O crescimento irlandês não sai do debate nacional, mas pouco se vê nos bolsos dos irlandeses
Cunhar o passado recente da Irlanda como sucesso demonstra que a Iniciativa Liberal convive bem com a estagnação e uma crise habitacional, desde que os impostos para as empresas sejam baixos.
Para quem só sabe usar martelo, todos os problemas são um prego. No plano político português, o martelo é o liberalismo e os pregos o socialismo. Aos olhos da Iniciativa Liberal, autoproclamado representante único e legítimo do liberalismo, Portugal é dominado pela hegemonia socialista, que vai muito além do PS. André Ventura? Neosocialista. PSD-Madeira? Socialista.
Dentro da bolha liberal, reza a lenda que Portugal vive num regime político dominado por um único partido (o PS) que se perpetua no poder, porque consegue manter a população pobre e dependente do Estado (aqui) e ignorante (aqui e aqui) o suficiente para não entender esta dinâmica, o que contamina os outros partidos da direita. João Cotrim de Figueiredo chegou mesmo a classificar esta batalha como uma “batalha cultural”.
Como solução, a IL promete libertar os portugueses da armadilha da dependência do Estado, através do liberalismo e do empoderamento dos privados. Para capturarem a imaginação do eleitorado, e evitar que as suas propostas sejam um mero continuísmo do passismo, o partido e o seu think tank supostamente apartidário citam recorrentemente a Irlanda. Fazem-no referindo o seu crescimento económico como prova de que é possível e desejável. Os seus mais recentes debates e propaganda eleitoral têm seguido essa lógica.
O argumento segue a seguinte lógica: a Irlanda tem impostos baixos, atraiu multinacionais, regista taxas de crescimento económico bestiais e por isso oferece salários mais altos. A velha tática de empilhar falácias, e dados descontextualizados, para reforçar um falso argumento é aqui usada.
Logo à partida, o argumento peca por se basear num modelo de difícil (ou impossível) replicação. Ao baixar impostos para se tornar um paraíso fiscal, a Irlanda atraiu multinacionais que procuram impostos mais baixos, não para a atividade que exerce na Irlanda, mas para a que exerce noutros países, em especial no espaço europeu. Isto não se trata de criação de valor, mas de parasitismo.
Assumir que Portugal replicaria os ganhos da Irlanda ao baixar impostos implicaria que uma nova série de multinacionais, como a Apple, Facebook e Google, passariam a existir, e a fixar-se em território nacional para poupar em impostos. Além disso, o próprio modelo irlandês começa a ser contestado: a Comissão Europeia chegou mesmo a impor uma multa à Irlanda pela não cobrança de impostos e, nos últimos anos, ganharam força iniciativas de impostos mínimos para multinacionais a nível europeu.
Mesmo se assumindo que isto aconteceria, devemos olhar para os méritos do modelo de desenvolvimento irlandês de forma objetiva, ou seja, tendo em conta a evolução das condições de vida da população.
Dado o peso dos lucros das multinacionais na economia celta, as estatísticas do PIB Irlandês estão cada vez mais desligadas da realidade. O caso mais paradigmático foi o “crescimento” de 6,6% em 2020, em plena pandemia de covid-19, quando a economia mundial se encontrava parcialmente paralisada. Face à recente queda do PIB irlandês, para os 3,4%, o próprio governo desaconselhou a leituras precipitadas sobre os números do PIB irlandês.
Enquanto isso não impede os adeptos da redução de impostos de citar a Irlanda como prova do sucesso deste modelo. Quando confrontados com o desfasamento entre o PIB e a realidade social irlandesa, os interlocutores mais fiáveis, pelo menos à superfície, fazem uma retirada estratégica, recorrendo a uma de duas opções:
1. Afirmam que a atual diferença salarial absoluta entre Portugal e a Irlanda é suficiente para mostrar o grande do sucesso do liberalismo irlandês e o falhanço do suposto socialismo luso;
2. Outros de conhecimento económico mais aprofundado, como Carlos Guimarães Pinto ou Miguel Faria e Castro (da equipa económica da AD), começam a citar indicadores alternativos como o Produto Nacional Bruto (aqui e aqui, respectivamente) ou a fazer estimativas através dessas estatísticas oficiais, difíceis de interpretar para a esmagadora maioria das pessoas.
Mas porque é que a IL não recorre simplesmente à evolução de rendimentos da Irlanda ao longo dos anos? Este detalhe dá-nos pistas sobre aquilo que os liberais não nos querem mostrar.
NO PELOTÃO DA FRENTE NA ESTAGNAÇÃO DOS NÍVEIS DE VIDA
A Irlanda foi um dos países que mais sofreu com a crise financeira de 2007-2008. A economia celta viveu uma gigantesca bolha especulativa, em especial no mercado imobiliário, que levou à nacionalização dos seus bancos e a pacotes de austeridade acordados com a Troika. Se durante alguns anos a Irlanda era a prova de que o neoliberalismo selvagem fazia mal, essa deixa foi sol de pouca dura.
