O choque fiscal é o derrotado desta eleição
PSD, CDS e IL apostaram em deixar o país na idade-das-trevas económicas, mas as suas ideias, como o choque fiscal, perderam espaço.
Emergem dois consensos destas eleições legislativas. A esquerda foi derrotada e o Chega saiu dela como o vencedor. No meio, a Aliança Democrática (AD, coligação PSD, CDS e PPM) é nominalmente a vencedora, mas é consensual que a vitória da força liderada por Luís Montenegro ficou muito aquém.
Se quisermos puxar por um lado mais otimista da eleição, o PS chegou com o desgaste de oito anos de governação, um contexto inflacionário e de casos e casinhos mais e menos judiciais. O resultado é surpreendente pela positiva. Quando olhamos para congéneres europeus, a francesa Renaissance de Emmanuel Macron e o alemão SPD de Olaf Scholz, se tivessem de ir hoje a eleições, provavelmente não hesitariam em aceitar um resultado igual ao do PS do domingo passado. À esquerda do PS, os resultados não são animadores, embora a fragmentação do voto em quatro partidos (se considerarmos o PAN) ajude a traçar um relatório mais negro do que real.
No entanto, como já especulado pelo Expresso e por muitos outros, não se devem esperar quatro anos até às próximas eleições legislativas. A instabilidade que a solução governativa à direita possa vir a ter antevê que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, venha a dissolver o parlamento uma terceira vez. As dinâmicas destas eleições, quer para esquerda dentro do parlamento, quer para fora, devem ser rapidamente assimiladas. As aprendizagens podem ser necessárias muito em breve.
DERROTADO, LONGE DE MORTO
Apesar de as várias sondagens (praticamente o principal tema da campanha) tenham dado uma vitória folgada da AD sobre o PS, o partido liderado por Pedro Nuno Santos conseguiu um quase empate. Entre o comentariado, as opiniões apontavam para uma vitória convincente da AD. Por exemplo, num podcast do Jornal Público, previa-se uma onda laranja, em que estava em cima da mesa uma maioria parlamentar PSD-CDS-IL.
Mesmo com um candidato que há menos de um ano era dado como morto à partida, por causa das cicatrizes que traz de pastas como a TAP e à fama de esquerdista, é difícil imaginar uma campanha alternativa, ou um uma outra liderança, que tivesse dado um resultado superior ao PS.
Figuras do PS próximas do poder, como Francisco Assis, provavelmente preferiam uma viabilização de um governo PSD, e outras associadas ao passado do partido, como António Barreto, consideram o bloco central uma evidência. Mas, dado o resultado, Pedro Nuno Santos, ainda na noite eleitoral, sentiu-se à vontade para afirmar sem hesitações que o PS vai para a oposição.
Como apontado por dois dos autores da República dos Pijamas, para a publicação norte-americana Jacobin, o estilo empreendedor de Pedro Nuno Santos, ao transpor o espírito das suas políticas na ferrovia para a campanha legislativa, ganhava força e lançava dúvidas sobre o consenso das sondagens. Ao propor “Mais Ação“, o PS conseguiu conter os danos do pior do legado de Costa, sem nunca o rejeitar.
É na grande proposta de trazer mais Estado para a economia, não limitada ao sentido de mais serviço público, mas, por outro lado, com a maior ênfase em trazer mais coordenação para a economia, que devemos encontrar a fonte da resiliência eleitoral do PS. Os resultados no Algarve e no município de Lisboa, as zonas mais afetadas pelo atual modelo económico de expansão turística em piloto automático, tornam evidente o esgotamento do modelo de crescimento costista, dois anos depois de uma maioria absoluta.
O coração da campanha conduzida por Pedro Nuno Santos, sem nunca criticar os pressupostos do capitalismo, vai de encontro ao pensamento económico que ganha espaço na era presente.
PORTUGAL NA POLICRISE
Chegámos a esta campanha com quatro anos marcados pela pandemia, conflitos militares, inflação e inúmeros desastres ambientais. Este cruzar de crises abriram um novo ciclo político-económico, para o qual o historiador económico Adam Tooze recuperou o termo polycrisis.
