Trump assegura que a próxima legislatura não seja um retorno ao Costismo
O programa eleitoral apresentado pelo Partido Socialista imagina um retorno aos tempos de Costa. A realidade promete ser mais instável.
Esta quarta-feira o S&P500, o principal índice de empresas norte-americanas cotadas em bolsa, teve o oitavo melhor retorno percentual da sua história. As más notícias é que todas as outras datas que compõem os dez lugares cimeiros nesta lista aconteceram sob o contexto da Grande Depressão, da Grande Crise Financeira ou da Crise causada pela COVID-19. Se não estamos à porta de uma crise financeira de grande escala, os altos e baixos dos mercados portam-se como se tal se avizinhasse.
Os mercados de ações têm captado mais atenção, mas é no mercado da dívidas soberana (obrigações) que os sinais preocupantes emergem. A instabilidade lançada pelas políticas de Donald Trump fez as respetivas yields (taxas de juro, associadas ao risco) disparar para níveis com poucos precedentes, mesmo face a outras crises financeiras.
Como destacado por Adam Tooze, historiador económico com que estudou as últimas duas grandes crises, o mercado obrigacionista é canalização do sistema económico-financeiro que geralmente está “fora da vista”. Nesta maré de incerteza “estamos a tentar ver através do nevoeiro”. Para Nathan Tankus, a crise das tarifas de Trump é um “momento Lehman Brothers” a partir do qual não há um retorno, mesmo que o Presidente recue.
Mesmo que sejamos optimistas e estas análises pequem por alarmismo, a segunda vinda de Trump implica tempos incertos. Para o contexto português, a novidade é estes eventos estarem a desenrolar-se em plena campanha eleitoral.
PROMESSAS DE 2015 A 2024
Num fim de semana entre dias turbulentos, o Partido Socialista (PS) anunciou no programa eleitoral para as próximas eleições um conjunto de medidas como a redução do IVA zero nos bens alimentares e na eletricidade consumida pelas famílias, aumentos do abono de família, e subidas do salário mínimo nacional.
Numa antecipação à crítica por parte da direita sobre o despesismo das medidas, estas foram apresentadas em equivalência aos 1.500 milhões de euros da descida de IRC almejada pelo PSD desde a última campanha eleitoral. Tal como indicado pelo PS na sua apresentação, tratam-se de medidas "fáceis" e "imediatas" e notavelmente, não são propostos aumentos de impostos para financiar a carga sobre os cofres do Estado.
Ainda assim, a equivalência à medida do PSD expõe um problema. O programa eleitoral coordenado por Miguel Costa Matos depende de uma continuação do crescimento da economia, com as promessas assentes naquilo que é esperado hoje. Os socialistas encontram nos seus “Cenários Macroeconómicos” o álibi para resolver esta tensão. Esta prática inaugurada por António Costa em 2015 para afastar os fantasma de José Sócrates passou a ser um fiador precário de promessas eleitorais. Redistribuir excedentes baseados em projeções de estabilidade, ainda mais neste contexto caótico e instável, é o equivalente a ter um programa apenas para os dias sol. Enquanto esta questão podia ser uma fragilidade eleitoral, Rui Rocha tornou-a numa virtude. No seu debate com Pedro Nuno Santos, o líder da IL acusou o PS de falta de ambição, por ter cenários de crescimento em torno dos 2%. Num cenário de total disrupção económica, o líder da IL faz o PS parecer um partido cauteloso e responsável.
Numa situação de necessidade de quebrar promessas, o PSD está em vantagem perante o PS. Apesar de ter chegado a ser criticado por grupos de empresários pela resposta tardia a desenvolvimentos na economia mundial, a história recente mostra uma direita que sabe como governar num contexto recessivo.
AGORA SÃO TODOS COSTISTAS
Na sua génese, nenhuma das bandeiras do PS aponta para mudar a forma como o Estado atua, o funcionamento da economia ou o modelo de desenvolvimento do país. Em grande medida, representa uma vitória do Costismo. Enquanto António Costa só teve de lidar com uma recessão durante um período de emergência mundial (pandemia) - cuja natureza permitiu suportar altos défices, sem forçar uma contração fiscal - o contexto com que o PS pode vir a governar não deixa espaço para os mesmos luxos.
