especialização. Já no debate nacional, num ambiente altamente protegido pela língua portuguesa e uma paywall (no caso dos artigos no Expresso), Ricardo Reis instrumentaliza a reputação conquistada no exterior para atuar como agente político. Neste campo, os níveis de rigor são muito mais baixos, recorre a preconceitos de classe, a juízos de moral duvidosa para interpretar fenómenos sociais e alimenta um guião altamente ideológico de forma camuflada.
Para entendermos o pensamento político de Ricardo Reis, o seu modo de atuação dentro das nossas fronteiras e como chegou ao núcleo de economistas próximos de Montenegro, devemos recorrer às suas entrevistas a órgãos de comunicação social nacionais e analisar as suas colunas de opinião no Expresso. Analisaremos especificamente quatro colunas: uma das suas mais recentes, e três publicadas em 2022. Curiosamente, nenhum destes textos foi partilhado por Ricardo Reis no Twitter (ao contrário de outras colunas escritas por ele).
ARGUMENTOS VINDOS DIRETAMENTE DO TWITTER
Um dos seus mais recentes textos é uma crítica à visão económica do novo líder do PS, Pedro Nuno Santos, baseada na sua experiência governativa (algo que nós fizemos aqui). Ricardo Reis assume que o debate sobre política industrial é complexo e longo, mas que o histórico do secretário-geral do PS na escolha de setores estratégicos é trágico, e por isso devemos descartar essa estratégia. O economista cita os casos da EFACEC, TAP, CP e CTT. Daí a diante, a coluna de Ricardo Reis segue um ziguezague de meias verdades e omissões, com argumentos que aparentam ter sido copiados e colados diretamente do Twitter de um troll da Iniciativa Liberal.
Por exemplo, Ricardo Reis insiste na ideia que de “recebemos €900 milhões por uma empresa que hoje vale metade disso”, uma conclusão que demonstra um desconhecimento de como funciona a cotação de uma empresa na bolsa. Sempre que uma empresa distribui dividendos, que no caso dos CTTs tem sido bastante frequente, a empresa transfere capital para os seus donos (accionistas). Chamar a este processo uma perda de valor é desconhecimento ou má fé.
Se olharmos para o resultado bolsista dos CTT sem ter em conta a distribuição de dividendos, nos 10 anos que vão do início de 2014 ao início de 2024, temos uma desvalorização de 48%. Se fizermos a análise tendo em conta a distribuição de resultados, que qualquer investidor que se preze faz, a desvalorização é de 13%.1 Além disso, omite o Banco CTT - uma opção da gestão privada que registou prejuízos durante vários anos. Essas perdas não podem ser imputadas a uns hipotéticos CTT públicos que não detinham um banco. O mito que os CTTs perderam metade do valor é uma forma de popularizar a ideia que a empresa está condenada ao fracasso porque “entrega cartas”, ignorando todo o potencial do negócio emergente das encomendas.
Nesse mesmo artigo, Ricardo Reis mostra claros equívocos sobre as origens da posição financeira da CP. Frases como “a dívida da empresa caiu porque... o Estado assumiu a dívida” e “deu lucro porque ... o Estado passou a transferir entre €80 e €100 milhões por ano para a CP como pagamento pelo seu serviço público” mostram desconhecimento sobre o funcionamento da CP. O motivo pelo qual o Estado assumiu a dívida histórica da CP foi por esta ter sido forçada a endividar-se, porque não recebia os pagamentos acordados com o Estado, daí o motivo desta dívida ser chamada de “dívida histórica da CP”.
A CP opera serviços deficitários, definidos pelo Estado como serviço público, e por isso deve ser paga para o fazer (da mesma forma que a Fertagus e os CTT são pagos). Na crítica de Ricardo Reis, paira a dúvida se o economista defende o não cumprimento de contratos por parte do Estado ou o arrastar do perpétuo endividamento forçado da CP, impedindo assim que a empresa fosse capaz de encomendar comboios de alta velocidade para a nova linha de TGV.
Indo mais longe, é difícil compatibilizar os argumentos deste economista com a existência de empresas públicas. Enquanto as críticas ao legado de Pedro Nuno Santos e do PS são legítimas, as posições de Ricardo Reis vão na direção de (não) se resolver os seus problemas, apostando, claro está, em privatizações e parcerias público privadas.
Sem abrir um debate sério sobre política industrial, no qual teria de definir a sua posição de forma clara, o economista com duas caras prefere misturar diferentes funções do Estado (obrigações de serviço público versus política industrial) e dá a entender que política industrial implica o controlo público das empresas nos setores em questão. Com estes níveis de imprecisões, é natural que Ricardo Reis evite publicitar o seu texto com a maior comunidade alargada de seguidores. É que as críticas poderiam fazer mossa na sua reputação.
FORTE COM OS FRACOS
Ricardo Reis não é muito claro sobre o seu posicionamento ideológico, pelo menos até fazer parte dos 17 de Montenegro. Com base nos seus textos e dos seus admiradores públicos (aqui e aqui), é fácil concluir que o economista tem várias convergências com o neoliberalismo mais radical, representado pelo governo PSD-CDS de Pedro Passos Coelho e, mais recentemente, pelo partido Iniciativa Liberal.
