É fora do orçamento que encontramos o verdadeiro projeto ideológico do governo
A coligação PSD-CDS tenta retomar o seu projeto político de 2015. Desta vez, a “bancarrota socialista” não serve para justificar o ímpeto privatista.
No dia 2 de abril de 2024, Luís Montenegro tomava posse como Primeiro Ministro e Miguel Pinto Luz voltava à cena do crime. Pinto Luz era nomeado Ministro das Infraestruturas e Habitação, funções que tinha ocupado (parcialmente) durante 27 dias, no governo demissionário de Pedro Passos Coelho. Apesar do curto período no governo, Pinto Luz conseguiu deixar uma grande marca política, ao privatizar a TAP na vigésima quinta hora, num processo polémico e com suspeitas de crime.
Desde então, a pasta das Infraestruturas ganhou outro peso político, resultado da combinação de dossiers sensíveis (TAP, aeroporto e ferrovia) e as personalidades mediáticas dos seus detentores (Pedro Nuno Santos e João Galamba). O regresso de Pinto Luz, um dos homens fortes do PSD, ao cargo demonstra que o ministério continuará no centro da política. O vice-presidente do PSD volta a ter a tutela da TAP e o dossier da sua (re)privatização. Além disso, o ministro tem a tutela da CP, empresa pública que, depois de o Estado ter pago a dívida histórica que tinha com a empresa, vê na alta velocidade uma oportunidade de relançar-se e reconquistar os portugueses.
No início de outubro, durante as negociações do Orçamento de Estado (OE) entre o governo e o PS, Pinto Luz dizia sentir-se “convicto” da viabilização do PS. Para acalmar os socialistas, que se tinham manifestado contra a privatização da TAP no OE, Pinto Luz garantia que a privatização da empresa teria apenas uma “referência” no documento orçamental. Pinto Luz não mudava a posição do governo face ao futuro da TAP, simplesmente sinalizava que a viabilização do OE não comprometeria o PS. Este episódio sintetiza a estratégia política do governo PSD-CDS neste regresso ao poder.
Dada a fragmentação parlamentar (risco de eleições iminente) e a margem orçamental herdada, o OE de Montenegro combina algumas descidas de impostos com medidas que poderiam ser de um executivo de António Costa - segundo o Público, o ChatGPT tinha considerado que o OE era de esquerda. Essa tática levou a reações contraditórias por parte de altos quadros do PS. Por um lado, Vieira da Silva afirmava não achar que “um qualquer frentismo de esquerda apresentasse melhor Orçamento do que este”; por outro lado, Alexandra Leitão vislumbrava uma vaga de privatizações nas entrelinhas do documento. As tensões dentro do PS, e a posterior viabilização do OE, são uma clara vitória do governo, mas acabam por nos dizer pouco sobre o projeto ideológico de Montenegro.
Contudo, há vida para além do OE. Seria ingenuidade achar que os antigos quadros do executivo 2011-2015, depois de uma campanha eleitoral centrada no “choque fiscal”, tivessem sido convertidos ao costismo. É exatamente no contraste entre o OE e a política fora deste que encontramos a linha do governo. Fora do documento orçamental, com muito menor risco de causar eleições antecipadas, o governo de Montenegro tem tido uma direcção muito mais clara. É aí que se mostra a ambição de retomar o projeto político-ideológico do PSD-CDS interrompido em 2015.
Se o ministério das infraestruturas de Pedro Nuno Santos tinha uma aparência de governo sombra dentro do próprio governo, com olhos posto na liderança do partido, o ministério de Pinto Luz faz o oposto, e sintetiza a alma do projeto político do governo.
DISCÍPULO DO COSTIMO?
Entre a crítica e o elogio, uma parte da direita tem visto Luís Montenegro como o líder de um governo (e OE) de inspiração costista. João Miguel Tavares compara o primeiro ministro a António Costa ao apontar para um certo ilusionismo orçamental e uma “gestão hábil de silêncios”, enquanto a Iniciativa Liberal – na sua linguagem simplista em que todos os outros partidos são socialistas – apelida o governo de toranja: laranja por fora, vermelho por dentro.
A inspiração de Montenegro em Costa parece ser mesmo uma realidade, mas não na forma de réplica. Ao contrário de Costa, o executivo de Montenegro opta por retirar peso político-estratégico ao Orçamento de Estado (OE) no seu projeto de transformação social. As suas verdadeiras políticas ficam à margem do documento, como ficou claro quando Pinto Luz disse que a privatização da TAP teria uma apenas uma referência no OE. Imediatamente depois do OE ser aprovado na generalidade, o processo de privatização da TAP retomou logo a sua marcha.
Nos governos de Costa suportados pelas esquerdas (2015-2022) o OE marcava o ritmo do ano político. Com o Ministério das Finanças a gastar cronicamente menos que aquilo estipulado no OE (as chamadas cativações), os partidos à esquerda do PS passaram gradualmente a incluir várias medidas não orçamentais entre as suas condições para aprovar o documento. Sendo o Ministério das Finanças incapaz de cativar ou subexecutar iniciativas como a subida do salário mínimo ou o alargamento da tarifa social energética, este tipo de medidas não orçamentais (além dos aumentos de pensões) foram ganhando centralidade nas negociações para o documento. Uma das medidas extra-orçamentais pode ter sido mesmo culpada pela queda do segundo governo (minoritário) de Costa em 2022. Um dos grandes entraves entre o PS e o PCP foi o fim da caducidade da contratação coletiva, uma medida sem qualquer efeito orçamental.
