Meia década de pandemia e dois anos de newsletter: seguindo Adam Tooze na Policrise
Com a newsletter a fazer dois anos, aproveitamos para destacar um historiador económico que nos serve de inspiração.
Há meia década um vírus impôs-se na nossa realidade. No final de 2019, a China informou a Organização Mundial de Saúde sobre uma série de casos de pneumonia. Em meados de janeiro de 2020, o primeiro caso de COVID-19 foi registado fora da China. Em fevereiro, no que era atribuído “às intensas relações que a China” mantinha com a Itália, a pandemia chegava à Europa. Apesar de os diagnósticos iniciais apontarem, ora para falhas particulares dos sistemas de saúde chinês e italiano ora para reações exageradas face a um vírus que seria controlável, a partir de março, boa parte do mundo entrava em quarentena.
E, com ela, novos hábitos digitais ganhavam espaço, como sejam a utilização da plataforma Zoom, para reuniões de trabalho e para convívios sociais, e da Netflix, para entretenimento. No consumo digital, face a este imprevisto, eram procuradas as respostas para qual seria o rumo da humanidade.
Tal como na crise financeira de 2008, as convulsões provocadas pela COVID-19 criavam esperanças numa nova agenda social progressista. Levando à letra um leque de opiniões colecionado pelo jornal online ‘Politico’, daqui em diante os profissionais de saúde iriam ser designados como os heróis da sociedade e a solidariedade necessária para lidar com o coronavírus iria atenuar a polarização política. A necessidade de organização da sociedade iria reforçar a autoridade técnica. O sofrimento necessário para atravessar a pandemia ajudar-nos-ia a redescobrir “as melhores versões de nós mesmos”. Olhando para vários governantes portugueses, podíamos ver reflexos deste espírito de análise.
Em abril, João Matos Fernandes exprimia o sentimento da altura. O então ministro do Ambiente e da Ação Climática apresentava um plano de ação para relançar a economia no contexto da crise da COVID-19, o qual exigia uma visão a longo prazo, que contemplava a “criação de bem-estar como uma necessidade”. Matos Fernandes pretendia acelerar a expansão de transportes públicos e avançar com a construção de novas barragens, com todos os projetos a poderem arrancar no prazo de um ano e meio, ou seja, antes do final de 2021. Em linha com o tom geral, e com uma quebra do consumo de combustíveis fósseis a nível mundial, o ministro via a intervenção forçada do Estado na economia como uma oportunidade para imprimir um maior papel à sustentabilidade ambiental. Já sobre a agricultura, Matos Fernandes notava “que tem de ser cada vez mais diversa nas espécies que cultiva, para poder abastecer mercados de proximidade”. Notando os desenvolvimentos do mercado imobiliário, em quebra de preços devido às interdições ao turismo, o ministro também esperava uma mudança, com a previsão de que “o arrendamento de longa duração vai emergir no centro das cidades” e que iria estar aliado a “centros históricos muito mais vivos”.
Em julho, era a vez de Fernando Medina, que ainda como presidente do município de Lisboa, falava de um novo paradigma para a cidade num artigo de opinião no jornal britânico ‘The Independent’. Depois do turismo em excesso mostrar ser um fardo para os lisboetas, Medina falava em trazer os espaços do alojamento local de volta aos “trabalhadores essenciais e suas famílias”, prevendo um regresso das populações para o centro da cidade, onde “podiam mais facilmente aceder aos transportes públicos, serviços e tirar partido de festivais e concertos”. A redução da necessidade de deslocações, aliada às novas ciclovias, combateria a poluição atmosférica, enquanto reduziria as emissões de gases com efeito de estufa. Assim, com a pandemia no retrovisor, não se poderia regressar ao “business as usual”, que condenava o mundo à “catástrofe climática e a grandes desigualdades”.
Quando a primeira onda de confinamentos fazia um mês, Slavoj Žižek lançava o livro Pandemic!: COVID-19 Shakes the World. Num primeiro capítulo intitulado ‘Estamos todos no mesmo barco’, este filósofo hegeliano advogava o estabelecimento de um novo modo de “comunismo” que fosse “alguma forma de organização mundial que controle e regule a economia”. Como exemplo desse progresso social, Žižek citava o caso de Israel, que ofereceu imediatamente ajuda às autoridades palestinianas para combater o coronavírus. Não foram precisos quatro anos para que a grande preocupação deste filósofo esloveno face ao genocídio praticado por Israel em Gaza passasse a ser a falta de condenação por parte da esquerda às ações do Hamas.
