A Fachada Urbanistica do Alojamento Local
Quando conversam entre si, os mais ricos falam em como só agora “toda a gente” quer saber dos centros das cidades. Como de costume, esse “toda a gente” resume-se à sua bolha.
Antes do surgimento do Alojamento Local, os centros históricos de Lisboa e do Porto eram buracos negros urbanos. Ou, pelo menos, é o que os defensores do Alojamento Local (AL) têm vindo a propagar.
Segundo reza a lenda, as ratazanas proliferavam, os edifícios estavam em ruínas, droga era consumida em cada escada, uma esquina tinha o potencial de revelar um assalto e, acima de tudo, ninguém queria visitar ou morar nos centros históricos. O AL chegou, e o que anteriormente eram ruínas passaram a ser imóveis de luxo.
Como já dito aqui no caso específico da emigração, o discurso à direita vai sendo baseado na experiência pessoal da sua bolha, ignorando o contexto geral da sociedade.
No caso de Lisboa, o destaque vai para zonas como Alfama, Pena, Arroios e Graça que vão sendo absorvidas pelo AL e empreendimentos de luxo. Antes dos anos 2000, altura em que os mais ricos se lembraram que estas zonas existem, elas foram a casa de muita gente entretanto despejada, as habitações temporárias de estudantes, a sede de muitos espaços associativos e o local de muitos “tascos” onde as elites jamais colocaram os pés.
Enquanto as elites se entretiveram com novas zonas de luxo como Telheiras, Parque das Nações ou vários empreendimentos nas linhas de Cascais e Sintra, coube aos mais pobres preencher os espaços negligenciados pela classe dominante. Atestado disso é hoje o shopping do Martim Moniz, onde imigrantes fixaram lojas destinadas aos produtos das suas origens.
O AL DESPEJOU
Um dos pilares do neoliberalismo é a noção de que negócios privados (AL), quando deixados operar livremente, trazem prosperidade geral (reabilitação dos centros das cidades). Regra geral, isto é falso, e o caso do AL em Portugal não é excepção.
O soundbite de “O AL não despejou, reabilitou” é o novo meme daqueles que defendem um vale-tudo no mercado imobiliário. Este poderá ser credível para alguns, mas não para aqueles que sofrem na pele as consequências da escalada dos preços das rendas. Podemos confirmar que o AL afetou imóveis anteriormente usados para a habitação, olhando para os dados por freguesias e os totais de habitações e população, como foi feito por Nuno Serra dos Ladrões de Bicicletas, já aqui citado.
Não só as freguesias em que o AL ganhou mais espaço foram aquelas que perderam mais população, como também o número de alojamentos residenciais diminuiu enquanto o número total de casas aumentou. Ou seja, habitações que antes eram utilizadas para residentes passaram para o AL, uma transferência operacionalizada pelos despejos.
Na falta de dados, em contra-facto com as provas de que o AL não se limitou a ocupar imóveis inabitados, os argumentos a favor do AL refugiaram-se na partilha de fotos.
TODA A GENTE NO CHIADO
A falta de argumentos também leva a desconversar, e no caso da habitação o debate é caricaturizado como uma aspiração global a morar nos centros. Quem reclama por melhores condições para habitação é infantilizado, alguém cuja única aspiração é poder morar num prédio moderno em Lisboa com vista para o rio Tejo e a 10 minutos a pé da baixa.
Para aqueles como Ricardo Costa, diretor do Expresso, é esquecido que o aumento das rendas e preços é geral e não se resume nem às zonas históricas, nem a Lisboa e ao Porto. Como os preços a nível nacional indicam, a utilização massiva de espaço urbano para AL e empreendimentos de luxo contamina todo o mercado habitacional, mesmo que um imóvel em particular nunca venha a ser colocado no AL.
Vendo por exemplo, a subida dos preços numa zona turística, digamos a Lapa. Alguém que anteriormente alugava aqui casa vai-se ver incapaz de pagar as novas rendas, e procurará uma zona mais barata, digamos Sete Rios. Depois do primeiro inquilino chegar a Sete Rios, empurrará para cima os preços nesta zona, forçando um segundo inquilino que moraria em Sete Rios a procurar habitação num local mais barato, digamos no Cacém, fazendo subir os preços dessa zona, e assim sucessivamente. Se generalizarmos o argumento para todo o país, podemos ligar a subida do preço das casas em Pombal com o AL de Alfama.
