Brexit e Liz Truss têm as costas demasiado largas
O iminente colapso dos Conservadores é mais que uma derrota eleitoral: é o fim de um partido que se foi confundido com o Estado. O que não será automaticamente substituído por algo progressista.
Taylor Swift, numa estratégia de relações públicas que provavelmente tenta tirar o foco na sua pegada carbónica, fez generosas doações para bancos alimentares num dos países onde está a fazer a sua digressão. Tipicamente, estamos habituados a famosos fazerem este tipo de filantropia a favor de países subdesenvolvidos. Neste caso, estamos a falar do Reino Unido, que não é subdesenvolvido e hoje vai a eleições.
Tudo indica que o Partido Conservador de Rishi Sunak vai ser humilhado nas urnas, após catorze anos, cinco eleições e cinco primeiros ministros. O Brexit (implementado em Janeiro de 2020) e o trágico governo de 49 dias de Liz Truss são frequentemente apontados como os motivos pelos quais este partido, que ganhou uma eleição de forma esmagadora há menos de cinco anos, vive uma crise existencial.
É inegável que o executivo Truss e o seu choque fiscal falhado tenham tornado quase certo que Keir Starmer, líder trabalhista muito pouco popular e sem carisma, se torne primeiro-ministro. Dito isso, o colapso (e não uma mera derrota eleitoral) dos Conservadores, partido dominante da política britânica durante quase dois séculos, não se pode cingir apenas a esses dois fatores.
O modelo económico Britânico, e a sua base social de apoio, construída no período Thatcher, aparenta ter chegado a sua total exaustão. O período de policrise em que nos encontramos – em que pandemia, instabilidade geopolítica, alterações climáticas colidem – apenas colocou a olho nu todas as fragilidades do país berço da revolução industrial.
O EMPOBRECIMENTO FORA DA SUA BASE SOCIAL
O legado económico e social dos Conservadores desde 2010 é trágico, já antes do Brexit e de Liz Truss. Esta é uma constatação que pode ser surpreendente para o público português, habituado a ver familiares e conhecidos a emigrar para o Reino Unido, especialmente para fugir ao desemprego nos duros anos da Troika.
No pós-crise financeira, a economia Britânica não mergulhou numa recessão com altíssimos níveis de desemprego como o sul da Europa, mas o seu modelo de crescimento foi caracterizado pela total estagnação salarial e cortes de direitos sociais, combinados com uma aceleração da crise habitacional e a falência de vários serviços públicos.
Os salários ajustados à inflação (salários reais) estão em linha com aqueles pagos em 2008. Ou seja, após uma década difícil, o trabalhador médio britânico finalmente atingiu níveis salariais (ajustado ao custo de vida) equivalentes aos auferidos há mais de uma década. Em termos comparativos, o crescimento salarial é inferior ao da maioria dos países desenvolvidos, e mesmo abaixo de Portugal. Mesmo tendo sido uma oportunidade para vários trabalhadores portugueses fugirem da crise, a estagnação britânica prolonga-se.
Em simultâneo, os benefícios sociais para os mais pobres foram cortados e os britânicos passaram a viver uma aguda crise habitacional, comparável com a portuguesa. Para colmatar as crescentes falhas do Estado Social, os bancos alimentares tornaram-se um pilar da sociedade britânica. Praticamente inexistentes até 2008, os bancos alimentares são usados por praticamente 3 milhões de pessoas, muitas delas funcionários públicos. Mesmo com uma economia semelhante à francesa (PIB per capita), estas políticas fazem com que a população mais pobre britânica seja, em média, quase 30% mais pobre que os seus congéneres franceses.
Neste contexto de empobrecimento, os Conservadores alcançavam maiorias eleitorais com uma estratégia que atacava aqueles vistos como eleitores Trabalhistas, enquanto protegia minimamente a sua base social. Segundo Nick Clegg, ex-líder dos Liberais Democratas e antigo parceiro de coligação dos Conservadores, o Partido Conservador era contra construir Habitação Social porque viam o programa como uma máquina de “criar eleitores Trabalhistas”.
Esta dinâmica totalmente transacional, assente numa ideia muito próxima da compra de votos, foi o modo de operar dos Conservadores durante mais de uma década. Apoiados numa base eleitoral mais rica e mais velha - um bloco largamente composto por reformados, senhorios, proprietários e empresários - , os seus governos foram alimentando uma lenta guerra geracional. A austeridade foi sempre mais suave nos departamentos que afetam a sua base social, como é o caso do NHS (serviço nacional de saúde britânico) e bastante pesada no poder local, onde os Trabalhistas mantinham algum poder. Ao contrário dos salários da função pública, as pensões foram totalmente blindadas aos cortes. A suposta margem orçamental foi maioritariamente usada para cortar impostos para as empresas.