Além de se assinalar cinco anos sobre o início das medidas de contenção da COVID-19 na Europa, o final de fevereiro de 2025 marca também o (segundo) aniversário da República dos Pijamas. Apesar de ser apenas uma coincidência temporal, o intervalo de cerca de três anos entre o surgimento do vírus e o início deste projeto simboliza mais que isso. A pandemia pode não ter mudado radicalmente o mundo, ou pelo menos não ter mudado na direção que muitos desejavam, mas o seu desenrolar e as várias expectativas defraudadas semearam as questões que a escrita desta newsletter passou a tentar enquadrar e responder. Em boa medida, a República dos Pijamas é uma filha da pandemia.
À semelhança da publicação com que celebrámos o nosso primeiro aniversário, olharemos para uma figura contemporânea ligada ao mundo da economia, da qual tirámos várias lições. Desta vez, o foco é em alguém que nos ajuda a compreender os desdobramentos dos últimos cinco anos e a pensar nas suas consequências para Portugal.
DEPOIS DO CONFINAMENTO VEIO A RESSACA
Não foi apenas o (re)acender agudo de conflitos em locais como a Ucrânia e a Palestina que impede balanços risonhos sobre a última meia década. Depois de ser derrotado no final de 2020, Donald Trump regressa à Casa Branca, desta vez com Elon Musk a seu lado, e anuncia a saída dos Estados Unidos da América da Organização Mundial da Saúde e do Acordo de Paris. As eleições de ontem na Alemanha mostram uma extrema direita em ascensão na Europa e as vitórias da direita conservadora passam a ser vistas como um mal menor. Em Portugal, o Chega passou de um deputado para 50, tornando-se de longe a terceira força política. Mesmo no Brasil, onde Lula derrotou Bolsonaro, o governo presidido pelo PT tem tido dificuldades em manter a sua popularidade, o que torna o regresso da extrema direita, em 2026, ao Palácio do Planalto uma séria possibilidade.
No mercado imobiliário, em sentido inverso ao das previsões otimistas, os preços em Portugal ultrapassaram barreiras que se julgariam inimagináveis, provocando uma das piores crises do mundo desenvolvido. O número de visitas turísticas bate recordes anuais: os centros históricos das cidades são cada vez mais inacessíveis para quem vive nas metrópoles e o tema da expansão aeroportuária voltou com mais força do que nunca, consolidando-se como um consenso interpartidário.
Os trabalhadores essenciais e as suas famílias não voltaram a viver no centro de Lisboa. Mesmo com o Plano de Recuperação e Resiliência lançado pela União Europeia, o grosso dos planos de Matos Fernandes nunca estiveram próximos de ser executados.
As emissões de combustíveis fósseis retomaram a sua rota ascendente. Em 2022, um terço do Paquistão ficou submerso devido a cheias e uma seca ao longo de vários anos trouxe o caudal do Rio Amazonas para mínimos, desde que há registos. Tragédias que destroem áreas urbanas em países ricos, como as cheias de Valência, os fogos em Los Angeles e na região de Aveiro, mostram uma crise climática em passo acelerado e cada vez menos circunscrita a zonas periféricas. O impulso que a política para a transição energética teve há meia década mostra agora sinais de recuo, com as forças parlamentares da extrema-direita a colocarem-na em causa e as empresas tecnológicas, como a Google e a Microsoft, a descomprometerem-se com as metas climáticas.
A inflação dos bens e serviços regressou às economias desenvolvidas e, ao contrário da previsão de um epidemiologista, 2024 não inaugurou os novos “Loucos Anos 20”, com “mais sexo, maiores gastos de dinheiro e diminuição da religiosidade”. Muitos dos que foram galardoados como heróis na pandemia foram perdendo poder de compra com o choque inflacionário. No fundo, não ficou tudo bem.
