Onze meses a exigir mais despesa, um mês a discutir cortes de impostos
Com o orçamento equilibrado e várias exigências populares do lado da despesa, é preciso virar o Estado Social de pernas para o ar para justificar cortes de impostos.
Após seis meses de governo, o Orçamento do Estado (OE) foi apresentado. Como plano de fundo, o executivo de Luís Montenegro, mesmo que sem grandes escândalos mediatizados, era confrontado com vários desafios estruturais. Ainda durante a campanha eleitoral em fevereiro os protestos de agricultores e polícias chegavam aos telejornais. O mês de maio trazia novamente o drama da seca no sul do país. Em agosto, os problemas nas urgências dos hospitais intensificam-se. Já no início de setembro, a fuga da prisão de Vale de Judeus era associada à falta de investimento no sistema prisional português. Dias mais tarde, os incêndios florestais - cujo epicentro foi a Região de Aveiro - e os protestos dos sapadores frente ao Parlamento eram a prova de que ainda faltavam meios para prevenção e combate, mesmo depois dos pacotes de reformas do executivo anterior. Em novembro, os problemas no SNS voltavam aos telejornais, desta vez o foco era para as 11 mortes por falta de resposta do INEM. Num outro Portugal, o corte de impostos era a grande prioridade nacional.
Ao longo do ano, o país discute uma variedade de problemas causados pelo subinvestimento crónico; quando chega ao período do OE, a carga fiscal e os cortes de impostos ocupam os ecrãs televisivos. José Gomes Ferreira, o comentador residente na SIC que tenta encarnar a indignação popular no seu comentário político, abandonava (temporariamente) o seu conspiracionismo em torno dos incêndios florestais para convidar Luís Mira Amaral e António Nogueira Leite a falarem (no meio de muito terraplanismo energético) de uma suposta excessiva carga fiscal e da necessidade de baixar os gastos do Estado.
Em parte, esta dissonância, entre problemas estruturais e soluções orçamentais, foi alimentada por Pedro Nuno Santos, que, ao apresentar as suas supostas linhas vermelhas para viabilizar o OE, acabou por centrar a negociação em medidas de corte de impostos, mesmo antes de conhecer o documento. O colunista Daniel Oliveira argumentava, corretamente, que Pedro Nuno Santos tinha caído numa armadilha. O Secretario-Geral do PS parece ter-se apercebido do erro e no final de setembro tentou corrigi-lo, ao apresentar sugestões políticas como o investimento público de 500 milhões de euros para a habitação. Contudo, era demasiado tarde. A partir de outubro, com a ajuda da imprensa, o debate político seria totalmente dominado pelo corte de impostos, precisamente as medidas que o PS não queria discutir. Apesar dos erros do PS, este fenómeno político-mediático é recorrente e é conseguido por uma degradação do debate público agudizada ao longo dos últimos anos. O resultado é o terreno favorável para o atual executivo retomar o legado programático do último governo PSD-CDS, mas desta vez num ambiente de equilíbrio orçamental.
Montenegro não pode invocar uma pesada herança socialista para reduzir o peso do Estado enquanto baixa impostos para empresas. Até agora, este equilibrismo é feito de duas formas. Por um lado, como descrito no texto anterior, as políticas fora do OE (os passes da CP, fim da publicidade RTP e o pacote para os media privados) ganham importância política. O outro passo é o de inverter a lógica do funcionamento do Estado Social. Aproveitando as brechas deixadas por António Costa, as políticas fiscais são utilizadas como o instrumento público por excelência. No sentido inverso, aproveitando o clima preparado pela intelligentsia afeta à direita durante os últimos anos de governação socialista, todas as outras políticas são exploradas à luz da distribuição de rendimentos.
O ESTADO SOCIAL FRAGMENTADO E INVERTIDO
A proposta inicial do IRS jovem, ao gerar dúvidas constitucionais, mostra a falta de rigor nas propostas de cortes de impostos. O espírito da medida - usar o corte de impostos como principal instrumento para atingir objetivos sociais - já vinha dos executivos de Costa e reflete um gradual retrocesso na forma como é entendida a estrutura e o funcionamento do Estado Social.
Os Estados Sociais historicamente são compostos por uma combinação de impostos progressivos (mais altos para quem tem mais rendimentos) e serviços universais a baixo custo, ou mesmo gratuitos. A progressividade dos impostos vai muito além dos argumentos de justiça social e redistributiva, mais comuns à esquerda, fazendo parte de Estados Sociais conservadores. Em grande medida, isso deve-se ao facto de alguns programas do Estado - infraestruturas como autoestradas, certos serviços hospitalares, educação superior - mesmo que altamente benéficos para a sociedade como um todo, muitas vezes trazem mais ganhos às camadas mais ricas da sociedade (tornando-os regressivos). Mesmo definir quem são os beneficiários pode ser uma tarefa complexa - por exemplo, no caso dos transportes públicos, enquanto os usuários tendem a ser mais pobres, são os mais ricos que gozam do benefício de estradas menos congestionadas.
Em vez de se criar um sistema complexo de pagamento de serviços por nível de rendimentos/património, que exigiria uma burocracia do Estado para esses efeitos (p.ex: recolher de informação, estipular preços e cobrar o serviço) e criaria custos indiretos ao usuários (p.ex: tempo a navegar essa mesma burocracia), tornou-se regra corrigir essa questão de uma forma muito mais simples, recorrendo geralmente a impostos progressivos. Resumidamente, os serviços e investimentos públicos são maioritariamente instrumentos para cumprir objetivos sociais, sem um olhar muito rigoroso sobre quem beneficia mais destes. Aos impostos cabe um papel redistributivo e de reequilíbrio do sistema como um todo.