A intercepção de choques e crises põe a olho nu as fissuras do modelo de desenvolvimento económico e social do norte global, em especial da União Europeia (UE). A pandemia demonstrava a incapacidade da maioria dos Estados do norte global em responder a pandemias, comparativamente com a China ou mesmo com o Vietname. A invasão Russa tornou evidentes as fragilidades da UE, e a sua total dependência dos EUA, em temas de soberania nacional e capacidade militar. A crise climática confirma o óbvio: o colete de forças das regras orçamentais europeias não permite uma transição energética, e deixa este bloco sem ferramentas para disputar uma corrida tecnológica com a China e os EUA. Em Portugal, o mundo laboral pós-pandemia, com maior prevalência do trabalho remoto, acelerou a já aguda crise habitacional.
Este remoinho de choques levou a uma repensamento do papel do Estado por parte de importantes sectores da burguesia global. A administração de Joe Biden tem contornos muito diferentes do seu antecessor democrata, Barack Obama, com uma política industrial mais ativa.
O insuspeito Financial Times tem-se tornado um crítico de alguns componentes do neoliberalismo cego, herdados das décadas anteriores, como a constitucionalização da austeridade na Alemanha, falta de impostos sobre a riqueza, ou acabar com a fuga de impostos através da repatriação de lucros. No dia anterior a Portugal ir a votos, apontava para a falta de estímulos às indústrias verdes como a causa do atraso europeu em relação aos EUA. Sem querer uma viragem para o socialismo, o jornal britânico entende que preservar a ordem do capital requer alterações ao seu modo de operar, um no qual o Estado terá de ser mais ativo.
CHOQUE QUÊ?
Do lado oposto ao intervencionismo económico encontramos a campanha eleitoral da AD e da IL. A IL limitou-se a fazer campanha com as bandeiras que definem o partido – redução de impostos para os mais ricos e privatizações. A AD, quando tinha que explicar no que consistia a sua “mudança” para o país, socorreu-se a um guião parecido, enfatizando o “choque fiscal”. O pressuposto de ambas as forças políticas foi o velho guião neoliberal: baixar impostos, cortar a despesa e o aumentar o peso do setor privado estão destinados a dinamizar a economia, criando assim crescimento económico e mais recursos para gastar.
Não só o discurso dos partidos que agora devem formar governo vai em contracorrente com o clima intelectual vigente, como estes nunca foram capazes de o explicar convincentemente. Como descrito por Vicente Ferreira dos Ladrões de Bicicletas, a IL “não apresenta propostas concretas porque não as tem ou não as quer dizer”. Já o PSD fez uma campanha em que fala de um crescimento económico milagroso acima dos 3%, sem apresentar qualquer suporte para esse número. Para legitimar a campanha, encontrou 17 economistas que emprestaram a sua credibilidade ao programa.
O pouco escrutínio mediático às propostas fantasiosas destas candidaturas permitiu conter os danos da falta de visão e articulação das duas candidaturas.
O espírito da campanha não foi muito diferente daquele que premiou o PSD e o CDS com uma maioria parlamentar em 2011. Uma série de recuos do Estado na economia seriam a fórmula que colocaria a economia portuguesa numa rota de crescimento imparável, ainda por acontecer.
Não só o contexto dessa campanha foi diferente, com Portugal a mergulhar numa crise financeira em 2011, como o clima intelectual também o foi. Na era da policrise, falar em redução de impostos já não é uma fórmula mágica para a legitimidade económica.
Num mundo cada vez mais difícil de navegar, a direita portuguesa oferece como resposta para todos estes problemas a redução de impostos e a concessão de serviços a privados. Face às propostas de choques fiscais, a exploração de lítio, o papel do PRR no desenvolvimento nacional e centramento do Estado com grandes projetos de infraestruturas foram pequenas notas de rodapé. No caso da IL, a sua outra grande bandeira - a TAP - chegou à campanha sem qualquer fôlego.
