Os Preços da Ignorância
À direita falham previsões para, num exercício de amnésia seletiva, repetirem as mesmas, num círculo interminável em que a ignorância é a fundação das suas opiniões.
Após décadas de ser um quase não tema nos países mais desenvolvidos, ao longo do último ano, a inflação regressou. Quer atribuamos as suas causas à guerra na Ucrânia e respetivas ondas de sanções, à disrupção das cadeias de fornecimento pós COVID ou às alterações climáticas, os números são expressivos.
Se olharmos para os valores a 12 meses, em Dezembro de 2022, a variação dos preços situou-se nos 9,8% em Portugal e 9,2% na Zona Euro. Se nos virarmos só para os bens alimentares e energéticos, os que têm maior peso nos orçamentos familiares mais pobres, os valores são ainda mais altos.
Apesar de algumas divergências quanto às origens da inflação, quando o tema é a forma como lidar com esta, as opiniões divergem colossalmente. De um lado, a grande aposta dos Estados tem sido na subida das taxas de juro de referência dos bancos centrais, do outro, em especial nas oposições à esquerda, têm-se sucedido os apelos à intervenção nos mercados de forma a controlar os preços. A ignorância sobre os méritos e deméritos de ambas as opções é grande, aqui vamos focar-nos na segunda.
O QUE ACHAS OS ECONOMISTAS SOBRE O CONTROLO DE PREÇOS?
Desafio o leitor a perguntar a uma pessoa aleatória com formação em Economia o que ela pensa sobre controlo de preços. A resposta mais provável será: “controlo de preços não funciona, é um absurdo que leva à escassez”.
Recentemente, em entrevista ao Diário de Notícias, António Costa e Silva, Ministro da Economia – um cargo para o qual podemos supor que um mínimo entendimento de Economia seja qualificação necessária –expressou a mesma ideia de que controlos de preços não são uma solução.
Ricardo Arroja, economista e antigo cabeça de lista da Iniciativa Liberal ao Parlamento Europeu, assinou recentemente um artigo em que retrata o controlo de preços como uma tentação política com um forte apelo social em situações difíceis, mas que derradeiramente “não funciona”. Uma espécie de “boas intenções com maus resultados” a ser defendida apenas por aqueles que ainda não puderam ser iluminados pela ortodoxia neoliberal.
Na altura de encontrar soluções, faz um apelo a mais concorrência da seguinte forma: “(...) há poupanças a fazer na compra de alguns artigos de grande consumo se, em vez das grandes cadeias comerciais, o consumidor comprar através da Internet ou no minimercado de bairro. O problema é que são alternativas que hoje se encontram pouco massificadas, em resultado da baixa literacia digital da população (...)”. Uma solução de eficácia duvidosa, com uma visão pouco elogiosa sobre os mais velhos e os mais pobres, mas certamente respeitadora dos princípios do mercado livre.
Em publicações farol do neoliberalismo, como é o caso deste artigo da revista The Economist, a questão do controlo de preços é resumida como uma política usada por países presos num estágio de subdesenvolvimento, presos num ciclo vicioso de discurso populista. Neste ciclo, os Governos são forçados a procurar soluções de curto prazo, como o controlo de preços, cujo resultado é o atrofiamento da economia e a perpetuação da pobreza, adiando a liberalização necessária para a prosperidade - esta é a linha replicada por economistas como Arroja (sendo tão popular que este escolheu começar o seu artigo precisamente com a mesma citação de Einstein usada no artigo da The Economist referido acima). Quando confrontada com os factos, vemos que esta interpretação está muito longe da realidade.
O CONTROLO DE PREÇOS HOJE
Para começar, nos últimos meses, vários governos dos países mais ricos têm vindo a intervir fortemente nos mercados energéticos, impondo limites aos valores de contratos. Isto não foi o início de uma nova era que inaugurou o socialismo no mundo ocidental.
A nível geral, a verdade é que as políticas de controlo de preços estão bem presentes nas economias mais desenvolvidas. Dentro da Europa, a Suíça é o país com mais preços controlados, mais de 30% do total do cabaz de preços. Acima da média da União Europeia seguem-se outros, longe de serem falhanços económicos como os Países Baixos e a França. Portugal surge ligeiramente abaixo da União Europeia com 13% dos preços regulados. Seria precipitado fazer uma ligação direta entre controlo do cabaz de preços e baixa inflação, mas é incontornável reconhecer que este tem um impacto na contenção de preços.
