Em vez de baixar o IRC, o governo podia prestar mais atenção aos sucessos industriais que celebra
Carlos Tavares está longe de ser um agente progressista, mas tem todo o interesse em evitar o suicídio industrial europeu
Numa conferência a 9 de outubro na Nova SBE organizada pelo Jornal Económico, o keynote speaker, António Horta-Osório oferecia um panorama sobre a economia portuguesa. Depois dos anos conturbados, Portugal distinguia-se pela capacidade de superar as crises financeiras e pandémicas para, pela primeira vez em democracia, contar com um excedente orçamental. A “possibilidade finalmente de controlar o nosso próprio destino” e um excedente que implica “utilizar para benefício das condições de vida e dos salários dos portugueses” lançam a intervenção de Horta-Osório.
As negociações do Orçamento do Estado (OE) a decorrer na altura da conferência tornavam a conclusão de Horta-Osório mais fácil de adivinhar. Para este, a grande proposta era a de baixar o IRC (imposto sobre empresas) pagam. Com algumas alusões ao sucesso económico de países da Europa do antigo bloco soviético (para as quais, ao contrário de no resto da apresentação, não existem gráficos explicativos), o antigo banqueiro - que agora vive uma espécie de reforma dourada em cargos como administrador não executivo do grupo Imprensa, board no grupo Mello e parte do conselho de administração da Fundação Champalimaud – chegava à conclusão de que a prioridade para dar uso a uma liberdade com poucos precedentes em Portugal é baixa de impostos às empresas.
As opiniões de Horta-Osório assentam na legitimidade que uma carreira internacional de gestão no estrangeiro lhe conferiu. Do Santander em Portugal, destacando-se no Lloyds no Reino-Unido, e por fim (no entanto extinto) Credit Suisse, Horta-Osório é uma espécie de Cristiano Ronaldo da banca. O banqueiro veio preencher um vazio outrora ocupado por figuras, entretanto desacreditadas, como Zeinal Bana (o “Messi das telecomunicações” da Portugal Telecom) e Ricardo Salgado. Se Horta-Osório foi capaz de gerir a banca, também deverá ser capaz de compreender o que é melhor para o país. No entanto, devemos olhar para outro gestor português de multinacionais para entender o que realmente conta para o sucesso económico nos tempos atuais.
OLHOS EM MANGUALDE
Carlos Tavares é o português que acabou de abandonar o cargo de CEO do conglomerado automóvel Stellantis. Mesmo que o nome da empresa não desperte a atenção, a Stellantis é uma multinacional que hoje se estende pelos dois lados do Oceano Atlântico, resultado da fusão de marcas como a Fiat, Alfa Romeu, Citroën, Opel, Peugeot, e Chrysler.
Apesar de não encontrarmos muitas opiniões de Tavares sobre os destinos da economia portuguesa, foi sob a sua direção que a empresa passou a fabricar em Mangualde (a cerca de 20 quilómetros de Viseu) os primeiros veículos elétricos da história industrial de Portugal. A fábrica de Mangualde, já existente desde os anos 1960, fundada por um industrial local e posteriormente comprada pela Citroën, conta produzir perto de 90 mil veículos em 2024, entre os quais se encontra uma encomenda feita pelo Serviço Nacional de Saúde de 719 veículos elétricos e 600 postos de carregamento. Além de produzir veículos elétricos, a fábrica também vai avançando para a construção do seu próprio parque de energia solar, que em breve permitirá cobrir 31% das necessidades de energia e conta nos próximos tempos aumentar a produção de veículos em 50%.
Para o ministro da Economia, Pedro Reis, a fábrica da Stellantis em Mangualde “deve servir de exemplo para todo o país”. Já o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, pede aos decisores políticos para que “ponham os olhos” nesta. O próprio Tavares, altamente crítico dos custos de produção em Itália, confessava que “é a melhor fábrica europeia da Stellantis em termos de qualidade e custo”.
Embora não estejamos a falar de um projeto da escala da Autoeuropa em Palmela (que produziu 220.100 veículos em 2023), o panorama atual obriga a seguir os conselhos de Rebelo de Sousa e olhar para o que se passa em Mangualde. No contexto de necessidade de descarbonização, feroz competição asiática, tensões geopolíticas que forçam as grandes multinacionais a diversificar a sua localização (nearshoring), e com a possibilidade da era das energias renováveis mais baratas tornarem o preço do quilowatt especialmente competitivo em Portugal, Mangualde talvez revele a possibilidade de controlar o nosso próprio destino, como Horta-Osório mencionava. Se Mangualde está realmente na vanguarda da indústria nacional, tal como sugerido pelo executivo e presidência, convém ouvir quais são os seus reais constrangimentos.