Os primeiros tempos da política de António Costa, dependente do apoio dos partidos à sua esquerda e menos margem de manobra orçamental, tiveram o seu quanto de medidas com um impacto de fundo no Estado português – em particular, a reforma do financiamento ao ensino privado e a reversão das concessões a privados nos transportes públicos. A partir daí, o grosso da sua governação foi baseado na gestão dos recursos do Orçamento de Estado.
Com a economia em crescimento, em boa parte alavancada na atividade turística, os valores adicionais de recolha de impostos permitiram a Costa, ora aumentos de salários da função pública, ora a contratação de funcionários públicos para ir colmatando parte das necessidades adicionais em setores como a saúde. Mesmo as suas medidas mais populares à esquerda, como os passes sociais ou as creches e manuais gratuitos, não criaram novos pilares do Estado Social. Financiaram sim estruturas já existentes na sociedade portuguesa, muitas vezes privadas (Fertagus, editoras de livros, IPSS). Crucialmente, foi uma governação em que Costa pôde governar para a sua base sem ter de confrontar os mais poderosos. Mesmo a contragosto, estes últimos puderam beneficiar amplamente dos executivos de Costa, em especial no que diz respeito ao mercado imobiliário.
No que toca a grandes iniciativas públicas, o caso da política habitacional foi paradigmático. Como é agora evidente no caso do plano de estímulos europeus, o investimento público não se trata apenas da alocação de verbas. Metas para a construção de habitação pública foram sendo sucessivamente falhadas, ficaram por celebrar as inaugurações de um reduzido número de novas casas. Como forma de compensar o agravamento da crise habitacional, em especial quando esta chegou aos proprietários sob a forma de taxas de juro mais elevadas, a solução passou por recorrer a transferências do Orçamento de Estado. Em sentido inverso, alavancas que exigem muita verdadeira capacidade do Estado para agir, bem além de verbas, foram sendo preteridas.
A governação de Luís Montenegro durante estes meses pode ser interpretada como um Costimo invertido, em que os excedentes orçamentais vão sendo passados para outras classes, com a redução dos impostos das empresas sempre a pairar sobre as aspirações da governação. A direita num cenário pós-eleição, sem pressão ao centro, aspira a poder consolidar esta viragem de distribuição de recursos.
Tal como Montenegro tenta governar como um espelho de Costa, o programa socialista como espelho do orçamento do PSD é uma cópia imperfeita.
QUEM PAGA A CRISE?
Naturalmente, as políticas com que se ganha as eleições e aquelas com que se governa não têm de coincidir na perfeição. Isto foi especialmente evidente ao longo dos meses em que Luís Montenegro foi primeiro-ministro, onde o grosso do programa era feito à margem do Orçamento de Estado.
No caso do programa eleitoral do PS, este também vai além do que foi destacado na comunicação dos últimos dias. Não podemos excluir a hipótese de Pedro Nuno Santos considerar uma rendição temporária ao costismo como o caminho para ganhar uma folga enquanto desenvolve novos instrumentos a seu favor, chegando ao seu tão ambicionado modelo desenvolvimentista. Olhando para as políticas que se tornaram a imagem de marca do antigo ministro das Infraestruturas, a reabilitação da ferrovia e o resgate da TAP, estiveram longe daquilo que foram as campanhas eleitorais conduzidas por António Costa, sempre muito focadas no aumento de pensões e do salário mínimo.
Qualquer que seja a cor partidária, um executivo que governe nestes tempos sujeita-se a não ter o contexto ameno com que Costa contou. Com uma travagem do crescimento económico, e até mesmo com uma recessão, o contágio da crise económica mundial pode implicar não só uma obstrução a medidas expansionistas, como até apontar para cortes na despesa e aumentos de impostos. Mesmo num cenário improvável em Portugal saia minimamente ileso de uma guerra comercial e vire um improvável refúgio de capital internacional, num mundo cada vez mais instável, o fogo da crise da habitação contará com mais combustível.
