“O melhor património imobiliário de Lisboa” conta a história do país nas últimas décadas
Os terrenos do Cais da Matinha abandonados há décadas são a janela para avaliarmos o legado do colapso do Grupo Espírito Santo
Quase 30 anos passados da Expo’98, a requalificação da frente Tejo a oriente está a passos de ser concluída. Depois do Parque das Nações e do Braço de Prata - um projeto do prestigiado arquiteto Renzo Piano com muitos sobressaltos -, chegou a vez do Cais da Matinha deixar para trás o passado de zona indesejável da cidade. Este projeto espera requalificar, num espaço de sete anos, os quase 10 hectares de uma zona devoluta da capital, onde um antigo espaço industrial da Galp ainda se destaca.
Enquanto o Parque das Nações passou a ser um dos mais importantes bairros das classes abastadas de Lisboa - ao combinar a habitação de qualidade com a proximidade ao rio -, o empreendimento do Braço de Prata, apelidado de Prata Riverside Village, sobe a um novo patamar. Com a assinatura do arquiteto de obras como a The Shard em Londres e o Centre Pompidou em Paris, fornece o passaporte desta nova Lisboa, virada para um público estrangeiro interessado em investir e viver em Portugal. Mais ou menos ao mesmo tempo que o projeto do Cais da Matinha entra em fase de consulta pública, a ideia de criar uma piscina nesta zona do Tejo chega aos jornais. Numa cidade em que a degradação e a inacessibilidade são cada vez mais marcantes para o cidadão comum, uma ilha da elite internacional consolida-se na zona oriental da capital portuguesa.
Os terrenos fizeram parte do património do Banco Espírito Santo (BES) conduzido por Ricardo Salgado, e antes estiveram nas mãos de Luís Filipe Vieira, hoje ex-Presidente do Sport Lisboa Benfica, que os batizou como “o melhor património imobiliário de Lisboa”. Apesar deste imobiliário ter estado à margem do que se tem passado no país, serve-nos de janela para entender a economia-política portuguesa ao longo de três décadas.
NOVA LISBOA, VELHOS TERRENOS
Tornou-se um lugar comum afirmar que Portugal é um país incapaz de mobilizar grandes investimentos internamente, necessitando de fundos externos. Histórias como a do BES e do empreendimento do Cais da Matinha dão-nos pistas para melhor entender este diagnóstico. Os terrenos foram comprados em 2001 por Vieira, ainda em vias de se tornar presidente do Sport Lisboa e Benfica, com dinheiro emprestado pelo BES. Em 2012, tal como boa parte do país, Vieira enfrentava problemas financeiros e o BES apressado em reaver o seu dinheiro toma conta do ativo. Em 2014, dos escombros do BES, surge o Novo Banco, que herda os queridos terrenos, vendendo-os em 2019.
O que cimenta o empreendimento como uma história portuguesa, e bem atual, é o beneficiário final - após intervenções estatais - ser aVIC Properties. Este grupo, que tem o Prata Riverside Village e um outro empreendimento na Comporta (zona de excelência entregue a à elite internacional), é gerido por portugueses mas detido por capitais estrangeiros. Em 2023, passou de proprietários alemães para um trio de empresas com sedes em Londres e em Nova Iorque.
O espaço foi originalmente comprado por Vieira à Galp, ainda a meio do processo de privatização, por cerca de 100 milhões de euros. Com uma crise financeira pelo meio, seriam vendidos 18 anos depois pelo Novo Banco à VIC Properties por 142 milhões de euros. Apesar de uma valorização de 42% poder parecer impressionante, entre 2001 e 2019 os preços do imobiliário em Portugal aumentaram 48%, e certamente muito mais em Lisboa, baseado nos dados existentes desde 2011. A VIC Properties anunciou investir 320 milhões de euros na construção de 127 mil metros quadrados, que estimamos (de forma muitíssimo conservadora) terem hoje um valor de pelo menos 700 milhões de euros.1 O facto de Vieira e do seu financiador terem deixado escorregar os retornos do Cais da Matinha convidam à procura de uma explicação. A crise financeira da década passada é um marco essencial.