Em menos de 15 dias, Ricardo Reis publicou os artigos de opinião “O orçamento inglês” e “A educação começa em casa”. Apesar de terem uma linguagem ligeiramente diferente, a linha argumentativa dos textos tem fortes semelhanças com o discurso de inevitabilidade neoliberal, particularmente intenso nos anos da intervenção externa da troika (2011-2014).
No primeiro texto, Ricardo Reis afirma que o orçamento de Liz Truss, primeira-ministra britânica durante 44 dias (entre setembro e outubro de 2022), era mau, mas ”não é tão mau como o pintam”. As críticas do economista não eram exatamente contra as medidas que foram posteriormente revertidas por Truss antes da sua queda (por exemplo, cortes de impostos, em especial para os mais ricos). Ricardo Reis chegou mesmo a constatar que “há muitas partes do orçamento que são boas políticas”.
Para ele, reduzir o IMT é muito positivo porque este imposto prende as pessoas às suas casas num contexto de recessão. Considerar que o IMT é um constrangimento real da migração interna britânica, um país com diferenças abismais entre preços imobiliários entre zonas ricas e pobres, é próximo do delirante. Reis defende outros cortes de impostos, mais generalizados, com um argumentário keynesiano e recorre às práticas de outros países como justificativa.
Aos olhos do economista, o grande pecado do orçamento estava na resposta à crise energética, através da subsidiação do consumo. Uma política implementada em quase toda a Europa depois da invasão à Ucrânia, sem criar pânicos nos mercados, sendo uma das políticas que não foi posteriormente revertida. O economista chega mesmo a usar a expressão “borla no preço da electricidade” para descrever uma situação em que os preços (mesmo após intervenção estatal) mais que duplicaram em comparação com anos anteriores. Foi exatamente com base nesta crítica, de se subsidiar a fixação de preços da energia, que a Iniciativa Liberal comparou Truss ao antigo primeiro-ministro José Sócrates, numa tentativa atabalhoada de se distanciar do falhanço do seu corte de impostos, que causou fortes aumentos das taxas de juro e desvalorização da libra.
Quanto mais se afasta da tecnocracia, menos Ricardo Reis consegue disfarçar o seu classismo. O economista decidiu publicar, durante um pico inflacionário na Europa, uma reflexão em que afirmava que “algumas pessoas são pobres por responsabilidade própria. (...) são incapazes de rejeitar o prazer imediato de beber mais uma cerveja ou ver mais um programa de televisão em vez de investir umas horas a estudar para aprender competências que lhes darão um emprego melhor no futuro”. Neste caso, o economista, quando confrontado com uma realidade social em que os portugueses estão entre aqueles que mais horas trabalham na Europa, com um défice de qualificações histórico, decidiu optar por um híbrido entre o discurso “anti subsidiodependência”, em que as pessoas gastam dinheiro em mulheres e álcool, e o novo credo da “falta de literacia financeira”. No fundo, Ricardo Reis usa as suas credenciais de professor de economia na London School of Economics para dar uma certa legitimidade a um discurso político pouquíssimo sofisticado.
A CONVENIENTE AMBIGUIDADE TECNOCRÁTICA
Ao contrário dos comentadores que são abertamente de um campo político, a análise social de Ricardo Reis (e de outros tecnocratas) tem uma particularidade muito conveniente. O economista assume uma posição confortável em que ataca os políticos, evitando dizer realmente o que defende para o país. Quando confrontado, são-nos apresentados apelos pouco precisos sobre reformas estruturais, o bom uso de fundos e a produtividade é apresentada como umbilicalmente ligada aos salários. A última é uma posição vaga o suficiente (e com vários contra exemplos históricos, como o português das últimas décadas) para não se comprometer com detalhes políticos.
Esta ambiguidade, sempre bem enrolada em termos técnicos, permite ao economista defender tudo e o seu contrário ao mesmo tempo. Um exercício que se tornou comum entre a direita portuguesa: dizer que, para expandir o Estado Social, é preciso desmantelá-lo. Ricardo Reis diz-se “completamente a favor de um sistema de pensões e de um sistema de saúde ao nível do que temos, ou até mais generoso, mas têm de ter a noção do que é preciso gerar a riqueza que o sustente”. Di-lo ao mesmo tempo que lamenta que a população não queira “cortar num Estado social que não é particularmente grande em comparação com os parceiros europeus, mas que em relação ao que produzimos é muito grande.”
Este género de prática permite ao economista português defender políticas liberalizantes sem suportar os custos reputacionais quando chega a hora de avaliar os seus tristes legados.
