O Muro de Berlim caiu mas as cicatrizes continuam abertas
Os alemães de Leste não demonstram querer regressar aos tempos da RDA, mas tampouco estão satisfeitos com o “sucesso da reunificação”
Esta semana, a queda do Muro de Berlin celebra 35 anos, um acontecimento visto como o início do fim da Guerra da Fria. Em menos de dois anos, as duas Alemanhas voltavam a ser um único país. Nessa altura, os alemães de Leste votaram esmagadoramente a favor dos partidos dominantes no Ocidente (CDU e SPD). O PDS, partido herdeiro do regime socialista estabelecido na zona de influência soviética, obteve apenas com 16,4% dos votos (1,9 milhões). Meses depois, na primeira eleição legislativa da Alemanha unificada, o PDS perdeu cerca de 750 mil votos.
Naturalmente, a unificação do país foi tanto política como económica. As empresas da RDA foram privatizadas ou fechadas, enquanto os seus antigos trabalhadores foram integrados no sistema de segurança social da República Federal Alemã (RFA) e passaram a poder migrar livremente para o Ocidente, na procura de oportunidades nas regiões mais prósperas. Além disso, o executivo da nova Alemanha criou um imposto de solidariedade para financiar investimentos e infraestruturas a Leste. Nas últimas três décadas, a antiga RDA foi convergindo gradualmente com as regiões ocidentais. Para países como o Reino Unido, incapazes de reduzir as suas desigualdades territoriais, o exemplo alemão tornou-se uma referência de política pública (aqui, aqui e aqui).
Contudo, a opinião dos alemães do Leste reflete um sentimento bem menos optimista. Há cinco anos, uma sondagem mostrava que quase 60% dos alemães de Leste sentiam-se como cidadãos de segunda. Em 1990, 93% dos eleitores da RDA votaram, mas o entusiasmo com as eleições foi caindo. Nas últimas eleições legislativas, a abstenção foi de 26%, maior que o número de votos de qualquer partido. Do ponto de vista partidário, os sucessores do partido de governo na RDA - primeiro o PDS, depois Die Linke e mais recentemente o BSW - foram recuperando peso eleitoral a Leste e chegaram a liderar o governo da Turíngia; região onde a AfD (extrema direita) causou estrondo na última eleição regional, com um terço dos votos. O crescimento da AfD no Leste alemão não se limita a esta região - nas eleições europeias a extrema direita foi a força mais votada em todos os estados da antiga RDA (excluído Berlin).
A leitura de Beyond the Wall (“Do outro lado do muro”), de Katja Hoyer, é relevante para qualquer pessoa interessada em entender este aparente puzzle entre a convergência económica e a desilusão política. Como fio condutor para narrar a história da RDA, o livro pula entre as duas áreas da especialização de Hoyer, a História e o Jornalismo, usando diversas histórias individuais. Sem negar ou relativizar os aspectos negativos mais conhecidos da RDA - como o Muro de Berlin, os seus serviços secretos, as prateleiras vazias nos supermercados, as centenas de milhares de pessoas a atravessar a fronteira - a autora narra a história de um país construído pelo seu povo.
Acima de tudo, Hoyer (nascida na RDA em 1985) apresenta a RDA como algo muito maior do que uma versão pobre da Alemanha Ocidental ou uma cópia-satélite da União Soviética.
O FILHO INDESEJADO
Nos capítulos iniciais do livro, o ponto chave de Hoyer é quebrar a ideia de uma equivalência direta entre as duas Alemanhas, tanto em termos de desenvolvimento como de geopolítica.
Mesmo que todo o território Alemão tenha terminado a guerra em escombros, o Leste alemão não iniciou a construção no mesmo ponto de partida. Enquanto a Alemanha ocidental detinha a esmagadora maioria dos recursos naturais, como as vastas reservas de carvão e ferro, o Leste alemão dependia quase exclusivamente de lignito, um tipo de carvão bastante inferior. A RDA herdava uma economia ainda muito dependente de atividades agrícolas, ao contrário da economia industrial a Ocidente. No final da Segunda Guerra Mundial, milhões de pessoas etnicamente alemãs foram expulsas dos países em seu redor. Estes refugiados foram recebidos nas duas Alemanhas, mas tiveram um peso muito maior a Leste, dado o tamanho do país e a proximidade dos países evacuados.
