Tradução | A Elite Intelectual Compradora - Branko Milanović
“A atividade intelectual que não tem qualquer relação com as questões reais de um determinado lugar tempo não faz sentido”
Nota de edição
Numa discussão de agosto cruzada entre o blog e a conta de Twitter dos Ladrões de Bicicletas, João Rodrigues viu-se a defender entre um público à esquerda o uso do termo “semi-colonial” para se referir ao estatuto de Portugal.
Usando ou não usando o termo de semi-colonial, é inegável que para analisar situação portuguesa das últimas décadas é vital ter em conta que, como referido por Rodrigues, “sem instrumentos de política comercial, monetária, industrial ou de controlo de capitais” a soberania, e logo a democracia, encontra-se em cheque.
Enquanto nesta Newsletter já antes falámos da nossa burguesia cada vez mais subordinada face aos capitais internacionais, sem grande autonomia estratégica, hoje trazemos uma tradução de Branko Milanović, em que o papel dos compradores, na sua forma intelectual é discutido.
Milanović adapta o termo comprador – palavra com origem portuguesa que floresceu na Ásia para descrever a burguesia local que se limitava a comprar produtos ocidentais, deixando para trás o desenvolvimento e os interesses locais – à intelligentsia, a elite cultural. Milanović traz uma análise em países bem mais pobres do que Portugal, que sofreram os malefícios do colonialismo, em que hoje as dinâmicas da sua elite empobrecida ditem que a produção intelectual seja definida por financiadores dos países mais ricos.
Embora o caso português não apresente de longe a situação dramática dos países referenciados por Milanović, é numa dinâmica parecida que reside o quase tabu, mesmo entre a esquerda, de debruçar-se sobre a situação semi-periférica de Portugal. Mesmo que a dependência externa em Portugal não atinja os níveis de países como Quénia, é com os olhos postos na investigação dominada pelo meio anglo-saxónico que a produção intelectual em Portugual se dá. Se a isto somarmos as restantes interações que a intelligentsia portuguesa têm com instituições de países mais ricos ao longo da vida, em especial do norte da Europa, estão criadas as condições para debater em Portugal sem debater Portugal. Por exemplo, a evolução da faculdade de Economia da Universidade Nova na busca dos lugares cimeiros nos rankings internacionais (que se alastrou para outras organizações) mostra como estas dinâmicas podem contaminar o funcionamento de instituições públicas.
Queremos agradecer ao Branko Milanović por nos ceder (mais uma vez) o direito de republicação. Eventuais erros na tradução são exclusivamente da nossa responsabilidade.
Esperamos que gostes.
A Elite Intelectual Compradora, Branko Milanović
Em “Orientalismo”, Edward Said descrevia um orientalista como um intérprete dos costumes e conhecimentos locais para o intelectual estrangeiro. Um termo comum na literatura neomarxista dos anos 1960-80, para designar a ausência de articulação entre as áreas domésticas que interagiam com o resto do mundo e o interior que dele estava isolado, era o de burguesia compradora. Nos últimos trinta anos, o mundo pode ter criado também uma “intelligentsia compradora”.
O que tenho aqui em mente é o seguinte. A nível global, o Ocidente é inquestionavelmente o criador da maior parte do conhecimento. Os seus dois únicos concorrentes relevantes são a China e o Islão. No entanto, continua a dominar, tanto em termos económicos como na sua disponibilidade para difundir o seu conhecimento e para influenciar o que é produzido noutros locais. Umas vezes com a melhor das intenções, outras vezes por ignorância e por vezes com segundas intenções, foram criadas várias organizações académicas, não governamentais, quase governamentais e totalmente governamentais com esse objetivo em mente.
Estas instituições tendem a financiar os projectos que lidam com as questões que são atualmente consideradas importantes ou na moda nos países do Centro do sistema. Dificilmente poderiam justificar outra coisa perante os seus doadores, que não estão interessados em saber se esses temas são relevantes nos “países longínquos dos quais nada sabemos”. Os projectos ou, mais exatamente, o financiamento que lhes está associado, criam uma pequena elite local, a intelligentsia compradora. Esta elite torna-se muito habilidosa na roupagem e na apresentação dos resultados de investigações, de modo a que estes sejam apelativos para os financiadores ocidentais. O problema, no entanto, é que a intelligentsia compradora - estando concentrada em agradar aos doadores - é frequentemente afastada da vida intelectual interna. Tal como a burguesia compradora, tem muito poucas ligações com o interior: a sua existência depende inteiramente de doadores estrangeiros. Quando os doadores estrangeiros se deslocam para outra região, a intelligentsia compradora desaparece. (Se os doadores se mudarem para outro tema, a intelligentsia compradora mudar-se-á com eles para o novo tema também).