Um caso particularmente relevante são as taxas de juro - se quisermos esticar-nos com a definição, o preço cobrado aos bancos quando recebem depósitos. Ainda antes de considerar a fixação prévia pelas taxas de referência do Banco Central Europeu, o mercado para as taxas de juro de depósitos em Portugal está indexado à concorrência. Isto é, um banco não pode livremente subir o valor que oferece pelos depósitos, tem de o fazer tendo em conta a média dos outros bancos. O resultado é o tampão à competição interbancos para a obtenção de depósitos. Um atentado à concorrência que dificilmente levará algum neoliberal a indignar-se.
ESTADO COMO AGENTE DE MERCADO
Como o exemplo acima indica, controlo de preços por parte do estado não se reduz a uma tabulação administrativa de um valor. Por exemplo, no caso de Viena, o Estado induz o valor do mercado livre através do seu vasto parque público de habitação.
Nem tão pouco se pode resumir o controlo de preços a medidas “anti-mercado”. Encontramos um caso evidente na Reserva Estratégica de Petróleo dos Estados Unidos da América. Aquando do trambolhão dos preços petrolíferos em 2020, a administração Trump lançou um programa de compra, atenuando a queda dos preços. Em 2022, face aos elevados preços do ouro negro, a administração Biden passou a vender, desta vez contendo a escalada dos preços. Com os preços atuais a níveis relativamente baixos, a direção esperada é a da compra de barris.
No Brasil, Lula da Silva anunciou que vai revitalizar a Conab - Companhia Nacional de Abastecimento. Esta, apagada durante as administrações Temer e Bolsonaro, funciona com uma lógica similar à da Reserva de Petróleo dos Estados Unidos da América. As palavras de Carla Beni da FGV resumem na perfeição a razão de ser da Conab: “A retomada da Conab é muito importante porque ela faz o estoque regulador e garante a compra do pequeno e do médio produtor. Isso faz com que você consiga atenuar períodos de aumento de preços para que, na mesa do brasileiro, você tenha oscilação menor nos itens básicos consumidos na alimentação diária”.
Voltando aos Estados Unidos da América, com o recente Inflation Reduction Act, o Estado passará a comprar medicamentos a preços mais baixos dos que os encontrados no mercado por consumidores individuais. À semelhança do que já fazem muitos sistemas de saúde europeus, utiliza a sua dimensão como arma negocial, permitindo que os medicamentos cheguem aos consumidores a preços mais baixos. Na hora de governar, até o Governo de Passos Coelho chegou a promover medidas similares, como foi o caso do medicamento para hepatite C.
No Canadá, país quase monopolizador de Maple Syrup, o Estado controla uma reserva estratégica do alimento, utilizando-a para suavizar as flutuações de preço do produto exportado.
As políticas acima, embora com objetivos diferentes, sumarizam o princípio de que o controlo de preços pelo Estado funciona e vai muito além da lógica anedótica da fixação de preços por parte de um burocrata. A mão invisível do mercado recebe uma ajuda da mão visível do Estado, e os objetivos políticos são alcançados.
BASEAR UMA POSIÇÃO EM FACTOS - ISABELLA WEBER
Isabella Weber, economista alemã, transformou o material da sua tese de doutoramento no livro: “How China Escaped Shock Therapy”. O livro enquadra o debate da liberação dos preços na China na década de 80 no dilema: flexibilizar totalmente os preços de uma só vez com um “Big Bang” e fazer o Estado recuar da economia ou, em alternativa, dar espaço aos mercados progressivamente, deixando o Estado como um agente que planeia a economia através dos preços?
Ou por outros termos, liberalizar o mercado deveria ser visto como um fim em si mesmo, ou um meio para atingir fins?
Na China, a segunda opção venceu e a comparação com a Rússia - que se seguiu ao “Big Bang” ligado com a terapia de choque económica - é incontornável. Depois da liberalização de preços em que o Estado manteve as rédeas da economia, a China passou a disputar o lugar de primeira economia mundial com os Estados Unidos da América, enquanto a Rússia sofreu uma deterioração social e refugiou o seu modelo económico na exportação de combustíveis fósseis.
Na sua obra, Weber segue o debate teórico dentro do qual a liberalização gradual dos preços, após alguns ferozes confrontos, triunfou. Tanto na liberalização chinesa guiada pelo Estado no final do século passado, como em situações passadas indispensáveis para compreender o debate chinês, não faltam exemplos bem-sucedidos do controlo de preços.
A prática da China imperial de equilibrar mercados através de reservas de cereais, o sucesso do controlo de preços nos Estados Unidos da América durante a Segunda Guerra mundial, o insucesso dos mesmos no regresso desorganizado aos mercados no final da guerra e o sucesso britânico no mesmo período. Abundam os casos concretos de controlo de preços bem-sucedidos (em especial em situações de emergência) e os falhanços quando o mercado não é sujeito a intervenções do estado.