Em termos geopolíticos, é comum fazer-se uma equivalência, mesmo que implícita, entre os esforços e os desejos dos Estados Unidos e da União Soviética em ajudar os seus aliados. A obra de Hoyer defende a tese de que Josef Estaline não tinha um especial interesse em expandir a sua área de influência até à Alemanha. O líder sovietico olhava para a Alemanha como um recurso financeiro, através do pagamento de indemnizações de guerra, e não como um Estado satélite a ser ajudado.
A posição Estaline varia entre fragmentar a Alemanha em vários estados de pequena dimensão, incapazes de destabilizar o continente (Yalta, 1945), e a criação de uma Alemanha unificada, muito provavelmente capitalista, mas acima de tudo militarmente neutra fora da NATO (Nota de Estaline, 1952). A segunda proposta, em que Estaline propõe uma espécie de “solução austríaca” para a Alemanha, apesar de desvalorizada por alguns historiadores, alinha-se com uma postura pouco confrontacional de Estaline no pós-Guerra, tal como se viu na guerra civil grega. Anos mais tarde, já com Kruschev no poder, a ideia de unificação da Alemanha por parte dos Soviéticos volta à mesa, como uma eventual solução de reduzir tensões com o Ocidente de forma a reduzir a despesa militar soviética.
A pressão Soviética sob a economia da Alemanha Oriental nos seus primeiros anos de existência, com transferências financeiras, de produtos e de cérebros, reforça a tese de Hoyer de que as indemnizações de guerra tinham um papel central na estratégia de Estaline para a Alemanha. Esta posição contrasta por completo com a relação entre RFA e os seus aliados a Ocidente. Para além de ser poupada de indemnizações de guerra avultadas, a Alemanha Ocidental ainda recebe apoio financeiro e técnico dos seus aliados.
Mesmo que as duas alemanhas tenham ficado conhecidas pelos diferentes modelos de organização económica e social (capitalismo versus socialismo), o livro argumenta que estas diferenças eram menos gritantes nos primeiros anos da existências desses países. Saída dos escombros da Guerra, durante os primeiros anos, a RFA foi uma economia repleta de controlos estatais, recorrendo ao controlo de preços em bens essenciais. Talvez por esse motivo que Hoyer reforce tanto o papel do apoio externo no sucesso económico dos dois países nos seus primeiros anos de existência.
Com um aliado pouco comprometido com a sua sobrevivência e um clima de tensões geopolíticas, os fundadores da RDA iniciam o seu projeto com uma Constituição da República e símbolos nacionais (como a bandeira) que tornariam a unificação possível. Com o passar do tempo, o modelo económico e de sociedade das duas Alemanhas vai divergindo de tal forma que transforma essa possibilidade legal numa impossibilidade material.
Ainda assim, o filho indesejado de Estaline acaba por seguir um modelo muito semelhante ao soviético. Segundo Hoyer, tal não foi tanto pela vontade do líder soviético, mas pelas origens dos pais fundadores da RDA, em especial Walter Ulbricht, secretário geral do comité central. A partir da década de 1920, dada a proximidade ideológica e geográfica, a União Soviética tornou-se um destino para muitos socialistas alemães. Com a ascensão do nazismo, um regime inerentemente anti-socialista e anti-soviético, instala-se um clima de guerra iminente. Explode um clima de desconfiança face aos alemães em território soviético, tornando muitos socialistas alemães vítimas das purgas de Estaline, frequentemente sob a acusação de espionagem.
Em linhas gerais, os socialistas alemães que sobrevivem e se mantém em posições relevantes na União Soviética enquadram-se em dois grupos: aqueles capazes de mostrar lealdade ao regime de Estaline num ambiente de guerra, recorrendo frequentemente a denúncias de outros alemães; e uma segunda geração mais jovem que foi totalmente educada no sistema soviético. Walter Ulbricht e Wilhelm Pieck (primeiro e único presidente da RDA) fazem parte do primeiro grupo e defendem uma rápida transformação da Alemanha de Leste em linha com o modelo soviético. Sob a sua liderança, os latifúndios são coletivizados e uma grande parte da economia é nacionalizada.
Para Hoyer, Estaline pode não ter definido o modelo da RDA, mas o que sobrou do partido comunista alemão na União Soviética fez com que replicar o regime Soviético fosse o passo mais óbvio.