A atividade intelectual que não tem qualquer relação com as questões reais de um determinado lugar e tempo, e que responde aos desejos epistémicos de um lugar completamente diferente, não faz sentido. Não deixa praticamente nenhum rasto a nível interno. Permite, de facto, que o país permaneça dentro de uma órbita vagamente definida de criação de conhecimento internacional, mas as forças motivadoras desta geração de conhecimento são inteiramente externas. Produzem pouco a nível interno, para além de permitirem à intelligentsia comparadora uma vida agradável de conforto intelectual e material.
Estes fenómenos verificam-se em todas as sociedades periféricas onde os recursos financeiros para financiar a investigação são escassos e a classe intelectual precisa de sobreviver. Também o vi, em questões bastante técnicas. Até há cerca de dez anos, as agências de estatística de muitos países africanos eram muito fracas, tanto em termos de pessoal como de dinheiro. Não podiam organizar os inquéritos aos agregados familiares que se tornaram rotineiros no resto do mundo. Por isso, existia muito pouca informação deste tipo. O que é que os doadores estrangeiros fizeram? Cada um deles, respondendo aos seus interesses temporários, ou aos caprichos dos seus chefes, financiou um estudo desta ou daquela área, ou desta ou daquela população. Assim, obtinham-se (por exemplo, na Tanzânia) inquéritos muito díspares, nenhum dos quais podia ser combinado em qualquer série temporal, e nenhum permitia saber se as coisas estavam a mudar, a melhorar ou não. Os suecos financiariam inquéritos a agregados familiares rurais pobres na zona X, a US AID financiaria o inquérito a mães solteiras na zona Y, os britânicos, para não serem ultrapassados, descobririam um interesse súbito no desemprego juvenil na zona Z. Os serviços nacionais de estatística compatibilizaram-se - com indiferença - a fazê-lo devido à necessidade de dinheiro. Os inquéritos serão efectuados, os relatórios redigidos e enviados às autoridades superiores em Estocolmo, Washington e Londres. Para aí serem prontamente esquecidos. E seriam completamente ignorados a nível local.
O mesmo está a acontecer com os chamados Randomised Controlled Trials (RCT) [Ensaios Controlados Aleatórios, ECA]) que foram coroados com um prémio Nobel. Para proceder a muitas práticas eticamente questionáveis (sobre as quais muito se tem escrito, ver Sanjay Reddy, Angus Deaton, Martin Ravallion), cria-se artificialmente o apoio interno de alguns indivíduos, em muitos casos provavelmente em troca de promessas de honorários ou de viagens ao estrangeiro. Quando o projeto ECA, que sujeitava as pessoas em diferentes partes de Nairobi a cortes de água arbitrários, deu origem a um protesto mundial, o investigador principal Paul Gertler escreveu uma defesa patética do projeto, argumentando que este tinha sido “comprado” localmente através de uma cooperação mal definida com o governo local: “através de discussões conjuntas entre o Banco Mundial e as equipas da Nairobi Water, foi acordado testar adicionalmente um nudge mais suave e menos potencialmente prejudicial [desligar os serviços de água!] como alternativa”. Mesmo que se deixem de lado os problemas éticos do ECA (sobre os quais não debruço aqui), este é mais um exemplo de um projeto financiado pelo estrangeiro sem ligações a qualquer criação de conhecimento nacional útil. O seu único resultado - para além de deixar as pessoas pobres sem água - e talvez o único objetivo para começar, é o engrandecimento pessoal dos investigadores dos países do Centro. (Podemos imaginar se os investigadores quenianos poderiam participar num projeto exploratório semelhante, retendo os salários dos investigadores do ECA durante vários meses para estudar a sua reação).
Tal como o desenvolvimento interno impulsionado pelos compradores, que nunca resultou em crescimento económico, o desenvolvimento intelectual impulsionado pelos novos compradores é estéril. Continuará a ser produzido porque apoia as necessidades ideológicas do Centro e as necessidades financeiras da Periferia, mas nunca terá grande influência em nenhuma delas: o Centro pensa que não tem nada a aprender com a Periferia, e ninguém na Periferia está muito interessado nos tópicos dados à intelligentsia compradora como trabalho de casa para estudar.
Ligação para o texto original do Branko Milanović
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