As grandes empresas não estão interessadas em financiar alguém para estudar se Marx estava certo ou errado, Branko Milanović
Conversámos com o economista sobre o ensino de economia, marxismo, economistas que estudaram as economias do bloco de leste
Branko Milanović é um economista especializado em desigualdade no mundo. Dedicou livros a este tema foi um dos autores da famosa Curva do Elefante, que mostrava a estagnação salarial dos mais pobres do norte global, desde o final da Guerra Fria. Os seus avanços na área foram reconhecidos com o prémio Leontief, em 2018.
Milanović é muito mais que um académico focado em desigualdades. Ao contrário da esmagadora maioria dos economistas mainstream, Milanović não se cinge a ter opiniões camufladas em pareceres técnicos. O economista comenta temas tão diversos como os conflitos Sérvia-Kosovo e Rússia-Ucrânia, o modelo chinês e livros fora do espaço tradicional da economia (de Fernando Pessoa a Vincent Bevins).
Poucos dias antes do lançamento do seu último livro ‘Visions of Inequality: From the French Revolution to the End of the Cold War’, a República dos Pijamas com o Setenta e Quatro, conversou com ele sobre o ensino de economia, marxismo, economistas que estudaram economias do bloco de leste e do papel de Jeffrey Sachs, economista da Universidade de Columbia, aconselhou governo russo e polaco no período de transição para o capitalismo na terapia de choque neoliberal na Polónia, depois da queda do muro de Berlim em 1989.
Como mostra o título do seu livro, Capitalism Alone [traduzido na edição em Portugal para Capitalismo, Apenas], defende que o capitalismo é atualmente a única saída, mas existem diferenças entre os modelos concorrentes. Como descreveria essas diferenças e quais os países que melhor as representam?
Em primeiro lugar, defendo que há dois capitalismos. Há aquilo a que chamam capitalismo liberal ou meritocrático e depois há o capitalismo político. O livro é, de certa forma, abstrato porque quero ter esta abordagem prototípica, ou como Max Weber lhe chamou, idiotípica, do capitalismo.
Relativamente ao capitalismo político, e penso que é uma parte importante do livro, defendo que este é o resultado das revoluções comunistas no mundo subdesenvolvido e, consequentemente, do que aconteceu. E, claro, a China é um exemplo que utilizo bastante.
O que eu defendo que aconteceu é que estes países foram confrontados com dois constrangimentos ao seu desenvolvimento. Em primeiro lugar, foram colonizados ou, no caso da China, semi-colonizados. Em segundo lugar, eram essencialmente sociedades de tipo feudal, com o poder dos latifundiários e a exploração rentista, especialmente contra os camponeses. Nestas condições, a revolução comunista foi bem sucedida na China e no Vietname.
No entanto, afirmo que o papel dos comunistas foi muito semelhante ao papel da burguesia nos países que não foram colonizados. Por outras palavras, o que eles fizeram sem planearem, porque, obviamente, eram comunistas e socialistas.
O que fizeram foi remover estes obstáculos ao desenvolvimento, o colonialismo e o feudalismo, e acabaram por criar algo que se parece com o capitalismo político. Assim, quero sublinhar que a ideia de capitalismo político baseia-se numa análise histórica ou numa análise genealógica, num certo sentido da sua criação.
Essa é uma das razões pelas quais o livro analisa os países atualmente. É por isso que a Rússia não desempenha um grande papel, porque não se enquadra nesse modelo específico.
Voltando diretamente à sua pergunta, o que eu queria dizer é que não estou muito interessado em saber que países colocaria em que grupo, embora colocasse os Estados Unidos e os países da Europa Ocidental no grupo do capitalismo meritocrático liberal. Também coloco a Coreia do Sul e o Japão nesse grupo. Mas interessa-me mais o facto de existirem atualmente pelo menos duas variantes de capitalismo neste momento. Logo, não existe, portanto, um capitalismo único, o que, na minha opinião, tem uma conotação muito importante para as relações internacionais, no sentido em que não existe um modelo único que todos tenham de seguir.
Também argumenta que, no capitalismo político, a legitimidade tem muito a ver com a melhoria dos resultados materiais, uma vez que vários destes sistemas não têm necessariamente eleições. Após a pandemia, a China tem vindo a registar um aumento ligeiro do desemprego entre os jovens e um menor crescimento económico. Considera que estas tendências são os principais desafios do capitalismo político chinês, desde o período das reformas?
O que disse sobre o capitalismo político está correto. Penso que uma das raízes legítimas da elite no capitalismo político vê-o como a obtenção de elevadas taxas de crescimento. Não é a única.