Em julho, enquanto a discussão sobre o IRC ganhava velocidade, Tavares pronunciava-se sobre as necessidades para as operações da sua empresa em Portugal. O CEO da Stellantis levantou três medidas urgentes. Em primeiro, a ligação ferroviária de Mangualde às cidades portuárias de Vigo ou Leixões. Em segundo, energia a preços baixos e com pouca volatilidade. Em terceiro, medidas que tornem a compra de veículos elétricos mais atrativa. Apesar de Tavares falar em impostos quando se mostra contra um modelo intensivo em subsídios para a compra de carros elétricos (dado o aumento de impostos em que estes podem resultar), descidas no IRC não fazem parte dos seus pilares para atrair investimentos ou tornar a fábrica de Mangualde mais competitiva na economia global. Tavares, tal como Mario Draghi no seu recente relatório, tenta recolocar o investimento no debate da competitividade europeia. Ao ser frontalmente a favor da proibição de vendas de automóveis movidos a fósseis em 2035, ao contrário de vários segmentos do capital automobilístico europeu, Tavares entende que só um choque de inovação pode salvar a indústria europeia.
Em todas as medidas, está implícito um avanço do Estado como agente planificador. Para assegurar que os veículos produzidos cheguem aos portos para serem exportados, as Infraestruturas de Portugal serão naturalmente a primeira linha para lançar novas ligações e modernizar as já existentes. A privatização da antiga CP Carga mostra-se danosa neste caso, privando o Estado de um instrumento que poderia utilizar com o fim de facilitar a atração de investimento.
No que toca à energia, Tavares não pede só um preço médio baixo pelo megawatt como também um "controlar a volatilidade desse custo". Com a proliferação de fontes de energia renovável e a recente instabilidade em mercados de fontes fósseis como o gás, os investidores privados passaram a ter de lidar com flutuações muito maiores nos custos energéticos. A estabilidade de preços, ao reduzir a incerteza, é fundamental para as empresas planearem as suas decisões de investimento de longo-prazo. Os meios para concretizar os objetivos passam de novo por uma maior presença do Estado. Entre estes podemos destacar, logo à partida, a maior capacidade de armazenamento de energia, quer através de barragens-bateria (gigabateria) como o recente complexo do rio Tâmega, quer infraestruturas de baterias no seu sentido mais tradicional, à semelhança das utilizadas nos veículos elétricos, cujos custos têm vindo a decrescer precipitadamente e implementação estará sempre dependente do Estado. Em segundo, a entrada do Estado como agente de estabilização, isto é, utilizando uma lógica semelhante à dos Bancos Centrais nos mercados financeiros, participando no mercado quando este regista grandes descidas ou subidas – por outras palavras, um mecanismo de controlo de preços. Em terceiro, uma redução do papel do regime marginalista na definição do preço de mercado. Com o preço no mercado corrente (spot) definido pela energia mais cara, costuma caber às energias mais dispendiosas, em Portugal geralmente o gás, definir o preço ao qual a energia é transacionada – um sistema que por vezes reflete-se em subidas brucas do preço da energia.
Quanto ao apoio para tornar a compra de carros elétricos mais atrativa, Tavares enfatiza uma rede densa de postos de carregamento e não subsídios diretos à compra de veículos. Com as recentes descidas nos custos dos carros elétricos, a falta de postos de carregamento talvez seja o maior constrangimento à adoção generalizada destes veículos por parte do cidadão comum – zonas residências urbanas, especialmente quando sem garagem, são um enorme obstáculo ao uso de um elétrico. De novo, Tavares pede intervenção pública para elaborar um sistema de carregamento público. Seguindo os moldes atuais da transmissão de energia, mesmo quando gerido por operadores privados, a infraestrutura e a sua expansão é esmagadoramente pública. A recente compra de ambulâncias elétricas produzidas em Mangualde por parte do SNS, enquanto fornece os Serviços Públicos de meios, é também uma forma de ir ao encontro desta reivindicação. Este caso mostra a importância de utilizar a modernização dos serviços públicos como âncora de estabilidade da procura a um setor emergente.
Enquanto o que foi apontado por Tavares não tenha quebrado o debate nacional estéril sobre as descidas do IRC como forma de dinamizar o investimento, não foi o único nome ignorado. Numa entrevista que decorreu durante as negociações para o OE, Brian Gu, co-presidente da Xpeng DR, empresa de carros elétricos chinesa, o assunto chegou à possibilidade de instalação de uma fábrica da empresa em Portugal (uma hipótese implicitamente considerada por Tavares) ou a instalação de um centro de dados. Logo à cabeça, Gu refere-se à qualidade das infraestruturas, às cadeias de abastecimento e à qualidade da mão de obra. A conversa chega à investigação e desenvolvimento e às matérias primas, mas, fora as taxas aduaneiras europeias, os impostos nunca surgem nos temas de Gu.