O NOVO BES
O Novo Banco em 2014 foi criado como a “parte boa” do colapso do BES, e, até 2022 já tinha recebido cerca de 8,3 mil milhões de euros em fundos públicos, mais de metade do que custa manter o Serviço Nacional de Saúde por ano. O fundo de investimento Lone Star viria a concluir a compra de 75% do Novo Banco, a preço zero. A injeção no banco de “apenas” um milhão de euros foi a contrapartida. Embora o próprio nome do Novo Banco indicasse uma viragem face aos tempos negros da irresponsabilidade do BES, uma peça da jornalista Sílvia Caneco para a Visão mostra o contrário.
Um dos grandes ativos do Novo Banco, a seguradora Tranquilidade, avaliada em 2014 por 700 milhões de euros, foi vendida em 2015 por 44 milhões de euros à gestora de ativos norte-americana Apollo. Apesar de o valor de 700 milhões poder ser considerado exagerado (ainda foi necessário um encaixe de 150 milhões de euros devido à exposição da Tranquilidade ao Grupo Espírito Santo), o fundo Norte-Americano registou uma venda por 600 milhões de euros, após a incorporação da seguradora Açoreana (comprada por 80 milhões de euros). Como também reporta Sílvia Caneco “como se explica que o grupo norte-americano tenha encaixado (...) cerca de três vezes mais só com a venda de 86 imóveis desta companhia de seguros” e “a Apollo vendeu outros edifícios da Tranquilidade (...) encaixando 180 milhões de euros só com a alienação do portefólio imobiliário”. Vendas de outras participações trouxeram ainda mais valias de 152 milhões de euros.
Noutras atividades do próprio Novo Banco, também no ramo imobiliário, assessorado por uma empresa detida pelo próprio Lone Star (o que era proibido), este vende imobiliário “com um valor bruto contabilístico de 487,8 milhões de euros” por 159 milhões de euros. Em outra operação duvidosa, 13 mil imóveis do Novo Banco situados em Portugal e Espanha foram vendidos a um fundo anónimo nas Ilhas Caimão. O próprio Novo Banco foi o financiador da operação e o prejuízo foi coberto pelo Fundo de Resolução. O Fundo de Resolução, onde o Estado assume sucessivamente as perdas bancárias, chegou a ser aludido como objetivo de “saque” por gestores do Novo Banco. A Comissão Diretiva do fundo, e a sua incapacidade em fiscalizar as operações do Novo Banco chegaram a ser destacadas pelo comediante Ricardo Araújo Pereira.
Numa série de auditorias feitas ao Novo Banco pela auditora Delloite (que aconselhou o Novo Banco em várias das vendas), foram detetadas irregularidades como “falhas na análise de créditos do Novo Banco” ou que o “Novo Banco falha na busca de património dos seus devedores”. Numa série de episódios, a venda dos terrenos do Cais da Matinha desenha-se como apenas mais um dia na vida do Novo Banco.
CASO DE POLÍCIA POLÍTICA
O descrito acima sugere que nos foquemos no fenómeno da fraude. No caso de Vieira, os litígios deste devido aos negócios como o BES prolongam-se. Recuperemos ainda o caso de Armando Pereira, outrora um menino bonito da imprensa portuguesa por representar a história de um pobre emigrante português tornado gestor de uma multinacional em França. A detenção do gestor da Altice em 2023, segundo consta, está relacionada com negócios imobiliários, que constituem o património da antiga PT. Conforme reportado, Pereira apostou na “compra abaixo do valor de mercado de sete imóveis da antiga Portugal Telecom (PT) em Lisboa, como o edifício Sapo na Avenida Fontes Pereira de Melo, que terão depois acabado por revender com lucros extraordinários”. A história do imobiliário português, outrora propriedade de empresas públicas, insiste em repetir-se.