A força eleitoral dos Conservadores está tão ligada a este grupo etário que na eleição de 2017, o partido testou a ideia de financiar a rede de lares através des impostos aos utilizadores. A ideia foi imediatamente apelidada de “imposto da demência” e o partido viu-se forçado a descartá-la. A verdade é que nessa eleição Theresa May perdeu a sua maioria e Jeremy Corbyn ficou muito próximo da vitória, com o melhor resultado trabalhista desde 2005.
Este equilíbrio funcionou num ambiente de taxas de juro próximas de zero, facilitando a vida a empresários e proprietários através do crédito barato, e em que o rápido aumento dos preços da habitação valorizava as propriedades de uma parte da sua base eleitoral.
O COLAPSO DO THATCHERISMO NA POLICRISE
Se na última década os Conservadores conseguiram manter-se no poder gerindo os interesses da sua base eleitoral num ambiente de estagnação, os mais recentes choques como a pandemia, o choque energético e a subida das taxas de juro foram demasiado bruscos para manter essa fórmula, abrindo as feridas do modelo económico britânico adoptado no final década de 1970.
A pandemia causou danos ao serviço de saúde, sentidos em particular pelos mais velhos. A rápida subida das taxas de juros tornou o pagamento da dívida uma série de dificuldades para uma parte dos pequeno-médio empresários e proprietários que se viam como parte das classes mais confortáveis da sociedade Britânica. O atual modelo de organização económica e social do Reino Unido é uma continuação daquilo que podemos chamar de Thatcherismo. De forma sucinta, o seu governo de direita radical e populista – a ideia de população versus Estado, em que a Iniciativa Liberal se inspirou – teve como ancora estratégica consolidar Londres um centro da alta finança global; a privatização de serviços básicos como água, comboios e energia; a abolição do poder local a nível metropolitano (dominado pela esquerda); o corte de serviços e de prestações sociais; as baixas de impostos e a desregulação de mercados e do Trabalho.
Entre Thatcher e a crise financeira, a desigualdade inerente e a fragilidade deste novo modelo foram camufladas pelo forte crescimento económico (alavancado no sistema financeiro), a venda subsidiada de milhões de casas públicas para os seus inquilinos (por parte de Margaret Thatcher), crédito barato e a redistribuição de uma pequena parte das mais valias financeiras (nos governos Trabalhistas de Blair e Brown).
Após a bebedeira da especulação financeira, veio a ressaca e a conta a pagar. A agenda de mercados livres com baixos impostos nunca se materializou em mais investimento, sendo o Reino Unido um dos países cronicamente com um dos menores níveis de investimento, tanto público como privado. A falta de investimento público durante décadas compromete o funcionamento do Estado, com centenas de escolas literalmente em risco de colapso. Ao mesmo tempo, várias autarquias declaram falência e tomam medidas de austeridade drásticas como racionar a iluminação pública.
Ao contrário da ideologia dominante, os serviços essenciais privatizados não viram a eficiência aumentar de forma mágica. Desde 1992, três anos depois da privatização das águas, que não foi construído nenhum novo reservatório, apesar da rede ter de suportar nove milhões de usuários extra. A falta de investimento foi criando graves pressões na disponibilidade de água, uma espécie de seca autoimposta. Além disso, as empresas recorrem frequentemente a descargas de esgoto, de forma ilegal, em rios e praias, com risco para a saude publica. A Thames Water, maior empresa de água do país com monopólio no sul de Inglaterra, encontra-se com sérios problemas financeiros.
A crise energética que se seguiu à guerra na Ucrânia mostrou as consequências da falta de soberania energética. A forte dependência de gás para gerar electricidade, tornou o choque inflacionário particularmente forte. Em parte resultado de uma política que proibiu a instalação de eólicas onshore, apesar do excelente potencial eólico do país. A isto combinou-se o Reino Unido ter o stock de habitação mais velho da Europa, e consequentemente menos eficiente do ponto de vista energético.
A falta de uma empresa pública no ramo da energia reforçou o problema. A EDF, empresa estatal francesa que tem controlado preços em detrimento da sua rentabilidade, a mando do governo de Macron, é um dos principais operadores no mercado britânico. Naturalmente, o governo de Rishi Sunak não tem grande poder para exercer pressão política numa empresa controlada por um Estado estrangeiro.