Assim, a grande lição que Montengro parece ter tirado do costismo é reduzir peso ao OE. O OE proposto tornou-se uma combinação de medidas que seriam aprovadas na especialidade de qualquer forma pela oposição (aumentos da Função Pública) e algumas medidas fiscais (IRC e IRS jovem) que ocuparam todo o espaço mediático. Ao propor as primeiras, Montenegro reclama o crédito que seria colhido pela oposição. Com as segundas, serve a sua base política. Um misto entre políticas para o seu eleitorado e manobras de distração.
No entanto, isso não torna o executivo de Montenegro pouco ambicioso e sem estratégia de longo-prazo, uma crítica frequentemente atirada a Costa. Até agora, as medidas com maior potencial transformador foram anunciadas fora do OE, resultando numa menor cobertura mediática.
Semanas antes da apresentação do OE, o governo anunciou o passe ferroviário a 20 Euros, o fim da publicidade na RTP – as medidas em que a compensação financeira não está garantida (aqui e aqui) ou contestadas pelos sindicatos (aqui e aqui) – e um pacote de apoio aos órgãos de comunicação social. Ao contrário das medidas mais discutidas do OE (IRC e IRS jovem), que são tecnicamente reversíveis no futuro, estas medidas ambicionam gerar um mudanças estruturais na sociedade e no funcionamento do Estado. Como mostrado pelo caso da dívida histórica da CP e da Carris, acumuladas por falta de cumprimento do contrato de serviço público por parte do Estado central, uma correção desta descapitalização pode ser um processo moroso que envolve negociações com Bruxelas, deixando as populações reféns de um serviço medíocre por um período interminável.
Os casos acima não são apenas um primeiro passo para degradação das empresas, que traz fortes hipóteses de conduzir ao seu encolhimento ou privatização - estas tratam-se de meios para o fim de implementar a visão da Aliança Democrática para o país. Não podemos ignorar que, tal como a TAP, a RTP e CP já estiveram na mira privatista do último governo PSD-CDS e que o OE fala genericamente em iniciar o estudo de “um processo de reconfiguração estrutural do setor empresarial do estado” - um eufemismo para privatizações.
A redução do financiamento e do número de trabalhadores da RTP, e o resgate camuflado aos meios privados representam o uso ativo do Estado para inclinar o plano mediático ainda mais a favor da direita (aqui e aqui). Depois de o PS determinar o seu sentido de voto no OE, Pedro Duarte (ministro dos Assuntos Parlamentares) sentiu-se confortável o suficiente para falar em reabilitar o discurso passista de “eliminar gorduras” na RTP, semanas depois de ter anunciado o plano de bonificação do pagamento de assinaturas em 50% por parte do Estado. Posteriormente, quando o PS, na discussão do orçamento na especialidade, apresentou a reposição da publicidade na RTP, Pedro Duarte afirmou ser algo “um bocadinho inaudito, (...) porque não estamos a mexer em nada de Orçamento do Estado com esta medida". O ministro sintetizava com clareza a motivação de fazer estas alterações fora do OE. Enquanto Miguel Relvas - Ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares e homem forte de Pedro Passos Coelho - não conseguiu privatizar a RTP, o projeto de enfraquecimento do órgão de comunicação público regressa noutros moldes.
No caso da CP, encontramos vários ingredientes da mesma tática, com Pinto Luz na sua execução. Face às poucas garantias financeiras dadas até hoje e histórico devedor do Estado com a CP, o novo passe ferroviário pode muito bem ser uma medida de descapitalização desta empresa pública. O ministro com tutela da CP, Miguel Pinto Luz, tem sido vocal na sua vontade de limitar a capacidade da CP de operar no mercado de alta velocidade (um serviço potencialmente lucrativo), por não ser “saudável para o mercado”. Além disso, a atuação de Pinto Luz na privatização da TAP em 2015, não joga a favor da CP. A realidade de uma ferrovia lucrativa dominada por privados, numa altura em que a indispensabilidade desta para o país é cada vez mais consensual, ganha força. Os paralelos com a política implementada por Sérgio Monteiro (Secretário de Estado com tutela dos transportes, 2011-2015), de concessão de transportes públicos a privados (PPPs), são notórios.
Ao contrário dos executivos anteriores do PSD, Montenegro não pode justificar as privatizações e concessões como algo indesejável mas necessário, resultado de uma terrível herança socialista. Enquanto o país mediático passou horas sem fim a debater a posição do PS no orçamento e a eficácia do IRS jovem, Pinto Luz e Pedro Duarte iniciaram a revolução de veludo. Na próxima semana iremos abordar o contexto discursivo que favorece a atuação de Montenegro, em especial nas suas medidas de cortes de impostos.
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