É inegável que a maioria dos eleitores gostaria de pagar menos impostos, mas também é difícil convencer uma grande maioria de que os grandes desafios coletivos nacionais vão ser resolvidos com um “choque fiscal”, supostamente eficaz mas sem causar danos no equilíbrio orçamental. Mesmo ignorando as tendências globais, custa acreditar que os problemas quotidianos dos portugueses, como a sobrelotação de transportes públicos e trânsito, a seca, a habitação, ou a falta de médicos no SNS, serão resolvidos magicamente com uma redução de impostos. Uma AD que mal descolou de um PS desgastado e uma IL que parece ter chegado aos limites do crescimento são as evidências dos limites da agenda do “choque fiscal”.
Não é só neste novo contexto que encontramos a raiz da fragilidade da solução que alcança o poder. É também ao rejeitá-la que o Chega ganha dimensão.
RECONFIGURAÇÃO DA DIREITA
Num artigo em celebração do resultado do Chega, Thomas Gallagher, um académico britânico admirador do ditador António de Oliveira Salazar, gaba-se de André Ventura ser mais Keynesiano do que Friedmanita. É desproporcional falar do Chega como o advento de planeamento na economia, mas foi sobre essas premissas que o Chega fez a sua campanha.
Como antes falado aqui, a estratégia de crescimento do Chega baseia-se, por um lado, em dar uma nova projeção a bandeiras já antigas da direita, e por outro, em soltar-se de um programa fixo, fazendo da arbitrariedade a sua imagem de marca. No meio destes dois pilares estratégicos, encontramos uma rejeição nominal da grande bandeira da direita das últimas décadas – quanto menos Estado, melhor Estado.
Tanto ao fazer propostas económicas sem justificá-las do ponto de vista do equilíbrio orçamental, como em não hesitar sinalizar que não se opõe a uma ação musculada do Estado para cumprir projetos (por exemplo, no tema do novo aeroporto, onde o PSD tem hesitado, André Ventura fala em construí-lo em quatro anos), o Chega distancia-se dos parceiros de direita que apenas suspiram por um “choque fiscal”.
E, como também aqui escrito antes, o Chega representa um experimentalismo da direita para alargar a sua base social e foi isso que se viu nesta eleição. Apesar de ainda não terem surgido dados precisos, é consensual que o Chega capturou muitos votantes de antigos abstencionistas e novos eleitores. Não é surpreendente este experimentalismo ter sido bem sucedido ao deixar para trás os pressupostos do equilíbrio fiscal e das virtudes do laissez-faire económico. Oeiras é um município governado por Isaltino Morais, um antigo quadro do PSD que construiu a sua reputação como um fazedor, longe do catecismo da não intervenção do Estado e do choque fiscal. Isto sinaliza esta tendência ao ser neste município onde o Chega foi mais fraco no distrito de Lisboa.
André Ventura, o discípulo do austeritário Pedro Passos Coelho, poderá começar a apresentar-se como o coveiro da austeridade da Troika, e isso seria uma ironia do destino. Mas não nos devemos surpreender se o tentar fazer.
Apesar de evangelhos como o choque fiscal parecerem estar cada vez mais desacreditados, o abraçar de uma agenda intervencionista na direção do progresso social está longe de estar conquistada. Não devemos pôr de lado esta governação deixar Portugal na idade-das-trevas do pensamento económico.
Para já, a única garantia parece ser a da instabilidade. Provavelmente os media internacionais vão trocar os slogans de oásis de estabilidade ibérico, e passar a descrever uma italianização da política nacional.
Absorver as conclusões da eleição de domingo passado, e encontrar as fissuras a explorar, é essencial para aqueles que procuram construir agendas contra hegemómicas. Quer dentro quer fora dos cargos eleitos, o trabalho por fazer continua a ser muito. Quanto à República dos Pijamas, depois de semanas dedicadas às eleições, vamos (tentar) voltar aos temas menos pontuais. Nas próximas semanas traremos temas de contexto como o declínio da burguesia portuguesa, as narrativas sobre os jovens lusos e reflexões críticas à semana dos quatro dias.
Vê abaixo a lista completa dos artigos que escrevemos sobre as eleições. Aproveitamos também para dar as boas vindas ao economista Diogo Martins, agora com a newsletter “Fratura Exposta”.
República dos Pijamas, eleições legislativas 2024
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