A RECONSTRUÇÃO, A DESILUSÃO E O PERÍODO DE OURO
Assente em histórias individuais, é-nos narrado algum entusiasmo na fundação da RDA e no seu processo de reconstrução. Com o passar do tempo, o voluntarismo reconstrutivista vai-se confrontando com a incapacidade de aumentar os níveis de vida da população, gerando frustração.
As explicações apresentadas por Hoyer para a estagnação dos níveis de vida nos primeiros anos da RDA devem-se maioritariamente a questões políticas. O pagamento de indemnizações de guerra à União Soviética e uma política de embargo implícito por parte da RFA (a partir de 1955) sufocam a economia da Alemanha de Leste. Além disso, uma combinação de más colheitas por motivos climáticos e a perda de capacidade técnica após a coletivização da agricultura causam quebras na produção alimentar.
A primeira década da RDA é particularmente turbulenta, onde os seus trabalhadores fazem longos horários e o racionamento ainda faz parte do seu quotidiano. A insatisfação cria uma onda de protestos em 1953, que é confrontada com a força do Estado. Essa onda de insatisfação reflete-se na emigração. Entre 1955-1957, o país perdeu mais de 600 mil pessoas, em particular trabalhadores qualificados como os médicos.
No final da década de 1950, a situação económico-social começa a dar sinais de melhoria. Com Nikita Krushev na liderança da União Soviética, as indemnizações foram trocadas por uma política de maior cooperação e de apoio financeiro e energético. Este alívio traduziu-se rapidamente em melhores condições de vida. O rendimento médio duplicou entre 1950 e 1960, enquanto a habitação e outros serviços públicos são expandidos. Ainda na década de 1950 há sinais encorajadores para a liderança da RDA: os números de pessoas a passar para a fronteira para Ocidente cai em 1958-1959 e os cupões de racionamento são abolidos em 1959. Contudo, um aumento do número de migrações no ano seguinte para a Alemanha Ocidental cria o pânico e o infame Muro de Berlin é erguido. Através do aparato de segurança e da força do Estado, a perda de trabalhadores (qualificados) em massa deixou de ser um problema.
A obra argumenta que com maior ou menor radicalismo programático por parte da RDA, a emigração de quadros qualificados seria sempre um problema difícil de gerir. Enquanto esta constatação pode parecer, à primeira vista, uma defesa velada dos métodos do regime socialista, a realidade recente de outros países dá razão a Hoyer. Com a entrada na União Europeia e no espaço Schengen, países como a Roménia e Hungria - mesmo com economias de mercado e boas taxas de crescimento - viram um êxodo de profissionais qualificados, como os médicos e enfermeiros. No caso da RDA, a língua comum e a presença de familiares do outro lado da fronteira tornavam a situação ainda mais delicada e difícil de travar.
O alívio financeiro é combinado com um pacote de reformas económicas, apelidadas de Novo Sistema Económico (1963). O plano retirava peso aos planos quinquenais e dava mais autonomia às unidades de produção, aos trabalhadores e eram criados alguns incentivos de mercado para promover a poupança de recursos. No que toca à inovação industrial, este período foi a era de ouro da RDA. Ao contrário de outros países do bloco de Leste, a Alemanha de Leste cria o seu próprio automóvel - o Trabant - sem a importação tecnológica da Fiat, como no caso polaco ou jugoslavo. Hoje, o Trabant é apresentado como um símbolo do atraso e debilidade do sistema da RDA, mas na década de 1960 era um carro que não ficava atrás dos seus pares ocidentais. Outras indústrias, como a dos brinquedos, beneficiando de maior autonomia, foram capazes de inovar (p.ex: a introdução de componentes electrónicos) e tornaram-se importantes bens de exportação, inclusive para países capitalistas.
Mesmo estando longe dos níveis de rendimento da Alemanha Ocidental, os líderes da RDA tinham argumentos e dados objetivos para afirmar o sucesso do seu sistema. O regime produzia oportunidades de mobilidade social para as mulheres (maior taxa de emprego feminino do mundo) e para os filhos da classe trabalhadora. No ensino superior, mais de metade das vagas eram ocupadas por mulheres e a prevalência de alunos de famílias pobres também era muito superior à sua vizinha no Ocidente.
