Jogos, jornadas e mundiais
As jornadas mundiais da juventude reforçam o modelo liberal-rentista da economia dos grandes eventos, resultado das “reformas estruturais” da Troika
O recente debate sobre as jornadas mundiais da juventude foi praticamente dominado por aspectos financeiros. Os críticos destacaram os gastos públicos (de um Estado laico) associados com o evento, enquanto os seus defensores - com Carlos Moedas a ponta de lança - tentaram realçar os potenciais ganhos económicos para o país, que iriam beneficiar católicos e não católicos.
Estas disputas em torno das jornadas refletem dois aspectos gerais da política nacional. Primeiro, a hegemonia ideológica neoliberal no espaço público cria uma lógica de mercantilização das sociedades, em que todos os acontecimentos políticos são debatidos em termos financeiros. Em segundo, e o foco deste texto, realça a relação do Estado português com a promoção de grandes eventos, e sua evolução ao longo das últimas décadas.
OS EVENTOS COMO POLÍTICA DE ESTADO
A organização de grandes eventos em Portugal não é uma novidade. Grande eventos ligados ao Vaticano existem pelo menos desde 1967, com a visita do Papa Paulo VI a Fátima. No que diz respeito aos eventos maioritariamente promovidos pelo Estado, a década de 90 e o início do século XXI, são colectivamente recordados, para o bem e para o mal, como o período de ouro desta prática. Eventos como Lisboa Capital Europeia da Cultura 1994 (Lisboa’94), Expo’98, Porto 2001 e o Euro 2004, foram em grande medidas formas de alavancar projectos de infraestruturas públicas (Ponte Vasco da Gama, Gare do Oriente, expansão do metro, Casa da Música), aliada à reabilitação urbana (Museu da Arte Contemporânea, ou o programa POLIS que decorreu aquando do Euro 2004).
As jornadas mundiais da juventude fazem parte de um novo ciclo de grandes eventos. Se o ciclo anterior, da Expo’98, pode ser considerado um modelo “liberal-desenvolvimentista” - em que o Estado usava estes eventos para promover Portugal a nível internacional (ainda nos primórdios da internet) e expandir a capacidade produtiva nacional com infra estruturas, cujas obras públicas alimentavam o sector da construção (e banca) e a valorizavam a imóveis privados. As jornadas fazem parte de um novo modelo “liberal-rentista”. O Euro 2004 acabou por ser um período de transição entre estes dois modelos.
No período de intervenção da troika, sem os instrumentos ou a vontade para fazer uma política industrial ativa, o Estado português implementou várias medidas que resultaram na turistificação da economia, desenhadas e implementadas por Mesquita Nunes e Cotrim Figueiredo, cabecilhas do ultraliberalismo luso. Estas políticas, apresentadas como grandes reformas estruturais (de “desvalorização interna”), incluíram borlas fiscais para o alojamento local, a introdução dos vistos gold, incentivos fiscais à reabilitação urbana e a redução do IVA da restauração. Atualmente, depois de mais de uma década de estímulos ao sector do turismo, os grandes eventos são uma das poucas ferramentas que o Estado ainda tem (com a excepção de um novo aeroporto na Área Metropolitana de Lisboa e uma ligação internacional de comboio de alta velocidade) para promover o seu crescimento.
É neste contexto que surge a decisão de organizar as jornadas mundiais da juventude. O Websummit foi uma estratégia de combater a sazonalidade do turismo em Novembro, com uma fachada tecnológico-desenvolvimentista. Por sua vez, as jornadas mundiais da juventude são uma forma de aumentar a rentabilidade dos privados no já saturado mês de agosto. Estes eventos, tais como a organização de finais da Liga dos Campeões, seguem a velha lógica do neoliberalismo em que o Estado financia a maioria dos custos e fica responsável pelo planeamento, enquanto os privados capturam a esmagadora maioria das mais-valias a serem feitas, através do aumento de preços. Contrariamente ao ciclo do Expo’98, a nova estratégia de grandes eventos não tem um componente de bens públicos e infraestruturas que aumente a capacidade produtiva do país. O que tem sido maioritariamente visto como algo positivo, porque é apresentado como mais barato para os cofres públicos (mesmo que só com o Websummit, o Estado tenha gasto pelo menos 350 milhões de euros). Uma narrativa compreensivelmente popular após o trauma dos Estádios do Euro 2004, em que boa parte dos estádios estão subutilizados e deixaram câmaras municipais endividadas.