Apesar de as vendas danosas serem muitas vezes tratadas como casos de polícia, encará-las apenas como tal omite as dimensões de económicas e políticas em jogo. Longe das suspeitas judiciais do BES e da PT, os rumos da seguradora Fidelidade foram semelhantes, reforçando o caráter económico do fenómeno. A seguradora pública foi privatizada à chinesa Fosun por cerca de mil milhões de euros, em 2014. Em 2018, a Fosun encaixou 425 milhões de euros na venda de mais de 2.000 imóveis em bloco ao fundo Apollo, com a ajuda de um veto presidencial. Não podemos descurar como estes casos se repetem nos escombros dos grandes grupos nacionais, muitos deles outrora parte do tecido empresarial do Estado, com o processo de ajustamento imposto à economia portuguesa na década passada a servir de pedra de toque. É nas políticas de crédito e liquidez, nas condições de austeridade e na condição periférica de Portugal que está a chave para interpretar estes fenómenos.
O episódio do BES pode ser contrastado com o caso mais recente do Credit Suisse. Em 2023, o segundo maior banco helvético encontrava-se à beira da falência numa história com traços em comum com a do BES – um contexto macroeconómico adverso (subidas das taxas de juro), escândalos contabilísticos, apostas em investimentos errados. Durante várias semanas, um cenário do tipo BES desenhava-se no horizonte. Antevia-se que o Saudi National Bank, que já detinha 10% do banco, iria aumentar a sua participação para 40% e assim injetar o capital no Credit Suisse para o tirar do pântano. No entanto, a operação, dado envolver um investidor estrangeiro deter mais de 10% de um banco suíço, foi vetada pelo supervisor financeiro do país.
O resultado final, patrocinado pelas principais instituições do Estado do país, foi o maior banco suíço, o UBS, comprar o Credit Suisse. No que acabou por ser um casamento forçado entre os dois bancos, o Estado também entrou com uma garantia de 9 mil milhões de Francos Suíços e, crucialmente, o Banco Central Suíço ofereceu assistência contabilizada em 100 mil milhões de Francos Suíços. Pelo caminho, muitos dos investidores privados viram os seus interesses frustrados e entraram em processos de litigância.
Num palavreado que é quase proibido em Portugal, e quando utilizado, é à esquerda, Christoph Blocher, um político de direita e bilionário, afirmou “os bancos suíços têm de permanecer na Suíça e manter as suas operações na Suíça”. À semelhança dos acontecimentos em Portugal, este tratou-se de um processo em que o Estado interveio para resgatar negócios privados, muita da gestão do banco nunca foi chamada a responder pelos seus erros, o UBS tornou-se um banco com um peso colossal na nação helvética e o ainda decorre um processo de cortes em que os trabalhadores do banco são colocados na linha da frente. No entanto, ao contrastar com o desastre do BES, o processo parece brilhante. O engordado UBS manteve mão firme nos ativos, evitando que estes fossem entregues a uma entidade parcialmente detida por um Estado estrangeiro. No vazio do Credit Suisse não surgiu um conjunto de personagens duvidosas a vender os ativos em processos que roçam a fraude. Como ainda fica evidente na recente oposição por parte do governo alemão à compra do Commerzbank pelo Italiano Unicredit, a possessão de bancos por atores estrangeiros não é um assunto despolitizado, sujeito a meros critérios técnicos.
MÃOS NACIONAIS
No Portugal do virar do século, as "mãos nacionais" ainda eram consideradas uma mais valia. António Champalimaud, invocou esse argumento para ver-lhe facilitada a posse do então privatizado Banco Totta & Açores. Apesar de hipocritamente o próprio Champalimaud acabar por vender o banco ao espanhol Santander, o processo reflete outros tempos em que “centros de decisão nacional” eram um tema de debate.
Os episódios de negócios desastrosos aqui relatados, e aqueles que ficam por contar mostram uma tendência portuguesa nas últimas décadas: a sucessiva alienação de empresas e de património nacional a investidores estrangeiros. Num processo que por vezes conta com a passividade dos agentes políticos, outras vezes com o seu aval, a vontade de reter os ativos em “mãos nacionais” perdeu-se e as vendas a saldo passaram a ser encaradas como uma inevitabilidade.
Na última década, o imobiliário é a figura principal do processo. De um lado, empresas como a PT e o BES, se ainda existissem, seriam provavelmente tão valiosas como dentro dos grupos económicos dos quais hoje fazem parte. Já o imobiliário vale, sem sombra de dúvida, tremendamente mais do que na altura das suas vendas ao desbarato. Mesmo sem criticar as limitações da economia portuguesa, inclinado no turismo e no imobiliário da sua capital, as rondas de alienação dos ativos a preço saldo seriam desastrosas. A posição do tecido económico nacional tornou-se raquítica ao ponto de cada vez mais delegar grande parte dos ganhos em território nacional a investidores estrangeiros. Os verdadeiros vencedores deste modelo de desenvolvimento estão cada vez mais além fronteiras.