Enquanto o Brexit pode ter custos para o país, a redução da imigração - tema central no debate do referendo - não parece ser um deles. A imigracao líquida no Reino Unido disparou nos últimos anos, chegando mesmo a níveis recorde. O governo substituiu a livre circulação europeia por uma série de vistos de trabalho relativamente fáceis de adquirir e cuja procura tem sido alta. Em parte, mudar os fluxos de imigração da Europa para os países da Commonwealth foi um dos argumentos usados durante o referendo do Brexit.
Ironicamente, as poucas reformas estruturais dos governos Conservadores têm sido uma reversão gradual e envergonhada das grandes medidas do Thatcherismo. A ferrovia tem sido nacionalizada para responder a serviços caríssimos e incapazes de cumprir as suas obrigações contratuais. Os governos metropolitanos banidos por Thatcher têm sido gradualmente reintroduzidos (apesar de com menos capacidades) e um dos seus principais poderes atribuídos é a capacidade de reverter a trágica desregulação e privatização dos autocarros urbanos.
OS RISCOS DE UMA MAIORIA AMPLA MAS COM POUCA PROFUNDIDADE
Com a crise financeira de 2008 e a pandemia, houve uma esperança temporária de que o modelo económico neoliberal tivesse chegado aos seus limites, que seria substituído por algo mais progressista. Como podemos ver hoje, os anúncios da sua morte foram precipitados. Os mais optimistas dentro da política Britânica podem novamente ver a implosão do Partido Conservador e uma esmagadora maioria Trabalhista como a substituição do neoliberalismo de Thatcher por algo mais adequado.
Infelizmente, a liderança de Keir Starmer oferece um programa vazio e uma campanha focada em não fazer “promessas que não pode cumprir”, enquanto se compromete de por vezes mais, por vezes menos, camufladamente com os cortes definidos pelo atual governo. Há cinco anos, Starmer foi eleito líder Trabalhista numa plataforma de dez promessas, que foram sendo gradualmente esvaziadas. A reversão do Two-child benefit cap (limitar em dois filhos a bonificação de prestações sociais), que tiraria centenas de milhares de crianças da pobreza, foi colocada na gaveta apesar da oposição interna. As metas para a transição energética sofreram recuos.
Depois de quase 15 anos na oposição, os Trabalhistas não apresentaram um modelo de desenvolvimento alternativo. A reforma do planeamento urbano para aumentar a oferta como forma de resolver a crise habitacional, uma proposta vinda de intelectuais e Think Tanks conservadores, aparenta ser a grande esperança de Starmer para gerar crescimento económico. A política de construção e falta de um compromisso sério com melhorias dos direitos laborais são os motivos usados pela The Economist, bíblia do neoliberalismo, para anunciar o seu apoio a Starmer.
Em temas como a imigração e defesa do povo palestino, Starmer fez uma cópia suave do discurso de ódio contra minorias e branqueia crimes de guerra de Israel. Quando confrontado com as suas próprias afirmações, o líder Trabalhista nega que essa tenha sido a sua intenção (aqui e aqui).
O centro-esquerda francês, com François Hollande, já nos mostrou que uma maioria autoproclamada como progressista, incapaz de ter uma política que defenda as classes populares, pode ser apenas a antecâmara para a ascensão do neoliberalismo autoritário, de inspiração Thatcheriana.
Num sistema eleitoral como o Britânico, uma maioria pouco entusiasmante pode rapidamente tornar-se numa derrota catastrófica, e o colapso dos Conservadores ser complementado com o crescimento do Reform (o novo partido de direita radical de Nigel Farage, um dos grandes autores do Brexit), que oferece um paralelismo óbvio com a Rassemblement National que se aproxima do poder em França.
No falhanço de um governo Trabalhista, que não se propõe a resolver os problemas que agora ditam o afastamento dos Conservadores, a insatisfação será canalizada para algum lado. A eventual substituição do Thatcherismo original arrisca-se a ser trocado por algo bem semelhante, onde as virtudes do individualismo empreendedor percam a centralidade, e o indentitarismo de direita passe para primeiro plano.
NOTA
Para os interessados, fizemos uma compilação de visualizações que ajudam a explicar a situação em que o Reino Unido se encontra. A esmagadora maioria estão refletidos de alguma forma neste artigo mas entendemos que um formato mais visual pode ser um complemento útil. Podes consultar abaixo.
Para os interessados em conteúdos audio, recomendamos este episódio (em inglês) do Podcast jornalístico Today in Focus (The Guardian) focado em casos concretos que são consequência da governação dos Conservadores.
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