Mesmo do ponto de vista do conforto material e acesso a bens, Ulbricht também tinha motivos para celebrar. Em 1970, metade das famílias tinha uma máquina de lavar roupa, comparado apenas com 6% dez anos antes. Em relação aos frigoríficos, 56% das famílias da Alemanha de Leste tinham um, muito acima dos 28% da RFA. Mesmo com as filas intermináveis para comprar carros, a RDA chega ao final da década de 1980 com um número de automóveis por família abaixo do da Alemanha Ocidental, mas comparável com o Reino Unido.
A partir da década de 1970, já com Erich Honecker na liderança, a RDA faz dois movimentos - um económico e outro cultural - que a aproximam do caminho da reunificação.
UM PAÍS À DERIVA PROCURA NOVOS PARCEIROS
Os ventos políticos e económicos da RDA estavam bastante calmos antes da tempestade. À primeira vista, Honecker tinha chegado ao poder num período de bonança. As relações com a RFA foram normalizadas em 1970, abrindo vários mercados externos para a Alemanha de Leste, e a abundância de crédito barato marcava o clima macroeconómico internacional. O estreitamento de relações com a União Soviética na década anterior garantia petróleo barato, a um preço fixo, que era refinado na RDA e posteriormente exportado (com lucro) para o resto do mundo.
O governo de Honecker faz uma espécie de Perestroika invertida e uma Glasnost antecipada. Do ponto de vista económico, da-se uma reversão das reformas anteriores (autonomia das empresas e trabalhadores) em favor de um recentramento nos planos quinquenais. No espectro social, Honecker – que tinha sido secretário da ala jovem do Partido – inicia vários relaxamentos sociais e comportamentais como resposta a exigências da juventude, como a abertura ao consumo de produtos culturais estrangeiros, das calças de ganga à música ocidental.
Os choques petrolíferos dos anos 70 chegam mais tarde à RDA do que ao resto do mundo, mas com impactos existenciais. Inicialmente o aumento do preço do petróleo era uma benesse para a economia da Alemanha de Leste, com o proveitoso negócio de rexeportação do petróleo (subsidiado) soviético. Um privilégio que os Soviéticos não sustentarão por muito tempo. Com a pressão da guerra no Afeganistão, a União Soviética retira apoio financeiro e energético à RDA. O crédito internacional também aperta na segunda metade da década de 1970. A falta de acesso a dólares e logo a bens importados asfixia a Alemanha de Leste. As sugestões de reforma económica como resposta a estas crises, dando novamente maior autonomia às empresas estatais, são inicialmente bloqueadas.
A falta de apoio Soviético faz com que a RDA procure novos parceiros no xadrez global. Primeiro, o país socialista vira-se para o Japão, com quem negoceia acordos comerciais e a instalação de fábricas da emergente indústria electrónica em território alemão. À completa revelia da União Soviética, a RDA procura apoio financeiro no seu vizinho Ocidental, a troco de reformas políticas que aproximem os dois países.
Até ao início dos anos 1970 a Alemanha de Leste podia argumentar que tinha um modelo e objetivos económico-sociais distintos do seu vizinho, que tornava comparações de indicadores económicos pouco úteis. A aproximação entre os dois países torna essa narrativa mais difícil de suportar.
Aqui a história de Hoyer cruza-se com a de Fritz Bartel sobre a incapacidade do Bloco de Leste em “quebrar as promessas” que fez aos seus trabalhadores.
O acesso aos bens do Ocidente é totalmente facilitado para quem tem acesso a divisas estrangeiras, maioritariamente pessoas com família e contactos na RFA. O governo chega mesmo a abrir lojas especiais com produtos da RFA. A fronteira entre os dois países também é relaxada. Esta aproximação com a Alemanha Ocidental reforça uma sensação de que a RDA é uma Alemanha simplesmente mais pobre, em que os mais privilegiados têm acesso aos hábitos de consumo dos vizinhos a Oeste. Nas entrelinhas, Hoyer mostra que a integração pelo consumo tornou o desejo de reunificação irreversível.
A DESILUSÃO PÓS-EUFÓRICA
Além de querer fazer uma cronologia da história da RDA, a principal mensagem de Hoyer é a de mostrar como o esquecimento e o desprezo pelas vidas dos alemães de Leste durante décadas ainda se reflete na sociedade alemã, mesmo 35 anos depois da queda do Muro de Berlin. O processo de reunificação foi encarado pela liderança política da Alemanha ocidental como uma “normalização” da RDA, após viver décadas com dois regimes totalitários. Wolfgang Schäuble, um dos principais responsáveis pela reunificação e alguém que se tornou bem conhecido em Portugal durante o período da Troika, resume bem esse sentimento, ao afirmar que “não é uma unificação de dois estados iguais” e "existe uma Constituição e uma República Federal Alemã. Vamos assumir que vocês não foram incluídos em ambas durante 40 anos. Agora vocês têm o direito de fazer parte”.