Outro é o próprio conceito de boa governação, algo que raramente é mencionado no Ocidente. O conceito de boa governação é algo que está no centro. E isso torna-se muito claro quando lemos, por exemplo, autores chineses.
O conceito ocidental de democracia é o direito de voto. Essencialmente, é isso que significa: liberdade de expressão e direito de voto. O que, naturalmente, leva a outras questões sobre a plutocracia. No entanto, o conceito baseia-se no direito de voto. Portanto, baseia-se numa definição processual. Se existe o direito de voto, uma eleição justa e toda as pessoas têm o direito de se candidatar, está tudo bem, independentemente do resultado. Podemos ter uma democracia eleitoral que resulte em desemprego, crime, ao que quer que seja. Mas o processo foi respeitado.
Alguns dos autores chineses defendem que é isso que se deve esperar de uma boa governação. Boa governação no sentido de proporcionar um elevado crescimento, melhorar a riqueza das pessoas, reduzir a desigualdade, e por aí fora.
Existem, portanto, duas abordagens diferentes. Uma é a abordagem relativa a questões processuais, a outra é relativa ao resultado, que é o que diferencia a abordagem chinesa.
Voltando à sua pergunta, não sou um especialista em macroeconomia chinesa. Sei que, de facto, há muitos anos que se fala nisso [desaceleração económica]. Penso que é bom senso não esperar que a China tenha taxas de crescimento de 8% para sempre. Ninguém o pode fazer. Não creio que fosse dramático se a China tivesse uma taxa de crescimento de 5%. Continuaria a ser uma taxa de crescimento várias vezes superior à de muitos países ocidentais.
Por isso, poderá haver um abrandamento. E há outros desafios: o envelhecimento da população e o desemprego entre os jovens. Além disso, muitos jovens optam por sair do sistema, porque é muito intenso. As pessoas trabalham muito. Há o ditado das 9-9-6, que significa trabalhar das 09h00 da manhã às 09h00 da noite, durante seis dias por semana. Não é uma vida agradável se não quisermos trabalhar assim tanto.
Portanto, como disse, não gosta de colocar os países dentro das caixas dos modelos de capitalismo. Mas quando se lê Capitalism Alone, a América Latina quase não é mencionada. Como é que definiria estes países, especialmente o Brasil, de uma forma ou de outra? ou historicamente, uma passar de um modelo para outro?
É verdade que a América Latina quase não aparece no livro. A América Latina não pode ser enquadrada nesse contexto como capitalismo político. Devido a este elemento histórico que introduzi, a América Latina tornou-se independente na década de 1820. Aqui estamos a falar de países que se tornaram independentes 100 anos mais tarde ou mais.
A região tem a sua própria dinâmica. Por isso, se eu fosse simplesmente olhar para a situação atual sem a perspetiva histórica, tenderia geralmente a ver a América Latina como uma sociedade liberal e democrática. Mas concordo que algumas especificidades da América Latina não se encaixam totalmente, como seria de esperar, com o capitalismo liberal ou democrático.
Foi difícil para mim colocar tudo numa categoria ou noutra. Mas, certamente, levanta questões como, por exemplo, a forma de tratar o Peronismo [da Argentina]. É uma questão que se extende pelos anos, não só para mim, mas para muitas pessoas.
Em Capitalism Alone fala de um prémio de cidadania. Mas não se concentra muito na habitação, por exemplo, que é, neste momento, uma questão importante em países como Portugal. Acredita nisso ou que papel acredita que questões como a habitação ou outras questões de mercantilização desempenham em termos de controlo e redução da desigualdade?
Permitam-me que comece por definir o que entendo por renda de cidadania, o prémio de cidadania ou, de forma diferente, a penalização da cidadania.
Se considerarmos teoricamente o mesmo indivíduo em dois países que diferem pelo seu nível de rendimento. Por exemplo, a Suécia e a Tanzânia. Um condutor de autocarro em Dar Es Salaam e outro em Estocolmo. Os seus rendimentos variam significativamente, podendo ser na proporção de 15 ou mesmo 20 para um. Uma parte é explicada pelos níveis de preços na Suécia, que são mais elevados, mas a diferença pode ainda ser dez vezes depois do efeito dos preços.
A questão que se coloca é se este tipo de disparidades se justifica de um ponto de vista filosófico. O facto de haver um prémio que as pessoas recebem simplesmente por terem nascido ou por se mudarem para um determinado país e se tornarem cidadãos desse país.
