Guerras Comerciais são Lutas de Classes: Como olhar para o Comércio Internacional sem moralismos
Pettis e Klein argumentam os equilíbrios de poder dentro de uma sociedade, e não para diferenças ético-culturais entre sociedades, explicam os desequilíbrios externos
“Portugal voltou, porque já não seria preciso ser pacato e trabalhador, poupado e prudente. Era um país democrático, livre, independente. A nova geração iria viver como os patrões franceses e alemães. E Portugal gastou. Criou autarquias e dinamização cultural, comprou frigoríficos e televisões, fez planeamento económico, exigiu escolas e hospitais.”
Este é um trecho de um texto de João César das Neves, publicado em 2013 - uma espécie de adaptação da história Da Cigarra e da Formiga para a economia portuguesa. Para César das Neves, quando Portugal é a formiga - poupada, trabalhadora e obediente - tem sucesso económico. Quando decide ser a cigarra, o país aproxima-se da bancarrota. Dois anos antes, Cavaco Silva, Presidente da República em exercício, num registo muito parecido com César das Neves, falava num país que “vivia acima das suas possibilidades”.
Apesar de a crise de 2008 ser a maior financeira global desde 1929, e a crise de dívidas soberanas ser uma consequência das falhas político-institucionais da Zona Euro, o diagnóstico era de que os países do sul da Europa tinham gastado em demasia, cabendo-lhes então ajustar as contas, à imagem dos vizinhos do norte, frugais e acumuladores de excedentes. Depois da bebedeira, vinha inevitavelmente a ressaca.
Os desequilíbrios externos eram o diapasão usado para interpretar e enfrentar a crise do Euro. Produzir acima do que se consome (ter um excedente) de forma crónica correspondia a uma economia forte; importar sinalizava uma economia fraca e doente; pouco mais interessava para entender as economias. O sul da Europa tinha sociedades excessivamente gastadoras, e que o intervencionismo de Estado do qual o centro da Europa nunca abdicou (as empresas públicas, as regulações no mercado de habitação) impedia as suas economias de serem dinâmicas o suficiente para terem uma vocação exportadora.
Felizmente, o livro “Trade Wars are Class Wars [Guerras Comerciais são Lutas de Classes]”, de Matthew C Klein e Michael Pettis, desmonta esta narrativa mistificadora. O fio condutor do livro pode ser descrito através de quatro economias - China, Alemanha, Espanha e Estados Unidos da América (EUA) - mas este traz contributos valiosos para interpretar a situação portuguesa. Estas quatro economias mostram com excedentes externos não são mais virtuosas ou culturalmente superiores. A tese base dos autores é de que é impossível entender a posição externa de um país sem entender a sua organização social-laboral e a de outros países em volta do mundo.
Apesar de muito do que é dito no livro parecer um simples corolário do que é ensinado nos primeiros anos de um curso de economia, as contribuições para o debate público são enormes.
A DESIGUALDADE INERENTE DOS EXCEDENTES EXTERNOS
Como o nome da obra indica, Klein e Pettis identificam uma relação umbilical entre a posição externa de um país e as suas dinâmicas de classe - expressas nas desigualdades de rendimentos internas. Países que são exportadores líquidos, por definição, produzem mais do que aquilo que consomem. Como as classes trabalhadoras e populares, ao contrário das classes dominantes, consomem grande parte dos seus rendimentos – uma ideia básica do pensamento Keynesiano, comprovada empiricamente – os excedentes de produção (ou défices de consumo) são obtidos através da supressão de consumo destas classes.
O superávit alemão, obtido na viragem do milénio, não parte de uma virtude da ética protestante do trabalho. Este foi resultado de decisões políticas da sua elite. Uma série de reformas antipopulares, na sua maioria conduzidas pelo governo SPD-Verdes (1998-2005), que tornaram a sociedade alemã mais desigual: os cortes de impostos para os mais ricos, a redução de benefícios sociais e a liberalização do mercado de trabalho (Agenda 2010 e Reformas Hartz IV). Este contexto arrastou os jovens alemães a entrarem num mercado de trabalho desprotegido e precarizado, levando-os a ambicionar trabalhar no setor público (em busca de protecção), como foi descrito por Oliver Nachtwey.
Estas políticas transferiram rendimentos do Trabalho para o Capital, o que suprimiu a capacidade de consumo alemã. Com o mesmo aparato industrial, e uma classe trabalhadora com menores rendimentos disponíveis para consumir, o excedente externo emergiu.
No caso chinês, esta dinâmica de supressão de consumo e excedente externo é conseguida através de instrumentos como a regressividade dos impostos (excessiva taxação do consumo que afeta os mais pobres) e o sistema de segurança social (hukou), cujas disparidades entre contribuintes e beneficiários tornam o sistema gerador de desigualdades.
A grande diferença entre a Alemanha e China tem sido a forma como as economias têm investido os seus excedentes comerciais.