A postura Schäuble evidencia qual a solução escolhida pelos os altos quadros da política alemã: forçar o esquecimento coletivo. Esta fórmula, aplicada ao Ocidente depois do Nazismo, deveria ser replicada na RDA. O sistema socialista tinha de ser desmantelado o mais rapidamente possível. Nada havia a aprender com a RDA. Os Alemães de Leste deviam ser integrados nas estruturas económicas e sociais da RFA.
Consequentemente, as mulheres das Forças Armadas da RDA não eram compatíveis com o sistema Ocidental, o que levou ao seu despedimento em massa. O sistema de creches, que chegou a ser elogiado por quadros conservadores, uma garantia de autonomia às mulheres, foi drasticamente reduzido. Em dois anos, metade das vagas em creches da RDA foram fechadas. Vários trabalhadores tiveram de desmantelar as empresas onde trabalharam anos a fio, sem saber o que o destino lhes reservava.
Comparada com outros países de Leste, a transição macroeconómica da RDA para uma economia capitalista foi muito mais suave. A integração fez com que a RDA não tenha experienciado episódios como a hiperinflação da Polónia e Hungria, no início dos anos 1990. Mas a estabilidade macroeconómica teve um preço. Os Alemães de Leste não tiveram a agência para decidir coletivamente o seu rumo, e de preservar certos componentes do sistema socialista. A abundância material da economia de mercado reduziu a mobilidade social para as mulheres e os filhos das classes trabalhadoras passaram a participar num sistema de ensino socialmente muito mais rígido.
A imposição da política de esquecimento coletivo não permite apontar nem confrontar estas tensões e frustrações no espaço público. Tanto no prefácio do seu livro como noutros textos, Hoyer usa o exemplo de Angela Merkel (a única mulher a ser Chanceler) para explicar esta dinâmica. Para a autora, é impossível desligar o sucesso político de Merkel da metade da sua vida enquanto mulher na Alemanha de Leste. Entre o comentariado político alemão, este facto é uma mera curiosidade, uma tangente na vida de Merkel.
Merkel, que raramente falou da sua experiência na RDA em público, aproveitou um dos seus últimos discursos como Chanceler para “falar em nome de um dos 16 milhões de alemães que viveram na RDA e que experienciaram julgamentos vezes sem conta” e desabafou que era “como se a vida antes da unificação não contasse ... não importa se as experiências foram boas ou más”.
Na leitura do livro, torna-se evidente que Hoyer sente que não devemos olhar apenas para as diferenças entre estatísticas como o PIB per capita para entender as particularidade políticas das zonas da antiga RDA. Negar os esforços e feitos de milhões de alemães durante quatro décadas, como a reconstrução do país, os seus avanços na ciência e tecnologia, ou mesmo a vitória contra a RFA no Mundial de 1974, são um dos principais motivos pelos quais os alemães de Leste continuam a sentir-se cidadãos de segunda. Tal como os imigrantes, o seu passado é vastamente negado pela história coletiva do país onde vivem.
CONCLUSÃO
Beyond the Wall é uma leitura acessível e informativa sobre a RDA, sem romantismos nem demonizações. Mais do que narrar o passado, Hoyer ajuda-nos a entender as tensões do presente. Para além dos aspectos mais estruturais, a obra cobre histórias fascinantes e pouco conhecidas, como o papel da RDA na promoção de uma indústria de café no Vietname.
Infelizmente, o livro não se dedica a explorar os aspectos que diferenciavam as duas Alemanhas mesmo antes da sua divisão. Os dados da eleição de 1924 mostram que já existia uma demarcação, mesmo antes da fundação da RDA
Por fim, mesmo não sendo o objetivo central do livro, este dá um importante contributo para a discussão sobre reforma política e económica dos países socialistas. Um debate que dividiu a China e os países europeus na década de 1980 e marcou a sua evolução político-económica desde então, ao qual nesta newsletter temos dedicado o nosso tempo em críticas de livros, traduções e entrevistas.
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