NUNCA APRENDER, NUNCA ESQUECER
Na sequência das eleições de 2015, quando se começou a suspeitar que o PS dirigido por António Costa iria procurar um acordo com os partidos à sua esquerda, ao invés de viabilizar um novo governo da coligação PSD-CDS de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, Horta-Osório afirmava que “o país votou claramente pela continuação das políticas". Tal como agora este antevê abrir um novo ciclo alavancado no choque fiscal, aproveitando os esforços dos últimos anos, em 2015 já falava de aproveitar os anos de sacrifícios e que "seria gravíssimo desbaratar aquilo que foi arduamente conquistado pelos portugueses". A solução que acabou por vir dar forma ao governo, com o apoio do PCP, Bloco de Esquerda e Os Verdes, era descrita como “muito preocupante” pelo banqueiro.
A descida do IRC não é uma solução para o desenvolvimento do país mas sim a ambição de uma elite sem sinais de dinamismo e cujo modelo de acumulação limita-se a atividades de pouco valor acrescentado. Antes da crise financeira era focado em setores não transacionáveis com as telecomunicações, retalho e a construção, hoje no complexo imobiliário-turístico. Elite essa que se viu privada do pleno das suas ambições com a solução governativa encontrada em 2015 e que hoje, com uma maioria de direita no Parlamento, aspira a reclamar a projeção de poder que conseguiu ter durante os anos de intervenção da Troika.
A discussão do Orçamento de Estado adquiriu contornos em que os desafios do país, desde os Serviços Públicos, o modelo de desenvolvimento, a habitação, a instabilidade geopolítica e climática, entre tantos outros, ficaram de fora.
A benevolência da descida de IRC ganhou o estatuto de dogma, com as discussões sobre esta fora do debate público. A contestação à medida ficou sempre à margem do debate. Com um olhar sério sobre a constituição do tecido económico português, como enfatizado em intervenções de Vicente Ferreira e de Ricardo Paes Mamede, o Choque Fiscal, a dinamizar algum investimento, provavelmente seria nos setores de pouco interesse que têm pautado a economia portuguesa nos últimos anos. Num estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos que tem servido de bíblia a quem defende a descida do IRC , a modelização matemática ficou acima da compreensão da Economia. Argumentos que defendem a baixa dos impostos que as empresas pagam prevaleceram sobre a investigação que mostra ceticismo sobre a capacidade de esta conduzir a aumentos do investimento (por exemplo, aqui e aqui). Na semana passada, o Banco de Portugal produziu a sua própria investigação que dá pouco crédito a uma descida do IRC como motor para o crescimento económico. De resto, bastaram argumentos anedóticos como os do Presidente da Iniciativa Liberal, socorrendo-se de recipientes de cápsulas de café.
Acima de todos os argumentos, o caso da fábrica de Mangualde demonstra claramente que para conseguir a tão advogada entrada da economia portuguesa numa nova fase virtuosa, o caminho passa por políticas públicas capazes de planear, moldar os mercados e aproveitar as vantagens competitivas emergentes. Com mais ou menos agentes privados, é inegável que será uma presença maior do Estado a ditar os sucessos. Isto não torna Carlos Tavares num agente progressista ou soberanista. A possível entrada deste para a frente da TAP privatizada mostra que o tom que mostrou em Mangualde pode ser bem diferente num futuro próximo. O salário assombroso de Tavares à frente da Stellantis, que motivou o descontentamento entre vários sindicatos, também pesa sobre a sua reputação. Não obstante, é importante contrastar. De um lado, a visão de um agente da burguesia europeia preocupado em competir com a China num mercado emergente. Do outro, o rentismo de uma burguesia semi-periférica, à qual António Horta-Osório dá o corpo na sua reforma dourada.
Horta-Osório é a face da burguesia portuguesa dominante, descomprometida ou mesmo desinteressada face ao desenvolvimento do país e sem respostas para um mundo que vive múltiplas crises. Depois de anos em que frações dos novos excedentes eram encaminhados para cedências à esquerda, chegou a hora das descidas de impostos completarem o que ficou por fazer em 2015. Apesar das celebrações dos sucessos como os de Mangualde, as lições ficam sempre por tirar.
Tal como a dinastia Bourbon regressada ao poder em França depois da derrota de Napoleão Bonaparte, a burguesia portuguesa não aprende nada e não se esquece de nada.
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