Portanto, a questão que levantei é que um prémio de cidadania é um direito de nascença, não muito diferente do direito de nascença que se obtém quando se nasce numa família rica. Atualmente, em todos os países do mundo, as pessoas dão ênfase à igualdade de oportunidades. Por outras palavras, não se considera, pelo menos teoricamente, que as pessoas nascidas em famílias ricas devam ter muitas vantagens. Têm, mas isso não é considerado filosoficamente justificável.
Então, a pergunta que se pode fazer é: porque é que se considera filosoficamente justificável que as diferenças entre pessoas equivalentes que nasceram e vivem em países diferentes sejam muito elevadas?
Apresento provas empíricas simplesmente mostrando que cerca de 50% a 60% do nosso rendimento a longo prazo é determinado pelo local onde nascemos ou, pelo menos, pelo local onde vivemos. E cerca de 20-30% pelo contexto dos seus pais. E só o resto é determinado pelo nosso esforço e pela nossa sorte, aquilo a que John Roemer chamou “sorte episódica”.
A habitação em si é uma questão diferente. O preço da habitação está a aumentar em todo o lado. Está a tornar-se muito mais difícil para os jovens, mas é uma questão concreta. Não tem nada a ver com o prémio de cidadania. Como já expliquei, o prémio de cidadania é uma questão abstrata. A habitação é uma questão real.
O prémio de cidadania baseia-se numa pertença abstrata a algo que nos é dado através de um pedaço de papel ou do nascimento e isso conduz a questões filosóficas. Não me vou alongar sobre o assunto mas há respostas filosóficas para o facto de esse prémio ser justificável. Também há pontos de vista filosóficos que defendem que não é.
Sobre o papel específico da educação na desigualdade. Durante décadas, a educação de massas foi uma política emblemática da esquerda, tanto na social-democrata como no comunismo. Mesmo no período neoliberal, tornou-se uma das principais bandeiras políticas dos governos de terceira via.
Vê a elitização da educação desde o período neoliberal, com os MBAs e outros modelos corporativos, como uma forma de legitimar a desigualdade dentro do sistema, utilizando políticas que são normalmente associadas à esquerda?
A educação tem sido uma política importante em diferentes regimes. Nos regimes capitalistas, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, houve um enorme impulso educativo. Nos regimes comunistas, por definição, a educação era considerada algo que devia estar ao alcance de toda a gente. E, claro, os países que se tornaram independentes na década de 1960 também tiveram um grande impulso.
É interessante o trabalho que Leandro Prados fez sobre as mudanças históricas nos três componentes do Desenvolvimento Humano: rendimento, saúde e educação. Ele conclui que as melhorias na educação estavam presentes na década de 1930, apesar do declínio em métricas convencionais de democracia, particularmente nos países mais desenvolvidos.
No entanto, há várias questões a tratar. Em primeiro lugar, o aumento da educação já não pode ser visto como uma força que faça aumentar a produção em muitos países. Os países atingiram quase um máximo de escolaridade. Se há um máximo de cerca de 16 anos de educação [no mundo desenvolvido], esses países não podem chegar a um máximo de 20 ou 25 anos. Isso não faz sentido [do ponto de vista económico].
E depois, há questões sobre a qualidade do ensino. Nomeadamente, a extrema mercantilização do ensino. Isto é particularmente verdade no caso da Economia, que se assemelha cada vez mais ao mundo dos negócios. Atualmente, considero a Economia como uma espécie de ramo da Economia empresarial.
Isto é lamentável, porque a Gestão e a Economia sempre estiveram separadas. A Gestão era gerir a empresa. É uma competência prática. A Economia é uma ciência social que discute a evolução das sociedades e os factores económicos funcionais, mas isso tem vindo a ser muito menos destacado.
Isto deve-se, em parte, ao sistema de financiamento, porque [as faculdades] dependem de grandes doadores e empresas. As grandes empresas não estão interessadas em financiar alguém para estudar se Marx estava certo ou errado. As grandes empresas estão interessadas em financiar alguém que saiba como despedir trabalhadores, ou contratar trabalhadores para a sua empresa. Isso é compreensível, mas não é Economia.
Sou bastante pessimista em relação à Economia. Ainda hoje li um artigo de Angus Deaton que diz, de forma algo semelhante, que a Economia se tem concentrado tanto nas questões dos mercados e da eficiência que se esqueceu das pessoas que estão por detrás dela.
Outra coisa de que costuma falar com frequência é a vida dos economistas. Escreveu um artigo em que argumentava que a vida deles parecia um Curriculum Vitae. Neste contexto, concorda que o percurso das ciências exatas, como por exemplo nos matemáticos, que aos 40 anos têm uma carreira quase concluída, contaminou de alguma forma a carreira dos economistas?