CONTROLOS COMO UMA PRÁTICA, NÃO UMA EXPERIÊNCIA
Com uma posição parecida à de Ricardo Arroja, mas com uma argumentação mais composta, Susana Peralta baseia a sua oposição ao controlo de preços citando um artigo científico. Neste, os autores citam a experiência particular da tabelação de preços entre 2007 e 2015 na Argentina, e concluem que os efeitos tendem apenas a ser apenas eficazes no curto prazo e que eventualmente são contornados pelas empresas.
A citação de dados é importante, mas socorrer-nos apenas de um caso particular traz o risco de não avaliar os fenómenos na sua totalidade. Sumarizar a política de controlo de preços com base na Argentina, país preso a um modelo de exportação agrário em quase permanente crise financeira e monetária, seria o equivalente a resumir o sucesso do comércio online com a distribuidora Amazon no início deste século, quando a falência parecia um cenário próximo.
Ao contrário do que é frequentemente afirmado por neoliberais, países que sofrem de inflação crónica não sofrem de falta de conhecimento das potencialidades de uma liberalização dos preços. Em 2015, Mauricio Macri foi eleito presidente da Argentina com o programa da liberalização da economia. A reação inicial dos mercados foi positiva, aceitando uma emissão de dívida soberana a 100 anos. Ao fim de dois anos de governo Macri, as promessas não se concretizaram, o país entrou em recessão, e recebeu o maior resgate de sempre por parte do FMI, 57 mil milhões de dólares. Hoje é evidente que os problemas de preços da Argentina não se resolvem através do voluntarismo neoliberal.
Nem nos casos bem-sucedidos do controlo de preços uma ideia mestra se revelou vencedora logo à partida, sendo ao invés disso um dinâmico processo de ajustamento e aprendizagem. Regressando ao caso da China, a liberalização fez-se numa prática progressiva, em que a máquina burocrática era frequentemente consultada. No caso dos Estados Unidos da América durante a Segunda Guerra Mundial, as formas de controlo de preços foram sucessivamente ajustadas até antigirem a eficácia desejada.
Somando a gota dos falhanços argentinos em lidar com a inflação ao oceano de sucessos de controlos de preços, o veredicto é nitidamente a favor destes e do seu potencial em ter um papel de relevo nas políticas atuais.
CONTROLOS DE PREÇOS PARA OS RICOS, MERCADO LIVRE PARA OS POBRES
O que é política desastrosa um dia é consenso no outro, e os controlos de preços não são exceção. Com a escalada de preços, até no Financial Times os argumentos pelo controlo ganharam espaço.
Durante décadas, instituições como o Fundo Monetário Internacional impuseram a liberalização de preços a países mais pobres. Na hora de stress financeiro, os países mais ricos não hesitaram em fazer o contrário.
Se virmos as opções dos mais ricos em Portugal, um programa do Governo para um controlo leve sobre a habitação, leva dirigentes partidários como Rui Rocha a marcar presença em manifestações de empresários do Alojamento Local. Em paralelo, situações como as baixas taxas de juros em depósitos bancários – derivadas de um mercado que é tudo menos livre – e suspeitas de cartelização entre telecomunicações são tratadas com indiferença pelos mesmos.
Controlos de preços são uma política que funciona e, como todas as políticas bem-sucedidas, os mais ricos são quem tem o capital político para as colocar a seu favor.
A MITOLOGIA NEOLIBERAL
Como podemos explicar que a intelligentsia neoliberal e decisores políticos repitam um sem fim de vezes imprecisões sobre o controlo de preços, em contradição com ocasiões bem-sucedidas como as apresentadas por Isabella Weber e outros autores? Como é que aqueles que vendem a sua credibilidade com base na formação, conhecimento e estudo, rejeitam esses princípios na hora de intervir no espaço público?
Parte do problema surge com o neoliberalismo do establishment docente de economia. A criação de mitos contrafactuais era uma prática comum de um dos pais do neoliberalismo - o economista Milton Friedman.
No caso do controlo de preços, este apresentava a República Federal Alemã de 1948 como um milagre da liberalização. Segundo reza a lenda, no território ainda ocupado pelos aliados, o controlo de preços era a norma, e os consequentes problemas de ineficiência e mercados negros minavam a sociedade alemã. De uma só vez, uma liberalização de mercado em toda a linha eliminou as restrições administrativas, e do dia para a noite todas as ineficiências foram varridas enquanto a inflação foi domada.
Ou como afirmado por Friedman “a very simple thing”.