UMA HISTÓRIA DE SOBERANIA
No caso do Cais da Matinha, a passagem da propriedade para Vieira e depois para o Novo Banco coincide com a crise económica sentida em Portugal. Esta primeira venda pode ser explicada pela “falta de dinheiro” do país em crise. A segunda, à VIC Properties, levanta a questão da gestão danosa (ou mesmo criminosa). É a noção de soberania que traça um elo de ligação.
No início da última década, enquanto a crise das dívidas soberanas ganhava forma na Grécia e se falava de um contágio à dívida portuguesa, não estava em jogo descobrir se a quantidade de dívida pública do nosso Estado (em linha com a média europeia) fosse maior do que a apresentada oficialmente (como no caso grego). Para os investidores, a questão que se colocava era a de perceber se as garantias que o Banco Central Europeu (BCE) assegurava (em teoria) para as dívidas dos países da Zona Euro se aplicavam aos países periféricos do Sul da Europa. Cada acontecimento na Grécia foi provando que a resposta era não.
Foi-se tornando claro que o Estado português não disponha das garantias vitais, e, poucos meses depois, a Troika e a sua austeridade aterraram em Portugal. Foi a falta de soberania sobre a política monetária que ditou que só se voltaria a desfrutar das garantias do BCE depois de cumprir as reformas ditadas pela Troika – tanto as orçamentais como as “estruturais”, onde entram as privatizações. Mesmo sem serem intervencionadas, Espanha e Itália foram mantidas com uma trela curta, conduzindo internamente as suas versões mais brandas do processo de ajustamento. Mário Monti formava um governo tecnocrático em Roma e as exigências sobre Madrid iam sendo moderadas sob a ameaça do novo partido à esquerda, o Podemos, criar uma onda de choque política pela Europa.
Embora o discurso de “fazer tudo o que for necessário” de Mário Draghi, em meados de 2012, represente um ponto de viragem, a tutela sobre a economia portuguesa arrastou-se ao longo dos anos de governação de António Costa e não parece estar para partir. A continuidade dos programas de compra dívida portuguesa por parte do BCE, mantendo a liquidez em território nacional, como em qualquer país com uma economia desenvolvida, passaram, desde então, a depender do comportamento do “bom aluno”. Um cenário como o da Grécia no ano 2015, em que o Banco Central Europeu congelou o mercado interbancário para sufocar o Syriza, passou a pairar sobre a periferia europeia. Mesmo depois da capitulação do partido liderado por Alexis Tsipras face às exigências de Bruxelas, a nação helénica passou anos sem beneficiar dos programas de compras de dívida do BCE (usando como critério oficial de exclusão a cotação das agências privadas de rating), reforçando o caráter político da provisão de liquidez.
Como demonstrado pelo historiador económico Adam Tooze em Crashed e Shutdown, as intervenções dos Bancos Centrais (em especial da Reserva Federal dos Estados Unidos da América) e dos governos, foram essenciais durante a Grande Crise Financeira e a pandemia. A manutenção da liquidez, assegurando que ativos financeiros como empréstimos encontrariam sempre um comprador, mantiveram os mercados a funcionar. Ao abdicar da soberania com a inclusão na Zona Euro, Portugal encurtou a capacidade de gerar a liquidez que mantém o mercado em funcionamento – o poder saiu de Lisboa para Frankfurt. Enquanto as discussões sobre o impacto da moeda única em Portugal tendem a cingir-se à possibilidade ou não de conseguir influenciar o comércio internacional através da taxa de câmbio, o controlo da liquidez em tempos de incerteza mostram que há muito mais por dizer.