Nos últimos anos, esta lógica tem sido deliberadamente retirada do debate público. Em vez de se olhar para o Estado como um todo, as funções deste são fatiadas em pequenas porções, de modo a poderem ser classificadas como problemáticas pela sua regressividade. Ao quebrar-se a separação de tarefas entre despesa pública e impostos, grande parte do Estado Social passa a ser visto como injusto. Do outro lado da balança, o papel fundamental dos impostos é invertido. Gradualmente, estes deixam de ser apresentados como um instrumento corretivo e distributivo, e passam a ser vistos como o principal mecanismo para o cumprimento de objetivos sociais.
Esta inversão de papeis faz com que o ensino universitário apoiado pelos cofres públicos seja constantemente acusado de ser uma despesa elitista e injusta, enquanto o IRS jovem passe a ser uma medida pragmática para reter jovens qualificados no país. Pelo caminho, passa-se ao lado de medidas mais úteis, como a promoção de programas sociais (rede de creches, habitação barata, uma rede de transportes que permita não ter carro). As posições de Miguel Herdade e Mafalda Rebordão, dois dos co-fundadores da organização de “jovens”, o Coletivo Matéria, sintetizam a nova dinâmica. Herdade, apresentado como um especialista em educação, tem sido o principal porta-voz da ideia que as propinas fazem com que “os mais pobres subsidiam os mais ricos” e a sua solução é o modelo de empréstimos inspirado em países anglo-saxónicos. Com um olhar míope focado na sua área de especialidade, a análise de Herdade é um bom exemplo de fatiar o Estado Social. Além disso, a proposta de Herdade desconsidera os efeitos de segunda ordem para a desigualdade. Ao propor o pagamento de um empréstimo, uma substituição implícita dos sistema impostos progressivos, Herdade acaba por propor uma redução dos encargos aos mais ricos face aos restantes, visto que estes não precisam de contrair e pagar um empréstimo (com juros) ao Estado. A redistribuição e solidariedade intergeracional também são abandonadas no processo, reforçando uma falsa dicotomia de nação fragmentada por gerações. Ao mesmo tempo que Herdade faz esta proposta, Rebordão - jovem economista - apresenta-se publicamente a favor de medidas de redução de impostos para os jovens.
No limite, Herdade e Rebordão até podem discordar mutuamente, mas o que devemos examinar é a mensagem que se condensa para opinião pública, e não posicionamentos individuais. Sendo cada um chamado à vez a opinar na comunicação social dominante sobre o seu tema, para ilustrar uma suposta opinião dos jovens e sem um enquadramento no panorama geral, está montado o cenário com que a governação PSD-CDS pode legislar. Foi esta fragmentação das funções do Estado nas discussões políticas que criou o pano de fundo para legitimar o atual OE.
O QUE FAZER COM MIL MILHÕES?
As duas medidas mais emblemáticas do OE, a descida do IRC e o IRS jovem, têm sido discutidas em torno da sua eficácia em reter jovens e promover investimento, respetivamente. No que toca ao IRC, os estudos, baseados em experiências passadas, são pouco conclusivos (aqui), o que torna esta discussão interminável e focada no acessório. Já no caso do IRS jovem, até o insuspeito FMI apresenta-se céptico. Sendo este um debate legítimo, seria mais interessante alterar os termos deste: mesmo que estas medidas tivessem efeitos na direcção desejadas, serão estas a forma mais eficaz de empregar quase mil milhões de euros num ano para transformar o país?
Não é difícil encontrar alternativas a esta lógica. Por exemplo, do lado de Ricardo Paes Mamede, este contrapõe o altíssimo custo orçamental do IRS jovem (800 milhões de euros em 2025) com uma medida mais barata, a universalização das creches, e claramente benéfica para os jovens. Ainda assim, podemos ir mais longe: comparar os cortes (permanentes) de impostos do governo com investimentos do mesmo montante que ocorrem uma só vez. Fazendo este exercício, percebemos facilmente a dimensão do salto de fé nestas descidas de impostos.
O Estado, através da CP e do SNS, fez a encomenda de 117 comboios (810 milhões de euros) e 719 veículos elétricos (21 milhões de euros). Após os respectivos concursos públicos, estes investimentos garantiram a vinda de um fabricante de comboios para território nacional e contribuíram para a produção dos primeiros carros elétricos em Portugal, na fábrica da Stellantis em Mangualde. Estes investimentos contribuem para a transição energética, equilíbrio externo com a redução de importação de combustíveis fósseis, e a subida de Portugal nas cadeias de valor de industrial (criando mais e melhores empregos fora dos centros das cidades) - três objetivos que não serão alcançáveis com as medidas fiscais do governo. Canalizar a margem orçamental destas medidas para uma estratégia de médio prazo de eletrificação da (envelhecida) frota automóvel do Estado - mais de 25 mil veículos, quase todos movidos a combustíveis fósseis - abre mais uma possibilidade de alavancar esta indústria em Portugal. O mesmo pode ser aplicado aos projetos de Metrobus e Eléctricos nas cidades portuguesas. Numa lógica semelhante, o recente orçamento britânico - ao investir 370 milhões de libras em material circulante para o metro de Londres - garantiu a sobrevivência da fábrica da Alstom em solo inglês.
Revitalizar o investimento público, que apresenta valores residuais há mais de uma década, como um catalisador industrial, em detrimento de redução de impostos, está longe ser uma medida esquerdista, como iremos ver na próxima semana - onde iremos analisar o caderno de encargos apresentado ao governo português pelo CEO de um conglomerado industrial com presença em Portugal.
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