Moedas e Musk mostram como a promessa de disrupção tecnológica pode ser uma forma de sabotagem política
A narrativa de que o desenvolvimento tecnológico vai substituir a provisão de bens públicos têm décadas. O seu histórico mostra que é uma mera tática para atrasar o planeamento estratégico do Estado.
No relativamente monótono Web Summit deste ano, Carlos Moedas (presidente da câmara municipal de Lisboa) entrou no palco com um pedido para os tecno-empreendedores da plateia: resolvam os problemas estruturais da sociedade, como a crise habitacional e a crise climática.
Ao sinalizar uma direção remotamente política para o desenvolvimento tecnológico,o apelo do ex-comissário europeu responsável pela investigação, inovação e ciência pode recolher alguma simpatia.. Contudo, esta abordagem tecno-solucionista, que entrega o volante da resolução de problemas políticos a empreendedores (supostamente disruptivos), como Elon Musk, tem um legado catastrófico.
O TECNOFIX COMO ESTRATÉGIA DE BLOQUEIO POLÍTICO
A mobilidade urbana é um excelente exemplo dos riscos de cair na promessa da inovação tecnológica disruptiva ao virar da esquina. Recorrentemente, surge a ideia que uma nova inovação no transporte individual irá tornar o transporte público obsoleto e desnecessário. Esse argumento, de forma explícita ou implícita, defende que é melhor abandonar grandes investimentos públicos em infraestruturas, pois tornar-se-ão elefantes brancos em poucos anos.
Nos dias de hoje, Elon Musk, o principal porta-voz do Capital Rodoviário movido a lítio, é o personagem mais vocal desta narrativa. O bilionário sul-africano promete acabar com os problemas de trânsito das cidades com uma espécie de metro para carros. A proposta de Musk é simplesmente uma variante bastante cara da teoria repetidamente falhada de que construir mais faixas rodoviárias acabará com o trânsito. Musk apenas introduz uma roupagem moderna.
Mas porque Musk insiste em algo comprovadamente ineficaz? Não precisamos de especular sobre as suas intenções. O bilionário admitiu ao seu biógrafo que o hyperloop - projeto que prometia uma rápida revolução na mobilidade - era uma mera tática para bloquear o desenvolvimento de uma ferrovia de alta velocidade no Estado da Califórnia, sem qualquer real objetivo de ser implementado. Bloquear o desenvolvimento de uma linha de alta velocidade é uma forma descarada de reduzir a concorrência aos seus carros elétricos.
Por mais que Musk goste de imaginar como um grande inventor, a sua táctica não é de todo original. Basta olhar para a história da British Rail, antiga empresa pública de comboios britânica. Nos anos 60, os representantes do Capital Rodoviário britânico - um setor emergente dessa época, tal como os carros elétricos hoje - apresentavam planos para converter as linhas de comboios em autoestradas, que seriam usadas por autocarros em alta velocidade. Uma lógica semelhante ao metro para carros, de Musk. Ambos os projectos nunca tiveram qualquer viabilidade, na melhor das hipóteses iriam gastar somas astronómicas para replicar o transporte público já faz.
Este tipo de proposta nunca teve o objetivo de solucionar os desafios coletivos da mobilidade e ambientais. As promessas de que a disrupção tecnológica irá magicamente superar as limitações inerentes do transporte individual tem um objectivo claro: sabotar o debate público, atrasar qualquer tipo de ação política, e consequentemente deslegitimar o setor público, protegendo a rentabilidade da indústria automóvel. Ao atrasar, ou mesmo bloquear, quaisquer melhorias na mobilidade, este tipo de tática promove uma contínua segregação social característica de áreas com menos transportes públicos.
As últimas eleições autárquicas mostram esta tática no debate público português. No eterno debate sobre o futuro do aeroporto de Lisboa, Bruno Horta Soares - candidato da Iniciativa Liberal (IL) a presidente da câmara de Lisboa - desvalorizou o sentido de urgência de todos os outros candidatos, com um argumentário baseado em eventuais disrupções tecnológicas num futuro próximo. Bruno Horta Soares falou da possibilidade de termos aviões solares em 15 anos, e talvez mesmo aviões silenciosos, o que acabaria com os problemas de poluição (do ar e sonoro) associados a ter um aeroporto no coração da cidade. Além de ser uma projeção baseada em nada (João Ferreira corretamente apontou que nem a indústria faz esse tipo de previsão), o candidato liberal vive num mundo em que todos os aviões atuais se tornarão imediatamente obsoletos, sem qualquer tipo de oposição política. No fundo, esta é apenas mais uma das faces do negacionismo climático de mercado característico desta força política.
Um outro liberal, deputado municipal em Oeiras, trouxe o tecno-solucionismo para a crise da habitação. Segundo este deputado municipal, os carros autónomos irão resolver a crise habitacional porque vão tornar a vida dentro dos centros urbanos desnecessária.
Neste tipo de propostas, o truque vai além de propor algo inexequível como solução para um problema. Mesmo no mundo mágico onde essa solução fosse implementada, o problema nem sequer seria resolvido. Um entrelaçar de falácias protege a argumentação.
Convenientemente, o bitaite do deputado municipal da IL ignora por completo os efeitos negativos que tal invenção teria (se fosse realista, que não é) no mercado imobiliário fora das cidades (inflação imobiliária) e no trânsito nos centros urbanos (algo apontando até por figuras com simpatias para com estas teses de disrupção).
Além disso, esta tese abre a porta a uma nova forma de precarização da nossa organização no quotidiano. Nas entrelinhas é-nos dito que é aceitável passarmos parte da nossa vida a dormir em carros, entre as nossas camas e locais de trabalho.