Durante o governo de Pedro Passos Coelho, as vendas de ativos como a Fidelidade, a EDP e a REN, não precisaram de qualquer mão criminosa para acontecerem ao desbarato e a investidores estrangeiros. Por um lado, a liquidez era negada ao Estado português, tornando as vendas importantes para cobrir as necessidades de financiamento. Por outro, a falta de liquidez do Estado português estendia-se aos agentes económicos nacionais (afinal, foi o próprio Estado a usar fundos da Troika para financiar a banca), tornando os investidores internacionais, cujo acesso a fundos nunca foi seriamente negado, o destino do património vendido. Além do dinheiro, as privatizações exigidas pela Troika também tinham a sua dimensão política – o seu cumprimento aproximava Portugal da boa vontade do BCE (parte da Troika), e logo das suas garantias. Face a estes constrangimentos, a agenda dos governos PSD-CDS selaram o destino das empresas públicas.
O VALOR DE PODER ESPERAR
Quando anos mais tarde lamentava a venda do terreno do Cais da Matinha, Vieira referia que “vão fazer o preço que quiserem”. O entretanto detido presidente do Benfica detinha o melhor terreno de Lisboa mas faltava-lhe o tempo para conseguir cobrar o tão desejado preço. A ansiedade dos sucessivos credores por receber o dinheiro devido conduziu o terreno premiado até às mãos dos que tinham o privilégio do tempo do seu lado – por outras palavras, a liquidez para evitar que a espera não cause a ansiedade nos seus credores.
Vieira poderia ser um empresário com práticas duvidosas, mas foi o cenário macroeconómico português que empurrou a propriedade dos terrenos do Cais da Matinha para cada vez mais longe das mãos nacionais. Como este episódio mostra, uma venda de emergência por falta de liquidez tem grandes paralelos com os mecanismos de expropriações: o detentor da propriedade acaba por ser forçado a consentir uma venda a um baixo preço num período indesejado.
Aos olhos de Ricardo Salgado o seu problema era o mesmo. Para manter o GES à tona, este só precisaria de aguentar mais tempo. Afinal, se arrastarmos as premissas da liquidez ao extremo, os prejuízos podem ser irrelevantes – basta termos a liquidez para atravessar o tempo que demora até obter os lucros que coloquem a operação no verde.
O BES tornou-se uma máquina de absorver liquidez. A liquidez das empresas na esfera do grupo, como a PT e a Tranquilidade, foi transformada em empréstimos que ficaram por pagar. O mesmo se passou com os subscritores do papel comercial de má fama. Quando o tempo apanhou as atividades de Salgado, este virou-se para os Estados português (através da Caixa Geral de Depósitos) e angolano. Salgado procurava uma solução parecida com a que foi encontrada, anos mais tarde, para o Credit Suisse, em que a procura pelas “mãos nacionais” mantivesse o clã Espírito Santo no comando. Ao posicionar-se como a barreira face à entrega de ativos nacionais a investidores estrangeiros, o então “Dono Disto Tudo” tinha esperanças em ver o Estado português fazer uso da sua soberania, ainda que limitada, para assegurar a liquidez de que precisava.
Tal como as vendas de ativos ao desbarato não necessitavam de uma conspiração para acontecer, o Estado português continuar a apoiar o GES também não. Embora Pedro Nuno Santos tenha sido quem popularizou usar a bomba atómica para fazer face aos credores alemães, Salgado foi quem colocou a teoria em prática. As tragédias que se seguiram no Novo Banco podem não ter sido antevistas pela intelligentsia nacional, mas devemos considerar Salgado melhor conhecedor das ligações entre o poder e a finança. O presidente do BES tinha noção de que a implosão do banco e do grupo familiar traria graves consequências à economia portuguesa, pelo que não hesitou utilizar esse impacto como arma de chantagem para procurar mais apoio do Estado português, na altura dirigido por um Presidente e um primeiro-ministro de direita.
Quando à direita se fala do legado de Passos Coelho, os momentos decisivos em que deixou Salgado cair são vendidos como a sua hora mais gloriosa. Depois de anos de Salgado a prejudicar investidores e a dominar a economia, por fim alguém teria feito peito ao líder do clã Espírito Santo. Aqui os admiradores deste antigo líder do PSD esquecem-se do conceito de soberania.