De entre todas as previsões sobre o futuro, Michel Houellebecq parece ter sido um dos mais certeiros. Em 2020, o polémico escritor descrevia a COVID-19 como “um vírus banal, vagamente relacionado com os obscuros vírus da gripe, com condições de sobrevivência mal conhecidas, caraterísticas pouco claras, por vezes benigno, por vezes fatal, nem sequer sexualmente transmissível: em suma, um vírus sem qualidades”. O autor francês rejeitava declarações como “nada será mais como antes” e rejeitava que sairíamos dos confinamentos com um novo mundo. Este mundo seria “o mesmo, mas um pouco pior”.
Embora a mensagem de Houellebecq, no seu tom niilista, possa ter sido profética, outro autor – que em março afirmava que “nunca estivemos aqui” – é nos mais útil para entender as possibilidades para o futuro que nos aguarda.
ADAM TOOZE: FENÓMENO PANDÉMICO
“We’ve never been here” [nunca estivemos aqui] era o título do texto lançado por Adam Tooze, em março de 2020 no ‘Washington Post’. Para melhor tentar entender o mundo em que se estava, refletido em indicadores como despedimentos em números recorde, o historiador económico comparava a situação à crise espoletada em 2008, às guerras mundiais e à implosão da União Soviética e descrevia-a como completamente nova. Tooze analisava o momento conturbado, enquanto se punha na cadeira dos decisores políticos. Nesta situação sem precedentes, estes apenas tentavam manter o sistema económico mundial à tona e Tooze assumiu o papel de intérprete e decisor sombra.
Meses mais tarde, em novembro, Tooze estreava-se na plataforma Substack com o Chartbook, que hoje conta com centenas de milhares de subscritores. O britânico, que passou boa parte da sua juventude na Alemanha Ocidental e hoje vive em Nova Iorque, começava com uma publicação em que abordava as primeiras vacinas contra a COVID-19 como sendo a luz ao fundo do túnel para resolver o problema pandémico.
Com um estilo marcado por capturas de ecrã de gráficos das publicações online, como a revista ‘The Economist’, o jornal ‘Financial Times’ e a agência noticiosa ‘Bloomberg’, Tooze passou a publicar a um ritmo frenético, com vários artigos por semana. Navegando pelo arquivo do Chartbook do académico de história e economia, encontramos Tooze – principalmente, mas não só – à procura de entender o caminho a trilhar nas questões que se colocam aos governos e às sociedades. Entre as publicações mais populares está a perspetiva económica da Rússia nas vésperas de invadir a Ucrânia, as consequências financeiras para a Universidade de Columbia (onde Tooze leciona) de ter laços de investimento com Israel, os mitos e os desafios económicos da Alemanha, quando passava um ano e meio do início da guerra na Ucrânia, entre tantos outros. Tooze também se tornou um importante agregador de informação e pensamento sobre temas mais obscuros, como a ligação entre a guerra civil e a extração de ouro no Sudão; ou a análise da crise financeira do Sri Lanka e do Paquistão.
Partindo da sua experiência como intérprete dos choques e consequentes decisões sobre a economia durante a era pandémica, Tooze lançava o livro Shutdown [Paralisação: Como a Covid Abalou a Economia Global, ed. Relógio D'Água, Lisboa, 2022], no final do verão de 2021. Ao seu estilo, Tooze faz reviver os dramas e as incertezas que se colocavam às sociedades nos tempos mais conturbados da pandemia. Enquanto, meses depois, as grandes ansiedades e incertezas eram colocadas em retrospetiva, este historiador económico eterniza-as num retrovisor escrito. Tooze não era um estranho à escrita de livros ao tentar colocar-se na pele dos decisores económico-políticos. Com Deluge, debruçava-se sobre a ordem mundial do período entre guerras mundiais, e em The Wages of Destruction, sobre a Alemanha nazi. Notavelmente, em Crashed, descrevia a Grande Crise Financeira do início deste século, passando por episódios famosos, como o “fazer tudo o que for necessário” de Mário Draghi, e chegando às ondas de choque, como a primeira eleição de Donald Trump.
A grande diferença de Shutdown face às suas outras obras é a tentativa de desvendar um passado muito recente, ao contrário do tradicional distanciamento de anos ou mesmo décadas. Diferença essa que catapultou Tooze, de um académico reputado para uma figura pública. Hoje o historiador económico tem centenas de milhares de seguidores no Twitter/X e na sua newsletter, tem um podcast semanal, publica pontualmente colunas de opinião nos principais meios de comunicação globais e é contributing editor do ‘Financial Times’.