Qualquer promessa de resolver problemas estruturais da sociedade através de tecnologias, supostamente neutras do ponto de vista político, é uma mera estratégia deliberada de manter o equilíbrio de poder intocável.
COMO CAMUFLAR A AUSTERIDADE
Infelizmente, a falácia do milagre da inovação tecnológica não se ficou no ideário de Elon Musk e dos deputados municipais da IL. Esta está a espalhar-se para dentro da própria intervenção do Estado portugues, pelo menos no domínio da mobilidade.
Em vez de ser usada para substituir explicitamente o transporte público pelo privado, esta narrativa passou a ser uma forma propagandística de disfarçar o subinvestimento público. O caso mais emblemático foi a recente vaga de promessas em torno dos Metrobus movidos a hidrogénio, ou eletricidade.
Este modo de transporte público, geralmente conhecido como BRT, foi desenvolvido na década de 70 na cidade brasileira de Curitiba. O modelo tornou-se uma referência e foi replicado por várias cidades do sul global, como Bogotá, Jacarta ou Lagos. O principal motivo pelo qual as cidades optaram por este sistema, em detrimento da ferrovia, é essencialmente orçamental. A ferrovia requer altos níveis de investimento inicial, que são amortizados ao longo do tempo através de menores custos operacionais (p.ex: condutores e combustíveis); o modelo do BRT reduz as necessidades de investimento inicial.
Na falta de capital para para arrancar com a construção de metros e comboios, o BRT surge como a alternativa low cost, mas só no curto prazo. Portugal não é excepção. A linha de comboio entre Lousã e Coimbra foi fechada em 2010, numa velha promessa de ser substituída por um metro de superfície. Mais de uma década depois, o Metro Mondego ainda não está operacional e perdeu os carris no processo. Talvez seja para mascarar este rebaixamento que o Estado português tenha adotado pelo nome Metrobus, em vez de BRT. Com o PRR, a ideia do Metrobus espalhou-se para o Porto, Gaia, Leiria, Faro, Braga e Guimarães.
Cidades mundo afora mostram que o Metrobus pode ser uma solução de mobilidade eficaz, mas o foco excessivo em aspetos como o uso de hidrogénio é uma tática de distração. Um bom sistema de Metrobus depende, acima de tudo, da qualidade infraestrutura existente (corredores exclusivos, prioridade na sinalização em cruzamentos, etc) e da sua capacidade operacional (autocarros e condutores na rede). O hidrogénio surge para dar uma fachada futurista e ambiental a um conjunto de projetos pouco ambiciosos, tentando que não se fale dos aspetos estruturais que definem a qualidade do investimento público. Para piorar a situação, o hidrogénio não é necessariamente verde, nem financeiramente competitivo para ser utilizado neste tipo de transporte.
Os potenciais limites de um bom sistema de Metrobus em Portugal dificilmente se baseiam em aspectos como os combustíveis utilizados. Num país com uma enorme capacidade rodoviária instalada, mais depressa o modelo de gestão das autoestradas será um constrangimento.
Durante décadas, Portugal construiu milhares de quilómetros de autoestrada e entregou rendas do Estado ao Grupo Mello (via Brisa) através de concessões, que posteriormente vendeu a sua posição ao capital estrangeiro. Dentro destas limitações políticas autoimpostas, o Estado tem a sua margem de manobra limitada, dificultando o alocar dos lucros das autoestradas para a rede de transportes públicos; e para reorganizar as autoestradas de forma a acomodar sistemas de transportes públicos (faixas exclusivas em zonas congestionadas). Sistemas de Metrobus eficazes mais depressa dependem de novo modelo de gestão rodoviário, do que do tipo de combustível dos autocarros.
GUIAR OU SER GUIADO?
A inovação tecnológica é naturalmente parte da resposta a desafios colectivos como a mobilidade ou crise climática. No entanto, em vez de se pedinchar por disrupções tecnológicas que resolvam problemas políticos, o poder político tem a capacidade de usar o seu peso institucional para guiar o capital privado, academia e o setor empresarial do estado. Carlos Moedas sabe perfeitamente disso. Enquanto comissário europeu, Moedas foi responsável político do Horizon Europe (95 mil milhões de Euros) e colaborou com figuras como Mariana Mazzucato.
Este tipo de boa prática tem séculos. Em 1795, Napoleão Bonaparte criou anunciou um prémio para quem inventasse um método de preservar comida, com o objetivo de melhorar a logística militar; 15 anos depois o prémio foi ganho com a técnica de preservar comida em jarros de vidro que todos conhecemos. Variações dessa política são usadas por instituições como a DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency) e Bernie Sanders sugeriu substituir o modelo de patentes médicas por prémios de inovação médica.
As compras públicas são outra forma de sinalizar procura por inovações que contribuam para a resolução de desafios políticos. O poder municipal de Coventry lançou o desafio a parceiros locais (privados e academia) de se criar um sistema de metro ligeiro de implementação low cost. O governo local conjugou financiamentos diretos com a promessa de implementar o sistema na cidade, o que simultaneamente cria procura via compras do Estado e uma vitrine para exportação da tecnologia para outras cidades do mundo. Assim, as encomendas do Estado (central ou local) permitem arrancar os investimentos necessários para a inovação.
Seja Musk, deputados municipais, autarcas, ou secretários de Estado, há que suspeitar de quem nos promete resolver problemas estruturais de décadas com uma nova inovação ao virar da esquina, com um planeamento de Estado mínimo, e embrulhadas num nome estrangeiro.
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