Um ano da República dos Pijamas, depois da longa década de 2010
Na nossa publicação número 60, trazemos um levantamento da década que nos trouxe até aqui, sob os olhos de dois economistas marcantes: Thomas Piketty e Mariana Mazzucato.
A República dos Pijamas celebra hoje o seu primeiro aniversário. Antes de mais, obrigado por leres e (talvez) subscreveres.
Em vez de fazermos um novo balanço (podes ler um aqui) ou revisitar os nossos princípios fundadores (aqui), aproveitamos a ocasião para falar da longa década que nos trouxe até aqui. Para este exercício, optamos por usar duas obras, populares no campo contrahegemónico, que se tornaram bastante influentes no debate económico global: O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty, e o Estado Empreendedor, de Mariana Mazzucato.
Ambas foram publicadas nas línguas originais em 2013 e 2011, respetivamente, e viram a sua popularidade crescer no refluxo da grande crise financeira do início deste século. O economista francês Thomas Piketty demonstrou que as últimas décadas no mundo ocidental foram marcadas pelo crescimento das desigualdades socioeconómicas. Assumindo uma análise histórica, o autor mostra que a desigualdade não só tem crescido, mas que não é uma inevitabilidade. Remontando a épocas como o pós-II Guerra Mundial, deixou claro que combater as disparidades de rendimentos não compromete as sociedades atuais ou, por outras palavras, que o dilema desigualdade-crescimento económico não se baseia na realidade.
Já a economista italo-americana Mariana Mazzucato provou que as experiências do passado eram fundamentais para repensar o futuro. A economista tornou evidente que não vivemos no mundo imaginado pelo credo neoliberal, onde o Estado representa a ineficácia burocrática e os mercados espelham a eficiência e a criatividade. Várias das grandes inovações tecnológicas das últimas décadas foram conseguidas com o apoio, planeamento estratégico ou mesmo a execução do aparelho público. Se hoje é difícil imaginar a criação de raiz de instituições relativamente simples, como uma rede de bibliotecas públicas, Mazzucato demonstrou que coletivamente, através do Estado, somos capazes de muito mais que isso.
O contexto em que estas obras surgem é de extrema relevância para percebermos o seu impacto. Com a crise financeira de 2008, houve uma esperança temporária de que o modelo económico neoliberal tivesse chegado aos seus limites, que seria substituído. Como podemos ver hoje, os anúncios da sua morte foram precipitados. Os Estados (principalmente via bancos centrais) entraram em ação para manter a ordem vigente. O neoliberalismo não morreu, apenas provou a sua plasticidade. Ainda assim, este momento abriu fissuras no debate económico mainstream. Como Mark Fisher, teórico cultural britânico, brilhantemente descreveu no seu livro Realismo Capitalista, é para essas fissuras que devemos olhar para entender realmente como o sistema opera. As obras de Piketty e de Mazzucato ajudam-nos a compreendê-las.
Entre a queda do Muro de Berlim e a Grande Crise Financeira, temas como distribuição de rendimentos ou o papel que o Estado desempenhava na economia tinham pouco espaço nos discursos do mundo ocidental, apesar de os eleitores expressarem crescente desagrado com o sistema. A ideologia triunfante apenas deixava espaço para os méritos do mercado no plano global, e da educação no plano individual.
Embora os currículos de Economia ainda propaguem o mesmo catecismo neoliberal de antes da publicação destas duas obras, estas permitiram a muitos questionar o seu ensino, ajustar a sua visão e procurar outros pensadores contrahegemónicos. Isto aplica-se aos autores da República dos Pijamas. Fazemos parte daquilo que se apelidou de geração Millennial. Crescemos no pico da terceira via, em que os estudos eram apresentados como um passaporte garantido para a prosperidade, mas, quando chegados à faculdade, a crise financeira e a intervenção da Troika apontavam para um futuro menos risonho.
Enquanto estas duas obras ganhavam popularidade, quem dedica uma boa parte do seu tempo livre a desenvolver esta newsletter deparava-se com um ensino de economia desajustado, tanto do ponto de vista científico como do ponto de vista social. Seguiam-se os primeiros passos num mercado de trabalho dominado pelas posições ideológicas dos chefes e patrões.
