O ano de 2016: lições das vitórias e das derrotas da Geringonça
Para fazer diagnósticos sobre o estado da esquerda, devemos prestar atenção ao ano de 2016. Oferece-nos sucessos como a luta nas escolas e falhanços como a eleição de Marcelo.
Na sequência das últimas eleições legislativas, multiplicaram-se as análises à derrota da esquerda. Embora reescrever a história seja um exercício difícil, para fazer um diagnóstico devemos olhar bem além da campanha eleitoral ou dos últimos meses desta da governação de António Costa. E o ano de 2016 oferece-nos um caso para reflexões.
A Comissão Europeia lançou um procedimento sobre défices excessivos sobre Portugal. À direita, pairava a convicção de que a solução governativa não iria durar muito. A estreia do recém-empossado ministro das Finanças, Mário Centeno, foi marcada pelo chorar a rir de Pedro Passos Coelho, então líder do PSD.
A expectativa era a de António Costa não conseguir fazer o equilíbrio entre as exigências à sua esquerda e a pressão dos credores e instituições internacionais: O que era pedido de um lado iria colidir de frente com as responsabilidades para com o outro. Ironicamente, é aqui que encontramos o mais interessante que Costa tem para nos oferecer, naquele que acabou por se tornar o governo mais popular deste século.
2016 – O ANO DA POLÍTICA
Como tiro de partida do ano de 2016, a 8 de janeiro foi aprovada a “reposição dos feriados.” Os quatro feriados retirados em 2012 pela PaF (coligação PSD-CDS) tiveram a sua reposição no parlamento com o voto favorável da esquerda, e a abstenção da direita.
A oposição à medida foi fraca. Era uma marca de vergonha da governação da direita, e vários setores desta tinham vontade de ver vários dos feriados repostos. Não alterando substancialmente o modo como o país operava, assemelhou-se mais ao que se viu ao longo dos oito anos da governação Costa. O mesmo não se pode dizer do que aconteceu no imediato.
As negociações para o primeiro Orçamento do Estado foram difíceis, levando o primeiro-ministro a afirmar que “gostava mais da versão inicial” do que aquela acordada com Bruxelas. Com a chegada da primavera, a luta política aqueceu quando o governo de Costa, apoiado à sua esquerda, reviu os termos dos contratos de associação do ensino privado, um ponto do memorando da Troika que a direita nunca mostrou vontade de cumprir.
Retificando o propósito destes contratos, o executivo reduziu a abrangência do financiamento público às escolas privadas. Na prática, tratou-se de uma verdadeira reforma estrutural, com o Estado a consolidar o ensino no setor público, evitando o alastrar de um setor privado sombra assente em dinheiros públicos.
Os colégios privados não aceitaram a iniciativa sem ir a combate. O confronto foi o destaque durante várias semanas e os defensores da manutenção dos benefícios dos colégios a confluíram em manifestações em Lisboa.
A questão, tanto para um lado como para o outro, foi bem além dos custos do financiamento ou da “liberdade de escolha.” A arena era o poder sobre os espaços de ensino. A questão que estava no ar era se o Estado iria reter o controlo do setor público da educação, ou se ia deixar deslizar essas competências deixando-as nas mãos de interesses privados. O apoio da Conferência Episcopal Portuguesa ao ensino privado tornou-o evidente.
Enquanto as manifestações foram numerosas, a pressão gerada não foi capaz de demover o executivo. Na luta pelo consenso público, ao terem de expor os seus argumentos e a sua base social, ficou evidente que os colégios privados não falavam em nome do interesse geral, mas de uma minoria privilegiada. Slogans como “cá não há misturas é tudo boa gente” e uma organização nada espontânea em que os manifestantes (muitos deles crianças, com relatos de queixas por parte dos próprios pais) se vestiam coincidentemente de amarelo cortou a simpatia pelos protestos. O contexto de austeridade da era Troika na escola pública reduziu o folêgo à causa do ensino privado e a exposição pública dos defensores dos colégios tornou os spins dos comentadores afectos à direita mais difíceis de engolir.
O contraste desta batalha para com a política da fase tardia da era Costa foi grande. Em 2016, o governo geriu acusações de “comunismo” e de “ditadura” com o avançar de uma política popular para a generalidade da população. A polarização mobilizou a Fenprof para um protesto em nome da escola pública.