Quando precisa de ir além das fronteiras da tecnocracia, este economista refugia-se na depressão. Assim foi no verão de 2022, quando lamentou a falta de dinamismo económico nacional que levou à venda ativos dos portugueses (casas e terrenos) a estrangeiros. Segundo o autor, esta dinâmica deu-se porque o executivo de António Costa tinha um programa de reversão de reformas do governo anterior, sem “anunciar uma verdadeira reforma cuja intenção seja abanar a economia”. Convenientemente, o autor ignorava a ligação de um conjunto de “reformas” (não revertidas e até aprofundadas por Costa) que promoviam (e continuam a promover) a alienação de ativos, fenómeno esse que Ricardo Reis tanto lamenta. Exemplo disso são os vistos gold, uma das ditas “reformas estruturais”, porta de entrada da internacionalização do mercado imobiliário português, e as suas novas variantes para nómadas digitais.
A ambivalência característica de Ricardo Reis é útil para um PSD em campanha eleitoral. Depois de Montenegro ter reunido com os seus 17 economistas, o PSD apresentou projeções e teses económicas de rigor duvidoso. Para de forma a revestir as suas promessas num suposto rigor orçamental, o partido apresentou um cenário macroeconómico, que se quisermos ser simpáticos nos termos, é bastante optimista. No centro da argumentação, está a ideia enganosa de que os cortes de impostos se pagariam a si próprios, pela via do crescimento económico; Tiago Santos, do Blog Ladrões de Bicicletas desmontou recentemente este argumento. Ricardo Reis empresta a sua credibilidade ao PSD nestes exercícios sem rigor técnico, mas conseguindo manter o distanciamento suficiente para não ser acusado de o autor ou defensor dessas posições.
É só quando Ricardo Reis fala do passado que expõe alguma claridade sobre o que pensa. Constatamos, em algumas das suas entrevistas, a defesa de medidas de liberalização e desregulação da economia (reforma laboral, privatizações, lei do arrendamento de Cristas) na onda das reformas acordadas com a Troika (“a capacidade de reforma, com uma breve exceção durante o programa do FMI, é de facto exasperante”). Em relação ao mesmo período, Ricardo Reis não tem nada a dizer sobre a privatização de setores estratégicos. Memória ou pensamento seletivo?
IR ALÉM DA TROIKA
No plano intelectual, o neoliberalismo luso foi esmagadoramente representado por um grupo de economistas vindos dos seus doutoramentos nos EUA, na década de 1970. Instalaram-se maioritariamente na Faculdade de Economia da Universidade Nova e na Universidade Católica, ambas em Lisboa. Foi um grupo que incluía figuras como Jorge Braga Macedo, Miguel Beleza e Manuel Pinto Barbosa.
Alguns entraram nos governos PSD de Aníbal Cavaco Silva, outros ficaram nas faculdades a apoiar a integração portuguesa na moeda única e a liberalização da economia nacional. A tarefa deste grupo e dos seus sucessores, como João César das Neves (conselheiro de Cavaco Silva) e António Nogueira Leite (com funções no governo Guterres), foi cumprida: Portugal entrou no Euro, privatizou a esmagadora maioria das empresas públicas e liberalizou vários mercados.
A hegemonia neoliberal mantém-se, mas este ciclo está encerrado, dada a idade dos seus representantes e o cumprimento dos seus objetivos políticos. A forte rejeição popular do último governo do PSD fez com que uma nova vaga de tecnocratas com cargos ministeriais, como Vítor Gaspar (Finanças) e Álvaro Santos Pereira (Economia), sejam nomes do passado. No caso de Maria Luís Albuquerque, sucessora de Vítor Gaspar, casos como os swaps que lesaram as empresas públicas em milhares de milhões, a oposição vai bem além das políticas que defenderam.
É neste contexto que devemos olhar para o surgimento de figuras como Ricardo Reis e outros economistas desta nova geração, como Pedro Brinca (candidato a deputado pela Iniciativa Liberal), Nuno Palma (um fervoroso apoiante da Iniciativa Liberal no passado, agora desiludido), Hugo de Almeida Vilares ou Miguel Faria e Castro (também convidado a participar nas discussões de Montenegro) no debate público. Tal como os tecnocratas da geração anterior, algumas destas figuras assumirão funções executivas em organizações internacionais pela nomeação política, outras no comentário político, ou mesmo migrando para o mundo dos negócios e conselhos de administração. Se Ricardo Reis será uma peça central desse xadrez, o futuro o dirá. As funções poderão ser diferentes, mas o pedigree académico será sempre citado.
A nova etapa do aprofundamento neoliberal procura novas caras, de preferência com um suposto desprendimento político-ideológico e partidário, sem uma associação direta aos tempos da Troika. Idealmente com boas maneiras e credenciais académicas obtidas no estrangeiro, para se “ir para além da Troika”. Não é por acaso que Ricardo Reis menciona tanto as pensões, um dos cortes por cumprir. Nada é mais simbólico que ver que os 17 de Montenegro reúnem o velho ainda por morrer (Jorge Braga Macedo e João César das Neves) e o novo ainda por nascer (Ricardo Reis).
NOTAS
1- Dados consultados no site Yahoo Finance. ‘Close’ e ‘Adjusted Close’, respetivamente.
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