Em 2022, a ‘New York Magazine’ publicava um perfil em que tentava desvendar o “culto” emergente em torno de Adam Tooze. Como descrito por um entrevistado da jornalista Molly Fischer, no turbilhão marcado pela derradeira derrota de Bernie Sanders nas primárias do Partido Democrata e no caos da pandemia, Tooze apareceu-lhe como “o explicador de último recurso”. Molly Fischer passava a descrever o que chamou de Tooze Boys ou Tooze Bros, os adeptos de Tooze, geralmente homens na casa dos 20 e dos 30 anos, tendencialmente de esquerda e com o hábito de passar o tempo a expressar opiniões nos meios digitais. Como Fischer continua a descrever, enquanto historiador económico, Tooze tinha dificuldade em convencer os seus pares da importância do uso de dados quantitativos. No papel de intelectual público, encontrou o maior sucesso. Enquanto uma personalidade como Bernie Sanders podia convencer as pessoas de que era possível mudar o mundo, Tooze “era capaz de mostrar as provas”.
Destacando a facilidade com que ele habita meios diferentes, como descrito por um Tooze Bro, o historiador económico é “a única pessoa que pode fazer aparições credíveis e respeitáveis em eventos da Verso [editora de esquerda] e em Davos [fórum anual da elite financeira]”. Sintetizando a sua forma de atuar, Tooze afirma, na entrevista, que “se querem fazer uma análise crítica do capitalismo contemporâneo, colem-se aos problemas, fiquem dentro da máquina. Sigam as pessoas que estão a operar a máquina e vão ficar surpreendidos com o que elas vos dizem”.
Depois de continuar a descrever o processo de ascensão de Tooze como uma figura pública, de tocar em assuntos pessoais, como a psicanálise, e de falar da popularização do termo ‘policrise’, Fischer chega a um dos maiores fantasmas de Tooze.
TOOZE VS. ANDERSON
Tooze ainda se recorda da “situação horrenda” do outono de 2019, em que recebeu uma recensão publicada na ‘New Left Review’ (NLR), espaço de publicação de vários autores com perspetivas marxistas e onde Tooze escreveu no passado. Aí, o ensaísta Perry Anderson lançava uma crítica ao historiador económico, cruzando tanto as obras publicadas como a carreira intelectual de Tooze.
No seu texto, em que descreve Tooze como “o economista histórico moderno destacado entre os seus pares”, Anderson começava por lançar críticas a vários dos livros publicados até então pelo historiador económico, destacando várias omissões e culminando numa crítica geral ao autor. Para Anderson, Tooze falhava ao ignorar fatores estruturais e ao não examinar conceitos marxistas como “capital fictício”, explorados por autores como Cédric Durand (autor da sua própria crítica a Tooze na NLR).
O grande pecado de Tooze estava em deixar-se contaminar pela perspetiva dos decisores políticos do momento, ao examinar fenómenos como as crises financeiras, perdendo de vista os fenómenos estruturais que guiam o capitalismo. Ao saltar para a cadeira dos decisores políticos que Tooze estuda, este incorre sucessivamente in media res – isto é, entrar a meio da narrativa, perdendo de vista as grandes correntes que movem os acontecimentos. Focado nas escolhas de decisores como Mario Draghi e Ben Bernanke (antigos banqueiros centrais da Zona Euro e da Reserva Federal, respetivamente), Tooze deixava de lado explicações como o poder hegemónico do dólar dos EUA e mecanismos europeus como o Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Anderson fechava com uma crítica ao liberalismo de esquerda de Tooze, dependente de uma bússola geopolítica assente no eixo do Atlântico Norte, e insinuava que enquanto Tooze “corria com a lebre e caçava com os cães”, era questionável se este tinha “simpatia pela lebre” ou “admiração pelos cães”. Tooze, outrora trotskista, que cita Anderson como uma das suas influências e que classificou o marxismo como “a âncora intelectual” do seu estilo, reportava que a recensão o havia deixado “vagamente maldisposto” e “incompreendido”. Durante mais de meia década, em especial em espaços mais à esquerda, o fantasma de Anderson passou a pairar sobre Tooze, com a recensão a ser invocada constantemente nas suas intervenções públicas.