OS NOVOS DONOS DISTO TUDO
Apesar dos receios iniciais, o colapso do BES não levou a uma recessão em 2014. Foi nos efeitos de médio prazo que a bomba atómica de Salgado fez estragos. O processo de desBESificar o país onde “quem mandava mesmo (...) era o BES” afastou a família de Ricardo Salgado mas deixou um vazio de poder. Com os agentes nacionais descapitalizados e com um acesso restrito à liquidez, foram os fundos de investimento internacional que ocuparam o poder.
Tal como nas privatizações, a linha ideológica do governo de Passos Coelho estava alinhada com a abdicação da soberania, em favor das “leis de mercado”. A privatização entreguista da TAP nos últimos suspiros do seu segundo curto governo no final de 2015 sintetiza este espírito. Ricardo Salgado representava tudo o de mal que o país teria para oferecer, e isso bastou para desconsiderar todo o tecido empresarial que este liderou. As possibilidades em que o Estado tomaria conta do BES sem o clã Espírito Santo mal entraram no discurso publicado, cingindo-se a quem estava à esquerda do PS. No caso dos socialistas, passaram a gerir um equilíbrio estreito entre condenar com timidez a destruição do BES sem se associarem à gestão danosa de Salgado.
Apesar do delicado espaço de manobra, a escolha foi não usar a liquidez que o Estado tinha para ocupar vácuo, quer através da Caixa Geral de Depósitos, quer através do próprio Estado, com o fundo de resolução a falhar sistemáticamente no controlo ao Novo Banco. As sucessivas chamadas do poder público a intervir para conter a sangria do Novo Banco mostram que abdicar da soberania saiu caro aos portugueses. Os custos financeiros do resgate ficaram, e as perdas de longo-prazo que poderiam ter sido prevenidas também. Os custos com a banca tornaram-se inevitáveis em 2014, mas a destruição e a transferência de soberania do tecido económico não o eram.
A opção de o Estado ocupar um vazio de poder não seria uma novidade para a burguesia nacional. No livro A Banca ao Serviço do Povo, o historiador Ricardo Noronha resgatou as colunas de opinião de Fernando Ulrich (mais conhecido por ter sido gestor do BPI, então comentador de economia do semanário Expresso) para mostrar uma mudança de posição face ao domínio dos privados na economia nacional, após a intentona de Spínola em março de 1975. Para Ulrich, o ambiente de “pânico na burguesia portuguesa” criava a situação em que “o Estado se pode ver obrigado, por motivos não só políticos mas, agora também, técnicos, a aumentar substancialmente a sua intervenção directa na actividade produtiva nacional”. Apesar das diferenças entre o PREC e o colapso do BES serem gritantes, a argumentação de Ulrich, bastante pragmática, traz ao de cima caminhos alternativos na hora do colapso do BES. Ulrich entende perfeitamente que a mão pesada do Estado em momentos de crise pode estar mais próxima de manter a ordem burguesa vigente, do que de uma virada rumo ao socialismo.
Mesmo uma opção intermédia, à semelhança do Banif – onde, já sob um Governo de António Costa, o Banco foi entregue ao Santander – não foi colocada em cima da mesa. Nem “mãos nacionais”, nem um mal menor de um banco espanhol. Os despojos do GES ficaram nas mãos dos piores investidores que o capitalismo tem para oferecer. A deriva em que várias empresas chave foram deixadas, acabando engolidas por grupos internacionais, mostram um dano irrecuperável para o país. No final, para o centrão político, há uma linha vermelha que impede o Setor Público de preencher o espaço que os capitalistas portugueses se mostram incapazes de ocupar. O país sofreu uma reforma estrutural silenciosa, e os novos empreendimentos de luxo nos terrenos da “melhor fatia do mercado de Lisboa” são um monumento a esta tragédia nacional.
Aplicando um valor de 5.498 €/m2, valor médio da freguesia do Parque das Nações (Idealista, Setembro 2024). Cerca de 92.618 m2 vão ser destinados a habitação (valor estimado de 509 milhões de euros), os restantes são para uso terciário (19.928 m2, 16%) e uso turístico (15.000 m2, 12%) - a que aplicamos o mesmo valor por metro quadrado dado a falta de dados para este tipo de uso. Estas são estimativas bastantes conservadoras visto tratar-se de habitação nova, frente rio, para um segmento alto.
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