COMO RECICLAR OS EXCEDENTES DAS ELITES LOCAIS
As desigualdades estruturais no seio da economia alemã estão diretamente relacionadas com os défices externos e as bolhas imobiliárias do pré-crise em países como a Espanha e a Irlanda. Klein e Pettis também defendem que a Nova Rota da Seda (Belt and Road) é consequência natural de uma economia sem a capacidade de absorver internamente os seus próprios excedentes.
Com a institucionalização da austeridade orçamental na Alemanha – através da constitucionalização de limites de dívida – o Estado foi incapaz de direcionar os excedentes da produção privada para o investimento público. O reequilíbrio da economia fica por acontecer no comércio externo.
Esta combinação tóxica corroi as estruturas da economia e sociedade alemã: desde 1998 que os níveis de investimento público alemães não são suficientes para cobrir os custos de manutenção da sua infraestrutura. Este modelo estruturalmente austeritário tem criado sérios problemas ao funcionamento do atual governo alemão, ao ponto de ser criticado pelo insuspeito Financial Times. Uma paralisia política e um empobrecimento apontados como combustível para o crescimento da extrema direita alemã.
Vemos este colete de forças orçamentais na carência de novos investimentos. Metade das estradas e pontes necessitam de reparações e estima-se que existam 160 mil milhões de investimentos estejam por fazer, só a nível municipal. Os autores apresentam a ponte de Leverkusen - berço da farmacêutica Bayer - como símbolo dos custos da austeridade estrutural alemã. A falta de investimento causou danos estruturais nesta infraestrutura, ao ponto em que a construção de uma nova ponte passou a ser a opção economicamente mais viável. Mesmo que o modelo alemão tenha sido amplamente elogiado durante a última década, Klein e Pettis demonstram que as dificuldades atuais da economia alemã pairavam no horizonte e que não se devem simplesmente ao súbito aumento do preço da energia.
Sem oportunidades de investimento internas, os capitais alemães foram atrás de oportunidades além fronteiras. Com a integração no euro e a liberalização dos mercados de capitais, os excedentes alemães inundaram a periferia europeia, através dos respectivos sistemas bancários. Estes fluxos criaram pressões descendentes nas taxas de juro. Com excesso de liquidez, uma economia como a espanhola (e outras da periferia como Portugal, Irlanda e Grécia) passaram a consumir (no sentido mais abrangente, incluindo investimento) acima do seu nível de produção.
Parte desses excedentes foram utilizados em investimento produtivo na periferia, como a ferrovia de alta velocidade espanhola, as linhas de metro e as energias renováveis. No entanto, dada a velocidade e quantidade de capitais, uma parte significativa desses fluxos foram canalizados para investimentos de baixo retorno, como se viu na bolha imobiliária. No caso português, podemos aqui destacar o boom de segundas casas de férias, boa parte convertida em Alojamentos Locais nos anos seguintes. Não é por acaso que as rentabilidades dos investimentos alemães no exterior são significativamente mais baixas do que os retornos domésticos. A desigualdade estrutural da sociedade alemã, com um setor público austeritário, força a saída de capitais sem grandes critérios para mercados onde têm pouco conhecimento.
A China, com um Estado planeador e sem as amarras orçamentais auto-impostas da Alemanha, foi capaz de canalizar uma parte significativa desses fluxos para investimento interno, em projetos de construção e infraestruturas. A rentabilidade decrescente destes investimentos (p.ex: fazer uma a 3ª estrada entre duas cidades têm menor benefício que a primeira) pressionou o governo chinês a encontrar outras formas de reciclar os excedentes. Os autores argumentam que a Belt and [Road Nova Rota da Seda], projeto que trespassa o espaço euro-asiático, é mais de tudo uma forma de lidar com esta tensão, num ambiente de sobreinvestimento interno, e do que um grande plano de dominação mundial.
Esta ideia de falta de oportunidades rentáveis dentro da China, após um superciclo de investimento, parecia estar a ser comprovada com o colapso da Evergrande, gigante do setor imobiliário. Contudo, a recente e rápida realocação de crédito do imobiliário para a indústria, coloca a tese de Klein e Pettis em cheque. Com a urgência da descarbonização da economia mundial, a China talvez tenha encontrado o seu novo ciclo de reciclagem de excedentes.
A ESPONJA DOS CAPITAIS MUNDIAIS
Com a austeridade da Troika, as economias da periferia do Euro tornaram-se “mais alemãs”: mais desiguais, criando excedentes prontos a serem consumidos por outrem. Se olharmos para o caso português, o subinvestimento crónico é uma herança dos tempos em que o país se tornou mais “trabalhador, poupado e prudente”. Este ajustamento não foi compensado pelo fim do excedente alemão. Ao tornar-se numa grande Alemanha, a Europa passou a viver na condição de consumir menos do aquilo que produz, incapaz de competir nas guerras industriais entre os outros dois principais pólos económicos mundiais, os Estado Unidos da América (EUA) e China. Apesar de a guerra no leste da Europa ter afetado a economia Alemã, esta também parece ter trazido ao de cima os problemas que se foram fermentando desde à décadas. Tal como a economia britânica, um modelo outrora eficaz mostra os seus limites. Mesmo não sendo o foco do livro, a análise de Klein e Pettis ajuda a entender como a falta de investimento em infraestruturas básicas (habitação, estradas, etc), combinada com a gestão de fluxos migratórios, encaminhou a Alemanha para a debilidade atual, mesmo antes da crise energética.