Esta medida, que não beneficiava diretamente a esmagadora maioria da população, não andava nas bocas do mundo até ser aplicada. A sua popularidade foi a prova de que existe espaço para defender o Estado Social e que a política é muito mais que uma aritmética de interesses individuais, na qual os eleitores são reduzidos a “clientelas do Estado.”
Outro ponto forte desta mobilização foi a sua forma de comunicar. A esquerda usou o audiovisual, hoje dominado pela direita, para defender a medida. O economista Ricardo Paes Mamede apareceu num curto vídeo de apoio à medida, num modelo bastante pedagógico e quase ausente na atual comunicação da esquerda.
A dimensão da vitória ficou demonstrada pela passagem do tempo. Hoje, mesmo que algumas vozes continuem a insistir num maior papel do privado no ensino, fogem a retomar a luta nos termos que se traduziram na derrota de 2016. O comentariado de direita evita falar desse confronto, preferindo falar em “colonização” por parte do PS em esferas como as pensões e o salário mínimo.
Pelo final do ano, e ainda na primeira metade do governo apoiado pela esquerda parlamentar, Marisa Matias do Bloco de Esquerda, apelou a um “repensar” do acordo entre as esquerdas. A então eurodeputada apontava para repetir o que foi feito na educação em setores como a saúde, apontando para as “rendas das parcerias público-privadas.” Marisa Matias demonstrou entender que este tipo de disputa dava legitimidade a um governo constantemente acusado de ilegítimo em horário nobre, ao mesmo tempo que colocava os seus opositores na defensiva.
Nos anos seguintes, as governações Costa não voltaram a entrar em confrontos com um nível de disputa dos contratos de associação. Outras conquistas, como o passe social para os transportes públicos, ou as creches gratuitas, há algum tempo reivindicadas pelo PCP, tiveram uma natureza muito menos confrontacional, enquadrada numa lógica de aproveitamento da margem orçamental para expandir serviços públicos.
O resto do ano já antevia um arrefecimento da iniciativa do costismo e o procurar de jogar no terreno da direita. Nesse mesmo ano inaugurou-se com grande orgulho a primeira Web Summit em Lisboa. O procedimento por défices excessivos foi afastado, com Portugal a terminar o ano com o défice do Estado em 2,1%, o valor mais baixo das quatro décadas anteriores.
O espaço ao centro ia-se conquistando. No geral da economia, apesar de registar crescimento modesto, Portugal distanciava-se do espectro das recessões e dos orçamentos retificativos da era da troika. Os enormes fluxos de emigração eram estancados e a taxa de desemprego ia paulatinamente descendo.
No que se refere à possibilidade de alcançar verdadeiras reformas estruturais à esquerda, 2016 foi o ano mais aceso de Costa. Tudo somado, 2016 foi um ano que se destacou nas políticas. No ramo da política, as escolhas anteviam o arrefecimento que se seguiu.
2016 – O ANO DA FUGA
Pouco depois das eleições legislativas de 2015, o segundo mandato de Aníbal Cavaco Silva como Presidente da República chegou ao fim. As regras da presidência foram uma peça chave para a formação da geringonça, o governo do PS com o apoio do BE, PCP e Verdes.
Como é algumas vezes assinalado, a impossibilidade de Cavaco Silva dissolver o parlamento e convocar novas eleições foi vital para evitar uma segunda ronda de eleições legislativas. Esta possibilidade poderia ter culminado numa maioria absoluta da PaF antes sequer de António Costa assumir o cargo de primeiro-ministro. Não tomar esta lição e negligenciar o papel do primeiro posto da nação foi fatal em 2016.
Hoje, com o aproximar do fim do segundo mandato de cinco anos de Marcelo Rebelo de Sousa, as vitórias do atual Chefe de Estado pareciam pré-destinadas. No entanto, apesar de ter ganho o segundo mandato com mais de 60% dos votos, a primeira vitória não foi trivial. As escolhas do PS foram essenciais para esse desfecho.
O segundo classificado nas eleições foi António Sampaio da Nóvoa, antigo reitor da Universidade de Lisboa. A campanha estava há muito anunciada mas tinha pouco rumo. Foi com a formação da Gerigonça que Nóvoa encontrou a sua direção, posicionando-se como o Presidente que iria valorizar essa solução. O resultado final foi uma vitória de Marcelo Rebelo de Sousa com 52% dos votos.