Adicionalmente, com um argumento semelhante ao apresentado por Isabella Weber num artigo recente, as expectativas de uma subida de preços generalizada incentivam os senhorios a subir as rendas. Tendo a segurança de que outros senhorios também irão subir os preços, o risco do seu aumento tornar o preço demasiado alto para qualquer inquilino é reduzido. Assim, mesmo removendo o fator que despoletou a escalada de preços - AL e compradores estrangeiros - a dinâmica de mercado potencia um ciclo vicioso, podendo perpetuar a subida das rendas.
REABILITAR O ESPAÇO URBANO
O discurso a favor do AL aproveita-se de uma verdade: o espaço urbano de cidades como Lisboa e Porto foi reabilitado nos últimos anos.
O caso emblemático foi a deslocação de António Costa, então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, para a praça do Intendente em 2011. Como várias zonas outrora associadas à droga e à prostituição, e agora consideradas apeticiveis, o Intendente foi destino de investimento público.
O caso do Intendente não é apenas notável pela deslocação de António Costa. Este espaço seguiu o ciclo característico da reabilitação urbana. Espaço degradado que, depois de ser alvo de políticas públicas, passa a ser um espaço acessível a cidadãos comuns. Depois destes normalizarem o espaço e o tornarem cool, é invadido por AL e empreendimentos de luxo, sendo por fim afastados pelos novos preços imobiliários. Com o ciclo completo, o AL reclama o triunfo por um processo em que é o último a chegar, beneficiando de dinheiros públicos e escorraçando o cidadão comum.
Seguindo o modus operandi neoliberal, o investimento público para favorecer negócios privados foi acompanhado pela liberalização do mercado e por um conjunto de isenções fiscais. A liberalização, foi pela “Lei Cristas”, também conhecida como a lei dos despejos. Aprovada durante os anos de austeridade PSD-CDS e acomodada pelos governos PS, esta foi a peça chave na abertura de espaço para o AL. Nas isenções fiscais, a nível nacional o IVA foi reduzido para 6% em obras de reabilitação. Este aprovado em 2009, viu agora o critério do que constitui uma reabilitação revisto. A nível local, no caso de Lisboa, as isenções incidiram sobre vários impostos e taxas: IMI, IMT, IRS, Imposto de mais Valias, Imposto Predial, isenções de IRC para fundos de investimento imobiliário e a isenção de várias taxas. Complicado seria encontrar um imposto que não tenha uma isenção em obras de reabilitação.
Além do investimento por si só, houve também uma reorganização do espaço no centro das cidades. Uma das políticas promovidas que na altura valorizou as zonas nobres foi a retirada de veículos individuais, um tipo de medida agora travada por Carlos Moedas, atual presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o presidente que acarinha manifestações pelo AL (enquanto para os que pedem uma mudança da política habitacional, sobram as intenções).
Assim, não só os fãs do AL reclamam o crédito por uma política pública da qual se tornaram os principais beneficiários, como também a criticam na hora de a expandir.
Nos últimos anos, além de fazerem disparar os preços da habitação, os empresários do AL foram os principais beneficiários da política de investimento público nas cidades, de uma lei de despejos feita à sua medida e um conjunto de isenções. Como se não bastasse, chamaram a si a autoria dessas políticas, atribuindo ao AL a autoria da regeneração urbana.
Face às pressões para travar a escalada dos preços da habitação, a classe dominante formou um discurso baseado na sua própria ideologia solipsista. Para esta, as aspirações habitacionais das pessoas comuns resumem-se em querer preços baixos para morar nas zonas nobres; e o centro das cidades só pode ser definido de duas formas: uma ruína por onde ninguém passa, ou um espaço onde todos querem estar, mas apenas para o usufruto da sua casta privilegiada.
As experiências do cidadão comum que outrora habitou o centro da cidade é ignorada, tal como agora as aspirações de não ver um salário já baixo devorado pelas rendas é alvo de chacota por muita da intelligentsia à direita.
Quando conversam entre si, os mais ricos falam em como agora “toda a gente” quer saber dos centros das cidades. Como de costume, esse “toda a gente” resume-se à sua bolha. Os centros urbanos vão perdendo habitantes, mas para quem presta atenção apenas ao seu círculo de privilégio, a cidade tem mais gente ou, pelo menos, mais gente da sua bolha - ricos, bem formados e cosmopolitas.
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