No caso de recessão e falta de excedentes para distribuir, a direita saberá precisamente o que fazer, e já provou no passado recente que sabe atuar em contração económica. O eventual regresso da austeridade até poderá dar um ímpeto ao seu projeto de refazer o Estado à sua medida, alargando o espaço que os privados têm em setores como a saúde. Num contexto em que “não há dinheiro”, as obras públicas, anunciadas em boa parte para esgotar o programa dos socialistas, poderão ser colocadas (mais uma vez) na gaveta sem grandes convulsões.
Ao deixar um vazio sobre quem são os seus oponentes, um cenário recessivo deixa o PS num lugar em que não só tem de renegar várias das promessas que fez, como também de impor os custos da crise económica a alguém. Se chegado a um dilema entre renegociar Parcerias Público Privadas, congelar pensões ou aumentar alguns impostos, o costismo não oferece uma resposta. À falta de um alvo definido, talvez o peso caia sobre os ombros de quem os próprios socialistas contam agora conquistar.
Sem uma resposta definitiva, o programa do PS acaba por ter uma perigosíssima nota de rodapé. Nas entrelinhas da sua principal proposta para a habitação, o uso dos dividendos da Caixa Geral de Depósitos para fomentar a construção pública, Pedro Nuno Santos abre a porta a abandonar esta política num cenário em que o contexto internacional reduza os lucros e dividendos do banco público. Estará o PS a oferecer uma resposta à crise da habitação apenas de não houver uma sobreposição de uma outra crise?
LEITURAS RECOMENDADAS PARA TEMPOS INCERTOS
Como a introdução deste texto mostra, acompanhamos com apreensão os movimentos vindos da Casa Branca. Sem termos respostas sobre o desenrolar desta crise, acreditamos que olhar para este fenómeno como uma guerra comercial, cujas consequências são o aumento de preços e talvez a desaceleração da economia, é redutor e falha no alvo.
O contagio da “economia real” para os mercados financeiros pode desencadear uma nova crise financeira. A crise de 2008 mostrou como um segmento do mercado imobiliário norte-americano foi a fagulha que arrastou o mundo para uma recessão. Existem diversos candidatos a catalisadores de um choque no sistema financeira: será a insolvência desordenada de países fiscalmente frágeis no sul global? A modalidade de empréstimos de “Private Credit” que contorna boa parte da regulação poderá estar a acumular empréstimos de má qualidade? Ou a perda da confiança do dólar como moeda de reserva? Não sabemos.
Também não devemos destacar por completo que a guerra comercial escale para os serviços ou mesmo para uma guerra financeira sem precedentes. Sem ter as mesma proporções, é importante relembrar que nos últimos anos foram confiscadas as reservas de dólares do Afeganistão, após o controlo do pais pelos Talibã; e existem ativos russos congelados pela União Europeia, cujo a proposta de confisco não sai de cima da mesa. Ao contrário desses países, a China tem vários instrumentos para retaliar. É o segundo maior detentor de dívida soberana dos Estados Unidos da América e tem no seu território algumas das principais fábricas associadas às suas multinacionais.
Quanto à Europa, é reportado o receio de retaliação por via das swap lines, linhas de crédito entre Bancos Centrais que garantem liquidez de dólares no mercado financeiro global. Entretanto, Espanha aproveita as visitas de Estado ao Vietname e à China para apostar no aprofundamento de relações com estes países e funcionar como mediador entre a China e União Europeia (aqui e aqui). Tendências as quais Portugal não pode simplesmente ignorar.
Por estes motivos, deixamos as seguintes ligações de textos dos últimos dias para ajudar a compreender estes tempos conturbados:
Como contextualização da guerra comercial, recomendamos também ver a nossa análise ao livro “Guerras Comerciais são Lutas de Classes”, livro que supostamente serve de inspiração a JD Vance:
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