Como não podemos ser todos exportadores líquidos e vender o excesso de produção para Marte, alguém teve de absorver esses capitais. Os EUA são o grande pivô desta dinâmica a nível mundial. Sem o sul da Europa para absorver os excedentes do norte do continente, os EUA tornam-se ainda mais vitais para o velho continente. Apesar de terem passado por processos políticos de cortes orçamentais e desregulação laboral semelhantes à Alemanha, que reforçam a desigualdade interna, a sua posição externa é oposta.
É aqui que emerge a importância do Dólar como moeda de reserva, e de Wall Street como o mercado de capitais do mundo. Os EUA são a grande esponja de capitais por consumir no resto do globo. Isso faz com que a economia norte-americana consuma mais do que produz. Dadas as restrições políticas ao uso do orçamento norte-americano (e.g. teto de dívida), estes capitais são maioritariamente canalizados para o setor privado. Tal como em Espanha, o tsunami de capitais externos contribuiu para a crise do subprime. A forte procura por oportunidades de investimento levou a um relaxar de critérios de crédito, causando uma bolha imobiliária que espoletou a crise financeira do ínicio deste século.
Os autores apontam com preocupação a posição do dólar como moeda de reserva numa economia norte-americana cada vez menos dominante. Os EUA representavam cerca de metade da economia mundial quando o dólar se tornou a principal moeda de reserva, o que facilitava a absorção de excedentes externos. Hoje, a sua economia tem sensivelmente o tamanho da Chinesa e apenas 15% da economia mundial.
Os défices e os excedentes externos não são algo inerentemente positivo ou negativo para um país. A abundância de capitais em território norte-americano beneficia o seu setor financeiro, mas dificulta a indústria nacional exposta ao mercado internacional devido à valorização do dólar (tornando os produtos industriais norte-americanos mais caros no mercado global).
Ou seja, o atual equilíbrio externo deve ser visto como uma coligação entre industrialistas europeus e banqueiros de investimento norte-americanos, conseguido através da supressão do consumo europeu e da desindustrialização norte-americana.
O COMÉRCIO EXTERNO CONTADO PELOS EUA
A nova política industrial norte-americana (Bidenomics) pode ser vista como uma resposta aos fenómenos descritos no livro, como a desindustrialização norte-americana ser um dos custos da livre circulação de capitais pelo mundo. Como refletido nos discursos de Biden, os EUA não querem ficar para trás. A proposta implícita de Pettis e Klein é a de em romper com o modelo em que os EUA são os supraconsumidores do mundo, para voltarem a ocupar um lugar cimeiro na produção.
A ligação entre a política económica chinesa e a desindustrialização norte-americana encontrou uma outra base de apoio no campo político Republicano. JD Vance, a escolha de Donald Trump para a vice-presidência dos EUA, é supostamente um fã desta obra e utiliza este modelo de análise em muitas das suas intervenções.
O livro de Pettis e Klein dá munição gratuita a um discurso anti-China que tente seduzir eleitorado de regiões que vivem longos processos de desindustrialização. Mas o diagnóstico de Vance dá mais um passo e alinha-se com o moralismo financeiro de César das Neves. Vance, na sua autobiografia, Hillbilly Elegy, coloca o fardo da miséria nas regiões mais pobres dos EUA em cima dos seus vícios em crédito ao consumo (aqui, aqui, aqui e aqui). Com um tom moralista, as questões levantadas por Pettis e Klein são descartadas.. Uma guerra económica com a China culmina no segundo propósito de garantir a supressão dos consumos dos mais pobres, evitando que estes esbanjem dinheiro em “frigoríficos e televisões”. No fundo, Vance retira o “luta de classes” do titulo do livro, para criar uma versão mais intelectualizada do populismo anti-popular de Trump.
Na conclusão, Klein e Pettis sugerem algumas alterações políticas para reequilibrar a economia global. Não surpreendente a maioria delas serem em torno de tornar economias como a China e Alemanha mais igualitárias. O uso de controlo de capitais é visto com simpatia, citando os exemplos do Canadá e Nova Zelândia na restrição de compra de imóveis por estrangeiros, medidas que em Portugal são apresentadas nos meios de comunicação como um regresso ao PREC. A recente proposta de Mario Draghi, de investir 800 mil milhões de euros por ano através da emissão de dívida conjunta, e imediatamente rejeitada pelo ministro das finanças alemão, encaixa na lógica das propostas de Klein e Pettis.
Trade Wars are Class Wars mostra de forma clara que os desequilíbrios externos não são movidos pela ética protestante dos trabalhadores alemães, mas por decisões políticas das suas elites.
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