Em 2010, a economia voltou a crescer e a pequena ilha passou de besta a bestial. O país estava supostamente a colher os frutos da duras “reformas estruturais”, ao atrair investimento estrangeiro, porque tinha dado “confiança aos mercados”.
A fábula da retoma irlandesa ignora sempre um fator: o fraquíssimo crescimento dos rendimentos disponíveis dos trabalhadores. Entre 2008 e 2022, o rendimento médio líquido (ajustados ao padrão de poder de compra) cresceu apenas 5%, o segundo mais baixo da União Europeia, apenas na frente da tragédia grega, onde os rendimentos médios líquidos continuam 9% abaixo daquilo que eram há 14 anos.
No mesmo período, o rendimento médio líquido de um português aumentou 23%. Os salários na Irlanda são superiores aos portugueses. A emigração de portugueses para esse país dispensam a consulta de estatística oficiais. Contudo, o milagre liberal irlandês, combinado com um desastre socialista, encurtou misteriosamente a distância entre os dois países.
Se o liberalismo irlandês foi um absoluto sucesso, como classificar a Islândia, a Bélgica, a Suécia, a Dinamarca e a Finlândia, países onde os rendimentos médios líquidos ultrapassaram o Tigre Celta? A realidade mostra que Portugal não é o único a ser “ultrapassado” pelos seus parceiros europeus.
DUPLA CRISE CELTA: HABITAÇÃO E SAÚDE
A Irlanda é um dos poucos países da União Europeia que na última década viu os preços da habitação aumentarem ao alto ritmo do mercado português, estando já em níveis próximos dos máximos praticados no pico da bolha imobiliária. Nos últimos dez anos, as rendas aumentaram 82%, comparado com 30% em Portugal.
Tal como em Portugal, a crise habitacional irlandesa força os jovens a viver em casa dos seus pais. Na última década, o aumento das rendas fez com que a taxa de jovens irlandeses (25-29 anos) a viver com os pais tenha quase duplicado. A percentagem de jovens irlandeses a viver com os pais passou de níveis comparáveis aos austríacos para uma das maiores percentagens da europa ocidenal, semelhante a Portugal, e mais do dobro de países como a Alemanha, Holanda ou França.
As residências universitárias foram altamente financeirizadas, sendo cada vez mais dominadas por fundos de investimento, que praticam preços elevadíssimos, dada a sua função de maximizar lucros. Nos últimos anos, o seu governo de direita foi forçado a controlar rendas e a apostar em investimento público em residências, para responder à forte contestação social em torno desta crise.
Em termos de sistema de saúde, a Irlanda tem um dos sistemas de saúde híbrido (públicos e privados operam) que é um dos mais caros do mundo desenvolvido (sétimo mais caro da OCDE, em 2017). A maioria da população tem de pagar pelas consultas de médico de família e conta com uma comparticipação de medicamentos limitada. Mesmo antes da pandemia, a provisão de cuidados médicos na Irlanda não convencia a revista liberal The Economist, insuspeita de qualquer simpatia pelo socialismo. O farol do neoliberalismo ocidental afirmava que o fraco sistema de saúde na República da Irlanda, comparado com o NHS público disponível na Irlanda do Norte, podia ser visto como fator a jogar contra a reunificação da Irlanda. Apesar de muito mais caro, os rankings mostram que o sistema de saúde celta tem uma performance semelhante ao SNS (aqui e aqui).
Neste período de estagnação de rendimentos e degradação social, o Sinn Fein, partido de esquerda ligado ao Irish Republican Army (IRA), passou de menos de 7% dos votos (2007) para o partido mais votado da Irlanda nas últimas eleições. É hoje líder nas sondagens num sistema politico historicamente dominado por dois partidos de direita (Fianna Fáil e Fine Gael). Estranhamente, o milagre irlandês está a tornar os irlandeses esquerdistas.
É inevitável que nesta eleição se debata quase uma década de costismo, em especial em áreas como a habitação e o sistema nacional de saúde. Nesse contexto, a Iniciativa Liberal decidiu trazer um modelo de desenvolvimento, para o combate político, de um país em que os rendimentos (mesmo que substancialmente mais altos) estão ainda mais estagnados que os portugueses; sofre uma crise habitacional semelhante à portuguesa; um sistema de saúde que deixa muito a desejar; e vê os seus eleitores a virarem à esquerda.
Não só é proposta uma solução desenquadrada com o contexto português, como também, se fosse aplicável, apenas iria acelerar o pior lado dos baixos salários, subidas dos preços da habitação e degradação dos serviços públicos que assolam o país. A obsessão com o modelo irlandês mostra que os liberais convivem bem com a estagnação e empobrecimento, desde que os impostos para as empresas sejam baixos.
Os liberais acabam por fazer aquilo que tanto acusam o PS de fazer: relativizar a situação dos portugueses com comparações que em nada melhoram o debate.
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