Não só o ensino de Economia não cumpria o que o que prometia - uma ciência social aberta ao debate e capaz de moldar o mundo para melhor - como nem sequer fornecia uma boa formação a quem apenas pretendia entender a Economia com o fim de fazer dinheiro. A sua função era fornecer uma ideologia que justificasse as injustiças presentes no sistema sobrepunha-se a qualquer outro objetivo. Entre o economês e as fórmulas matemáticas, os professores normalizavam a profunda crise social vivida naqueles duros anos da Troika, recorrendo muito ao moralismo, e pouco à ciência. Com as universidades de economia serem cada vez mais apêndices das Business Schools, hoje é evidente, mesmo em círculos à direita, que ciência económica ocupa o lugar da teologia numa sociedade secular.
Apesar de não serem autores de eleição da República dos Pijamas, consideramos que os contributos de Piketty e de Mazzucatto devem ser destacados. Para quem escreve estas linhas, Piketty e Mazzucato foram leituras que conduziram ao desvio para entrar numa crítica ao sistema vigente. Foram estes autores que se deram ímpeto ao caminho que agora fazemos sob a forma dos nossos próprios textos e ensaios.
Além dos percursos pessoais dos Pijamas, estas obras foram lidas à luz dos acontecimentos sociais que nos rodeavam. As suas ideias foram partilhadas e amplificadas por fortes movimentos sociais contra a austeridade e as galopantes desigualdades: o Occupy Wall Street nos Estados Unidos, os Indignados em Espanha, as ocupações da Praça Syntagma na Grécia e os protestos da Geração à Rasca e Que se Lixe a Troika em Portugal. Foram mesmo usados como bagagem intelectual por movimentos políticos que ambicionavam representar institucionalmente esta vaga de contestação e desejo de mudança. Por exemplo, ambos os economistas chegaram a ser conselheiros da equipa económica das campanhas do trabalhista britânico Jeremy Corbyn no Reino Unido. Para quem via estes desenvolvimentos com entusiasmo, Piketty e Mazucato eram boa companhia.
O legado destes movimentos, com um postmortem num livro recente por Arthur Borriello e Anton Jäger, respetivamente, um historiador e um cientista político, ambos da geração millenial. O diagnóstico que fazem da política da última década é de um desfecho que deixou um sabor agridoce em quem vislumbra a política com uma visão progressista. O único movimento que chegou ao poder foi o Syriza, na Grécia, cujo desfecho da governação foi uma retirada desastrosa, selando a década com um sentimento de desilusão. No entanto, este tipo de análise deve ser acompanhado de um factor essencial: embora os dois autores não tenham sido os primeiros a reconhecer os factos, e talvez nem os melhores a fazê-lo, representam marcos incontornáveis.
É-nos fácil reconhecer a sua importância nos dias de hoje, mas estas duas obras foram fruto de anos de trabalho e dedicação sem promessas de sucesso. O impacto visível foram as ideias que os autores trouxeram, sendo que o trabalho de articulá-las e promovê-las nunca é uma tarefa trivial. E, como ninguém escolhe quando escreve a sua própria história, o sucesso depende sempre do contexto histórico.
Como relembra o economista João Rodrigues, do blogue Ladrões de Bicicletas e autor do livro “O Neoliberalismo Não é um Slogan”, há lições a aprender com os fundadores do neoliberalismo. A oposição, quando está nas trincheiras, não deve cingir-se à mera oposição do modelo dominante. Tem a obrigação de debater ideias e projetos pela positiva, talvez mesmo roçando o utopismo. Sejamos realistas, peçamos o impossível, gritou-se no Maio de ‘68.
É essa a mensagem que retemos na República dos Pijamas: trabalhar para a construção e divulgação de um discurso que contribua para processos políticos contrahegemónicos, em clara oposição ao financiado por milionários e dominante no eixo Washington-Bruxelas-Frankfurt. Na pior das hipóteses, a única coisa que os autores têm a perder são horas de trabalho que podiam ter sido gastas a rever episódios de Naruto. E tu alguns minutos de leitura.
AS OBRAS REFERIDAS AO LONGO DESTE TEXTO
O Capital no Século XXI - Thomas Piketty - 2013
O Estado Empreendedor - Mariana Mazzucato - 2013
Realismo Capitalista - Mark Fisher - 2009
The Populist Moment (não traduzido) - Arthur Borriello e Anton Jäger - 2023
O Neoliberalismo não é um Slogan - João Rodrigues - 2022
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
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