Ficou a pairar no ar a ideia de que, apesar de longe de uma certeza, um apoio explícito do PS poderia ter forçado uma segunda volta e, talvez, rendido um vitória da candidatura de Nóvoa. Apesar de todas as limitações que poderíamos ter esperado de Nóvoa, o cenário atual de instabilidade apadrinhado pelo atual Presidente da República poderia ter sido evitado e a presidência não teria sido um entrave a reformas de esquerda.
Iniciativas como a lei de bases da saúde dão-nos um exemplo claro de um processo que poderia ter sido conduzido de uma forma mais favorável à esquerda. Uma revisão constitucional feita exclusivamente pela direita poderia não ser um espetro com o qual nos deparamos atualmente.
Ao invés de uma escolha decidida, Costa apresentou a primeira volta das presidenciais como uma primária socialista entre Nóvoa e Maria de Belém, figura do PS distante dos seus parceiros de esquerda. Marcelo Rebelo de Sousa reagiu ao apoio bipartido com "grande ajuda que ele dá". Em paralelo, Nóvoa era apoiado por todos os anteriores Presidentes da República, exceto por Aníbal Cavaco Silva.
A eleição de Marcelo decorreu com pouca discussão de fundo do que esta representaria. Depois de anos como comentador televisivo, o antigo líder do PSD pôde apresentar-se como mero tipo simpático que se candidatava ao posto mais alto da nação. A oposição tímida favoreceu uma eleição com pouca política, focada na personalidade de Marcelo. O debate televisivo entre Rebelo de Sousa e Nóvoa contrastou com o apaziguamento seguido por Costa durante boa parte da sua coexistência. A escolha pelo seguro por Costa, facilitando a vida a Marcelo, para encetar boas relações após a sua vitória, saiu cara mais à frente.
SOB PRESSÃO
Apesar de ser entre a direita que expressões como “sair da zona de conforto” ganharam mais popularidade durante a intervenção da Troika, foram as governações de Costa apoiadas à esquerda que mostraram o benefício da pressão em várias frentes.
O início do primeiro mandato de Costa foi marcado pela pressão de Cavaco Silva, das (ainda não convencidas) instituições europeias e dos acordos com os seus parceiros de esquerda. A oposição de Cavaco Silva à Gerigonça forçou a assinatura de acordos escritos entre o PS e os partidos à sua esquerda. Ironicamente, é admitido por vários dirigentes do PS (aqui e aqui) que esses acordos foram o pilar da estabilidade da solução governativa entre 2015 e 2019. Uma estabilidade com contornos confrontacionais, como demonstrada nos episódios dos contratos de associação e o desfazer de privatizações dos transportes públicos a grupos estrangeiros, feitas na vigésima quinta hora de um governo demissionário. Foi este contexto de pressão política (e não de casos e casinhos) que trouxe o melhor que Costa teve para oferecer.
Ao invés do ciclo pós-troika ter sido uma agenda confrontativa por parte da esquerda, António Costa parece ter acreditado no diagnóstico feito pelos seus opositores. Em vez de procurar reformas estruturais mobilizadoras que alargassem e legitimassem políticas viradas para o Estado Social e para o setor público, Costa seguiu o mantra de que a popularidade se baseava no uso da política como forma de comprar votos.
Maior era a margem orçamental, e fundos do PRR, mais a governação de Costa optava pela micropolítica transacional, sempre virada para apaziguar a direita, que nunca hesitou em classificar o mínimo intervencionismo de autoritarismo. Os sucessivos aumentos do salário mínimo acompanhados de borlas à empresas foram um exemplo disso. O modelo de crescimento costista assentou no alastrar de atividades de baixo valor como o turismo, sempre numa falsa tentativa de conciliação com os interesses imobiliários. No final de contas, o resultado foi trágico para toda a esquerda: a micropolítica não conquistou os desejados segmentos da direita e a falta de um projeto transformador foi desmobilizando a esquerda.
No próximo texto vamos além de 2016, tentando não só enquadrar o resto da governação socialista, como também o legado do 25 de Abril. Ao contrário das narrativas dominantes, a Revolução dos Cravos não foi uma simples liberalização política, mas também um conjunto de “reformas estruturais” em toda a linha.
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