Enquanto este ocasionalmente respondia a questões sobre a crítica surgida na NLR, em dezembro de 2024 Tooze publicou finalmente, na sua newsletter, aquela que, segundo o próprio, foi a “discussão mais profunda que tive acerca do desenvolvimento da minha escrita e pensamento desde a recensão de Perry Anderson”. A publicação referia-se a uma entrevista feita meses antes por Ding Xiongfei para a ’Shanghai Review of Books’.
No que é talvez a abertura de hostilidades, Tooze, ao discutir a sua abordagem, traz o conceito de policrise e afirma que, num mundo marcado pelas múltiplas crises resultantes de “doenças de mutações zoonóticas, acumulação de CO2 e escalamento geopolítico de corrida às armas”, se alguém tem uma lógica simples e sintética com a qual percebeu o momento atual, então “não está a experienciar a policrise”.
Policrise é um termo avançado pelos académicos franceses Anne Brigitte Kern e de Edgar Morin. Em 2018, foi empregado pelo então Presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker e, em 2022, Adam Tooze resgatou-o numa coluna no ‘Financial Times’, cujo título era ‘Bem-vindos ao mundo da Policrise’. Começando com “pandemia, seca, inundações, mega tempestades e incêndios florestais, ameaças de uma terceira guerra mundial - como nos habituámos à lista de choques”. Tooze escrevia pouco depois do “momento Liz Truss” – quando o Reino Unido sofreu um breve mas intenso choque financeiro, a prova de que a estabilização macroeconómica do pós-pandemia não estava garantida. Para o intelectual britânico, não podia ser apontada uma única causa às crises dos últimos 15 anos. As transformações históricas, a acontecer debaixo da sombra de arsenais atómicos e num mundo com cada vez mais gases de efeito de estufa em excesso, tornam os problemas de hoje vastamente mais difíceis do que os de há meio século. Para quem tem achado os últimos anos desorientadores, o historiador económico profetiza que precisa de se preparar para o futuro.
A entrevista rapidamente chega à publicação de Anderson, e ao contrário de outras ocasiões, Tooze não poupou na resposta. Começando por criticar a posição de Anderson, comum em círculos mais à esquerda, Tooze rejeita que as suas conclusões compatíveis com o status quo impliquem uma miopia face a fatores estruturais. Quanto à acusação de se focar nos momentos particulares das crises, o tal in media res, Tooze responde que não tem problemas com a utilização de estruturas explicativas. Segundo este, é preferível não seguir a premissa de se saber à partida qual é a estrutura, deixando a questão em aberto, enquanto novas formas de conhecimento subvertem as conceções anteriores.
Jogando ao ataque, Tooze acusa Anderson de se posicionar acima das limitações de in media res. Aponta a posição do seu crítico como a expressão de um “marxismo académico degenerado que se imagina empoleirado numa torre de marfim, a observar o mundo, enquanto compreende as estruturas profundas da história”, sendo isso também uma forma de in media res. Assim, para o historiador económico, a forma de encarar o mundo é engajar-se com as decisões correntes às quais é endógeno.
Quando se trata de descrever os méritos práticos do seu trabalho como intelectual público, fora da academia, Tooze cita o plano de estímulo económico aprovado pela administração de Joe Biden, em 2021. Este é essencialmente uma autocrítica dos falhanços da política de Barack Obama, que Tooze contribuiu para documentar em Crashed. Quanto à possibilidade de ter conduzido a política de Biden num caminho errado, Tooze diz aceitar o peso da responsabilidade, como uma consequência de estar a moldar o debate público.
Mais recentemente, numa palestra em Nova Iorque, duas semanas depois da segunda vitória de Donald Trump para a Casa Branca, Tooze conduzia mais uma discussão sobre a policrise. O palestrante apresentava um diagrama que sumarizava aquilo que “surge nas capas dos jornais nos tempos correntes”. Como consequência disso, se alguma coisa tem refletido os tempos atuais do pós-COVID são as derrotas generalizadas dos incumbentes nas eleições nacionais. O destino das eleições nos EUA parece ter sido dominado pela inflação que se seguiu ao levantamento dos confinamentos. Para a derrota de Trump em 2020, Tooze aponta a falha no desafio de lidar com o confinamento. No caso dos democratas, a derrota está ligada à falha em gerir os contextos pós-pandemia. Ou seja, as constantes mudanças de executivos dos últimos anos refletem as insatisfações do momento dos eleitores, no contexto de uma crise imprevisível e duradoura.
