Rui Nabeiro: Capitalismo com Q
O verdadeiro legado de Nabeiro não está nas suas iniciativas sociais e cívicas, mas em não ter vendido o seu Império para grandes grupos como a Nestlé, e não ter-se encostado ao rentismo das PPPs.
Nabeiro foi fundador da Delta e uma figura incontornável da sociedade portuguesa nos últimos 60 anos. Nasceu em Campo Maior, foi um jovem contrabandista na fronteira Portugal-Espanha (onde viu a guerra civil espanhola de perto), e tornou-se um dos homens mais ricos de Portugal. Pelo caminho, foi nomeado presidente da Câmara Municipal durante o Estado Novo e eleito para o mesmo cargo em 1977, pelo Partido Socialista, sendo reeleito duas vezes.
Normalmente Nabeiro é apresentado como “o bom capitalista" português, pela longa e forte ligação do Grupo Delta com o Alentejo e também pelas suas iniciativas sociais. Ao longo dos anos, Nabeiro e a Delta criaram a imagem de serem um capitalismo com um rosto humano. Os seus (menos frequentes) críticos apontam para os seus problemas com o fisco nos anos 80 e para as práticas monopolistas que o Império Delta exerce sobre pequenos estabelecimentos. A Delta, através de contratos de exclusividade de venda de café a troco de equipamento (ex: máquinas de café, cadeiras, etc), criou uma forma implícita de crédito que lhe dá um enorme poder sobre os pequenos comerciantes do ramo, criando uma dinâmica semelhante à uberização económica dos últimos anos.
Entre estas contradições, qual o verdadeiro legado de Rui Nabeiro para o capitalismo-político português?
SOBERANIA E COMPLEXIFICAÇÃO
Ao contrário da esmagadora maioria dos grandes grupos económicos portugueses durante a integração europeia, o grupo Delta não entrou num processo agressivo de financeirização ou de total alteração da sua área de atividade económica.
Ao manter-se fora da bolsa de valores, e não ser integrado em grandes grupos financeiros como alguns dos seus concorrentes (ex: Nicola e Chave d’Ouro foram adquiridas por fundos de capital de risco e posteriormente vendidas ao grupo Segafredo), o grupo de Nabeiro conseguiu manter-se uma empresa importante no seu setor e como uma estratégia independente de outros grupos económico. Dessa forma, a Delta evitou as típicas pressões de acionistas (“do mercado”) para reduzir custos, mostrar resultados trimestrais rápidos e distribuir dividendos. Ao não abraçar este modelo de capitalismo bolsista, o grupo de Nabeiro conseguiu resistir a inúmeras tentativas de ser absorvida pelos gigantes do sector - como a Nestlé (que comprou a Sical e Tofa), Kraft ou Pepsi - uma prática comum de derrubar concorrentes através da aquisição de uma parte significativa das suas acções (‘hostile takeover’). Para além disso, a autonomia do grupo fez com que este tenha evitado ser capturado e desidratado, da forma que a Portugal Telecom foi capturada (até implodir) pelo Clã Espírito Santo.
Em oposição a outros grupos económicos portugueses, como a CUF e a SONAE, o grupo Delta não se deslocou de atividades exportadoras (ex: indústria química ou processados de madeira, respectivamente) para o rentismo (PPPs rodoviárias e da saúde) e oligopólios nacionais (grande retalho). Ao longo dos anos, o grupo tentou uma estratégia de exportação de seus produtos e de subida na sua cadeia de valor. Em vez de usar o espaço público para “pedir reformas” e culpar a fiscalidade e leis laborais pelo atraso económico nacional, Nabeiro chegou mesmo a fazer alusão a uma estratégia de substituição de importações e industrialização. As Delta Q, máquinas desenhadas e produzidas em Portugal, que competem com a Nespresso, são a síntese do processo de complexificação económica do grupo.
O verdadeiro legado de Nabeiro e da Delta, ao contrário da esmagadora maioria da opinião publicada, não está nas suas iniciativas sociais e cívicas. Estas são apenas a consequência direta de um modelo que se manteve mais distante do capitalismo bolsista, das rendas do Estado, e seguiu uma estratégia de modernização da sua cadeia de valor. Como disse o próprio Rui Nabeiro, uma Delta controlada pela Nestlé ou pela Pepsi não teria a maioria dos seus trabalhadores em Campo Maior. Provavelmente, também teria deslocado vários empregos altamente qualificados de Lisboa para Madrid, Paris ou Londres.
Uma economia pequena como a portuguesa, num sistema globalmente competitivo, só se consegue modernizar com planeamento económico; sem entrar acriticamente nas novas modas do capitalismo financeiro global; e evitando entregar os motores da sua economia a competidores externos, algo que foi feito com as privatizações dos anos da Troika. Esse é o verdadeiro legado de Rui Nabeiro.
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