Felizmente, alguém se deu ao trabalho de procurar factos além de vídeos de quatro minutos do YouTube, como é o caso de Uwe Fuhrmann, citado por Isabella Weber. Este apaga, quer o mito de a liberalização de todos os preços em simultâneo, quer o de uma transição suave para uma economia de baixa inflação. Vários preços continuaram a ser controlados até bem dentro da década de 70, como o carvão, enquanto os efeitos da liberalização de preços produziram conflitos sociais e greves.
Apesar disso, relatos anedóticos como os de Friedman resistem a investigações mais sérias, e o lastro entre economistas é substancial.
Voltando ao caso chinês apresentado por Weber, as recomendações de Friedman acabaram por não ser implementadas, e a liberalização dos preços na China foi bem sucedida.
IGNORÂNCIA COMO ARGUMENTO POLÍTICO
Na falta de argumentos para contrariar quem dedica a vida a investigar um dado assunto (ou sequer terem conhecimento dessa investigação em primeiro lugar), não é raro encontrar economistas a socorrerem-se de materiais da terceira semana do curso de economia para construir os seus argumentos.
Seria precipitado afirmar que os problemas se resumem aos currículos de economia, dado que pela quinta semana do curso surgirem conceitos como o poder de mercado, que permitem evitar prever, por exemplo, a ruptura no stock de máscaras no início de 2020 através do controlo das margens de lucro.
Apesar do debate do controlo de preços ter vindo a ter mais palco devido ao regresso da inflação, os argumentos já eram esgrimidos em temas como a habitação ou o salário mínimo (preço do trabalho).
Por exemplo, tal como agora o controlo de preços recebe profecias sobre a criação de escassez de produtos, qualquer aumento do salário mínimo é tratado como uma ameaça ao emprego. Já o dizia Passos Coelho, depois de perder o poder em 2015, face à subida do salário mínimo nacional para os 530 euros.
Setores à direita sucessivamente falham previsões sobre o controlo de preços para, num exercício de amnésia seletiva, repetirem as mesmas previsões iludidas face a novas propostas, num círculo interminável em que a ignorância é a fundação das posições.
Se olharmos para exemplos históricos, não faltam casos bem-sucedidos de controlo de preços. Virando-nos para as economias desenvolvidas atuais, apesar de passarem despercebidos, não faltam ocasiões em que o nosso dia a dia é facilitado por esse controlo.
A discussão sobre o controlo de preços, ao contrário do que Friedman afirmou ser “a very simple thing”, não é trivial nem existe uma regra que caiba a todos os casos.
Quer no caso recente das margens de lucro no contexto da inflação, quer noutros casos como o salário mínimo, medicamentos e habitação, a discussão deve focar-se na sua forma e eficácia dado os diferentes contextos. Poder de mercado de compradores, poder de mercado de vendedores, bottlenecks produtivos, o papel dos mercados internacionais, o grau de desenvolvimento da economia, a presença de moeda estrangeira na economia, poupanças de nacionais detidas no estrangeiro, etc. Ao invés disso, a discussão é trollada por memes do neoliberalismo daqueles que não conseguem tirar a cabeça de “very simple things”.
QUANTO NOS CUSTA?
No debate dos preços, aqueles que repetiram um sem vezes de falsidades sobre a eficácia do seu controlo e apontaram para a baixa de impostos como solução mais viável viram os corredores mediáticos abertos.
Em Portugal, o resultado é a recém anunciada redução do IVA para zero nos bens essenciais. Mesmo face à contraevidência do caso espanhol em que, em linha com o que a literatura económica afirma, a redução do IVA não é capturada pelos consumidores, isto é, as empresas não baixam os preços de venda, e beneficiam elas próprias da descida do Imposto.
O Ministro das Finanças, Fernando Medina, afirma que a medida se fará numa base de "um acordo" com a distribuição e produção de alimentos para esta transmitir a baixa do imposto para os consumidores. Num país em que brechas da lei da concorrência são punidas com multas menores, dificilmente podemos antever "um acordo" como eficaz.
O custo total desta ignorância serão 410.000.000 euros em receita perdida para o Estado. Quatrocentos e dez milhões de euros que poderiam ser usados em qualquer outra medida social, entregues de bandeja aos privados que já têm lucrado com a crise do custo de vida.
De uma assentada, não só a grande distribuição escapou ao controlo de preços, como também consegue uma borla fiscal.
Basear posições políticas na ignorância é um falhanço epistemológico, mas pode não ser um falhanço político. Neste caso, os frutos estão à vista, a ignorância compensou certos bolsos.
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas, fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
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