Em mais um ataque ao pensamento de inspiração marxista contemporâneo, Tooze traz o conceito gramsciano de interregnum para a discussão, com o intuito de o criticar como modelo útil para interpretar o presente. Segundo o conceito do marxista italiano – que escreveu boa parte do seu pensamento enquanto estava preso pelo regime de Benito Mussolini (Cadernos do cárcere, 1929-1935), Gramsci falava de um período intermédio, em que a velha sociedade está por morrer, mas em que a nova ainda está por nascer. À luz de interpretações a que Tooze se dirige, a insanidade de políticos como Donald Trump é explicada por nos situarmos neste período, ao qual uma nova sociedade menos aberrante irá suceder. Para o palestrante, esta é uma conceção muito confortável, limitadora da incerteza.
Para reforçar esta crítica, Tooze apresenta um gráfico com as emissões acumuladas de CO2 na atmosfera ao longo dos últimos séculos. O historiador económico aponta para os períodos nos quais Marx e Gramsci estiveram vivos, em que o CO2 em excesso era quase inexistente, para enfatizar que estamos num mundo completamente diferente. Recorrendo ao economista Mark Blyth, afirma que “a crise climática é um desfecho gigantesco gerador de resultados não lineares com convexidades perversas”, ou seja, não devemos esperar que haja uma normalidade à qual se possa regressar. No momento da palestra, um surto de gripe aviária proliferava, com um caso notável de uma adolescente internada no Canadá. Podemos não estar à beira de um novo confinamento, mas, como tem sido apontado entre a comunidade científica e relembrado por Tooze, “outra pandemia vai acontecer, é só uma questão de tempo”.
Ainda no tema de teorias de inspiração marxista, e ao pouco crédito que lhes atribui para navegar no presente, o assunto volta inevitavelmente a Perry Anderson. Sugere que a análise do seu crítico é uma análise confortável, preferindo Tooze antes uma teoria social interessada em novidades. Não se opondo a uma boa teoria simples, aponta que não temos sido bem servidos pelos instrumentos atuais, e as consequências vão além de derrotas práticas. Recordando o início da invasão russa na Ucrânia e o regresso a um mundo em que o perigo nuclear paira sobre o nosso destino comum, Tooze aponta para que o objetivo da sua intervenção pretende “levar-nos na direção de pensar que essas críticas não nos têm servido bem nos tempos atuais”.
AGORA SOMOS TODOS TOOZEANOS
Ao assinalarmos os dois anos desta República não pretendemos fazer a hagiografia de Adam Tooze. É legítimo afirmar que boa parte das críticas de Perry Anderson às obras são acertadas, que Tooze tem uma coexistência demasiado confortável com o imperialismo ocidental ou que as suas frequentes interações com decisores políticos podiam ser mais complementadas com agentes dissidentes (que chegou a fazer com Andreas Malm).
Mesmo Tooze pode não ser sempre fiel aos princípios que costuma enunciar para si. Em Portugal, as críticas a Tooze focam-se nas suas opiniões excessivamente elogiosas à recente governação económica do país (o que se tornou um hábito entre economistas estrangeiros), ou em erros factuais acerca de Portugal na sua obra. Sendo as críticas ao pensamento e posicionamento ideológico de Tooze válidas, das quais frequentemente concordamos, estas acabam por falhar o alvo do seu sucesso. Mais do que das suas opiniões e conclusões, a popularidade do historiador económico advém do seu método de análise.
O que torna Tooze uma figura incontornável é a importância que este adquire com a chegada do contexto pandémico. Quando todas as bússolas deixaram de funcionar, foi a metodologia de Tooze a procurada para responder às perguntas que surgiam. Quando todas as previsões sobre as contradições internas que estariam prestes a dar à luz uma nova sociedade falharam, os fios narrativos que Tooze estabelecia através de capturas de ecrã de gráficos da imprensa foram o melhor guia para entender o que estaria para vir.