O anúncio entusiasmado do Presidente da República, quando Portugal foi escolhido para as jornadas mundiais da juventude; e a frase de António Costa que organizar a final da Champions, em 2021, era "um prémio para os profissionais de saúde" mostram o quão envolvidos estão os principais líderes políticos portugueses na promoção da economia dos eventos.
A candidatura ibérica para o Mundial de Futebol masculino de 2030 - com o cinismo de incluir subitamente a Ucrânia para aumentar as possibilidades de ganhar a votação - é o último passo de uma política económica que desistiu de um país tecnologicamente avançado. A decisão da FIFA só será anunciada no final de 2024, e daria outra vida ao executivo de António Costa. Por mais que os comentadores digam que o governo de Costa está saturado, sem rumo, e corre risco de ser dissolvido, o Primeiro Ministro sabe perfeitamente que um evento desta magnitude reforçaria a sua popularidade e reduziria o nível de escrutínio e combate político ao seu governo. O historial do Estado português de superar as suas capacidades quotidianas nestes eventos - sendo os transportes públicos nas jornadas um exemplo disso - certamente deixa o Primeiro Ministro confiante na sua estratégia.
Estas decisões não são um acidente, ou a mera preferência pessoal de um líder político. Sem instrumentos de planeamento económico, Portugal acabou por ficar refém deste tipo de políticas de promoção do turismo medíocres. É neste ambiente político-social, que o sucesso dos festivais de música a atrair turistas (que já colocam publicidade no Metro de Londres) tornaram Álvaro Covões, um programador de eventos glorificado, numa espécie de intelectual cultural da nação.
BEM-VINDOS A PORTUGAL, CALIFÓRNIA WYOMING DA EUROPA
“Portugal é a Califórnia da Europa”. A comparação já foi feita pela Nova School of Business of Economics, elite da Intelligentsia neoliberal portuguesa, e mesmo pelo Presidente da República. A comparação sugere implicitamente que Portugal é uma potência tecnológica, onde empreendedores têm ideias visionárias para fundar start-ups entre aulas de surf e provas de vinhos. As semelhanças entre Portugal e o Estado Norte Americano ficam-se pelo clima, praias, produção vinícola e uma enorme crise habitacional (aqui e aqui).
Vicente Ferreira, dos Ladrões de Bicicletas, comparou o modelo de turistificação da economia portuguesa com o Estado da Flórida. Ainda que seja uma comparação muito mais apropriada, ela acaba por ser bastante benigna, dado o papel periférico de Portugal dentro da UE e o inverno demográfico que o país enfrenta. Portugal assemelha-se mais com a pequena Jackson, no meio das montanhas do Wyoming.
Jackson depende de um fórum anual de banqueiros mundiais organizado pela Reserva Federal (Jackson Hole Economic Symposium), a versão americana do fórum do BCE em Sintra. Celebridades mundiais como Madonna, Fassbender e Cantona compraram casa em Lisboa; Kanye West, Sandra Bullock e Tiger Woods optaram por Jackson. Ao atrair milionários, o condado que inclui Jackson tornou-se na zona mais desigual dos Estados Unidos, casas a preços incomportáveis para quem trabalha na região, e sem capacidade de recolher impostos dos mais ricos. Para piorar a situação, dada a sua localização periférica, Jackson depende de altíssimas emissões de carbono: a cidade com cerca de 10 mil habitantes tem o aeroporto mais movimentado do Estado do Wyoming, com quase um milhão de voos por ano.
Estes são os verdadeiros danos sociais de uma Política de Estado baseada em promover Jogos, Jornadas e Mundiais.
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