A sua análise funcionou no sentido inverso de grande parte do que foi popularizado. Enquanto muitos se dedicaram a fazer previsões do que traria o contexto pandémico, Tooze preferiu focar-se em olhar para as engrenagens que mantinham o mundo em movimento. À medida que outros rapidamente se esqueceram dos prognósticos que fizeram, confortando-se com a esperança de um regresso à normalidade, Tooze documentou e incorporou a pandemia na sua análise. No processo de olhar para as ramificações do sistema económico global, o intelectual público foi atualizando as suas próprias premissas - como o próprio admitiu, a pandemia forçou-o a olhar com outros olhos para a China, algo que tinha ignorado durante anos.
Nunca se esquecendo dos desequilíbrios que a pandemia gerou e dos que estarão para advir de futuros fenómenos, resultantes da colisão da humanidade com as fronteiras da natureza com que convive, Tooze inspira a procura constante de respostas. Como historiador das grandes crises que vivemos nos séculos XX e XXI, Tooze entende que as respostas políticas improvisadas em contexto de emergência são muitas vezes os pilares do sistema económico daí em diante.
O termo da policrise promovido por Tooze, levando a mais perguntas do que respostas, categorizado pelo contraponto de direita de Tooze, Niall Ferguson, como “história simplesmente a acontecer”, permite uma visão mais clara do mundo do que as grandes narrativas - excessivamente determinísticas e ligeiras nos detalhes - que lhe servem de concorrência. Tooze pode não oferecer uma grande teoria para história, mas as perguntas que faz ajudam a procurar as respostas que dão hipóteses de encontrar uma. Talvez a maior prova do sucesso do método de Tooze é o facto de ser constantemente convidado a desvendar os acontecimentos presentes por aqueles que se posicionam à sua esquerda (aqui, aqui e aqui).
Fundámos a República dos Pijamas há dois anos, começando com a publicação de um artigo sobre o Programa Mais Habitação, sem nos apercebermos que estávamos perante o canto de cisne do Costismo. Tínhamos como objetivo clarificar as nossas próprias ideias, partilhar leituras e criar um mínimo de contrapeso ideológico, num espaço digital cada vez mais dominado por ideias liberais, libertárias ou mesmo abertamente reacionárias.
Em especial, neste segundo ano da newsletter, e de forma quase acidental, fomos tentando oferecer uma interpretação de como é que os grandes choques globais - como a ascensão da China no mercado de carros elétricos, o embaratecimento de painéis solares ou a crise do modelo de desenvolvimento alemão - significam para Portugal. No processo, que exige o constante questionamento das nossas próprias premissas, passamos a apresentar algumas linhas programáticas para fomentar um debate sobre como alcançar um país economicamente mais soberano e socialmente mais justo.

Ambicionamos sair do mero plano da denúncia e do colete de forças determinista em que não é possível fazer nada, dada a posição semiperiférica de Portugal. Até mesmo que isso seja verdade, é aqui que tiramos uma das poucas lições do neoliberal Milton Friedman: "Só uma crise - real ou percepcionada - produz uma verdadeira mudança. Quando essa crise ocorre, as ações que são tomadas dependem das ideias que estão por perto. É essa, creio, a nossa função básica: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável."
Na entrevista à ‘Xangai Review of Books’, Tooze dizia pensar que “parte da minha presença pública inspira as pessoas a fazerem a sua própria investigação”, fazendo um curioso paralelo com o fenómeno conspirativo QAnon. Marcando a segunda volta ao sol desta newsletter, o método de Tooze pode não ter determinado a nossa fundação, mas certamente inspirou o que se vai fazendo por aqui.
Neste espírito, voltamos daqui a duas semanas com uma entrevista para entender como, em 1975, um grupo de trabalhadores conseguiu constitucionalizar como “irreversível” uma política que não estava inscrita no programa do MFA.
Queremos agradecer ao Carlos Lobato pelo trabalho de edição deste texto. Qualquer erro é exclusivamente da nossa responsabilidade.
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Tenho a impressão que vos sigo desde o primeiro post devido a ter apanhado no Twitter. O vosso trabalho é imensamente meritório especialmente por trazer algum ar fresco de "lá fora" para um ecossistema cheio bafio intelectual relativamente à análise política e económica costumeira. Como grande apreciador de pijamas clássicos só vos posso desejar que venham mais anos!
Excelente trabalho, rico em documentação e levando-me a grande interesse na polémica Tooze-Anderson, que eu desconhecia. Lá vou ter de compatibilizar as minhas tarefas de escrita com o tempo necessário para estudar tudo isso. Antecipadamente obrigado.