Por exemplo, os economistas do passado, como Adam Smith, Marx, Keynes, Pareto e Schumpeter, tiveram carreiras. Trabalharam dentro e fora do meio académico. Keynes esteve no governo, por exemplo. Crê que houve algum tipo de contaminação?
Compreendo quando se diz que a Economia se tornou muito mais especializada e que, por isso, as pessoas têm de ter carreiras menos complexas. Logo, não andam para trás e para a frente entre o governo, a academia ou mesmo o jornalismo. Não há dúvida, por exemplo, que Marx e Keynes, em parte das suas publicações, atuavam basicamente como jornalistas.
Hoje em dia, infelizmente, em parte devido à maior especialização da Economia, isso tornou-se mais difícil. Mas há outros fatores como a inflexibilidade institucional. Os jovens economistas são empurrados, se quiserem tornar-se académicos [de sucesso], para disciplinas que são um pouco como uma exibição.
Não têm necessariamente o objetivo de melhorar o conhecimento. Têm o objetivo de mostrar que se pode lidar bem com certos aspetos técnicos. Por outras palavras, é um pouco como dizer a alguém que mostre que consegue saltar, sei lá, seis ou sete metros de altura. Depois, recorrem a outras técnicas, as que vão utilizar na sua vida académica.
A vida académica, por si só, tende a isolar-nos essencialmente do resto do mundo. Isto é especialmente verdade se for feita em campus isolados, como acontece nos Estados Unidos. Nesse caso, é mais difícil passar de uma área de interesse, como a académica, para outra, como a governamental.
Há, evidentemente, excepções. [Paul] Krugman esteve no governo Reagan durante algum tempo [membro do Conselho de Conselheiros Económicos entre 1982 e 1983]; [Larry] Summers tornou-se Secretário do Tesouro sob [Bill] Clinton. Portanto, houve pessoas que andaram para trás e para a frente. É certo que [Milton] Friedman esteve muito envolvido na vertente jornalística, [Paul] Samuelson também. Ainda há alguma coisa disso, mas os jovens economistas são geralmente desencorajados de o fazer porque não é considerado bom para a sua carreira.
Dificilmente podemos considerá-lo um comunista ortodoxo, mas notamos que, nas suas publicações e leituras, há um esforço maior para compreender os caminhos da União Soviética e da China atual do que a maioria dos economistas. Pode relacionar este facto com a sua experiência pessoal na Jugoslávia?
Não há qualquer dúvida quanto a isso. Em primeiro lugar, alguns outros economistas não o podem fazer porque simplesmente não sabem estas coisas. É tão simples quanto isso. Se nunca estudaram Marx, se nunca estudaram os economistas socialistas ou a Economia, o que é que se pode dizer? Não há nada a dizer.
Eu não sei muito sobre, por exemplo, a Economia Pré-Colonial. E, da mesma forma, eles não sabem nada sobre a Economia Socialista. No meu caso, penso que tanto as origens jugoslavas ou sérvias desempenharam um papel importante, sem dúvida, como a forma como a Economia foi ensinada.E, para além disso, o meu interesse. Desde os meus 20 anos, interessava-me pela história ideológica do comunismo. Interessava-me por Marx. Interessava-me muito a forma como a Revolução de Outubro aconteceu.
É um pouco como quando se cresce numa sociedade católica e depois se quer descobrir como aconteceu o catolicismo e o cristianismo. Depois, vamos à origem de quem eram os apóstolos e como é que a mensagem se espalhou. Porque é que São Paulo mudou de opinião e se tornou Paulo?
Dessa forma, começa-se a ver as coisas com uma maior exatidão. Foi isso que me motivou a voltar às fontes e a procurar saber como as coisas acontecem, porque muitas vezes é-nos contado um conto de fadas e eu não acreditava em contos de fadas.
Tem algumas recomendações, de preferência traduzidas para inglês, para compreender a Jugoslávia, o Titoísmo e a queda da Jugoslávia?
Esse é um tema diferente. É mais um tema geopolítico. Vou começar por responder à sua pergunta anterior com mais detalhe. Por exemplo, penso que três pessoas contribuíram bastante para compreender o funcionamento das economias socialistas: [János] Kornai, Branko Horvat, que foi um dos meus mentores, Oskar Lange, e [Michał] Kalecki. Kalecki trabalhou mais com economias capitalistas, mas também trabalhou na Comissão de Planeamento polaca. Estes economistas tiveram grandes contribuições.
E é surpreendente que o Prémio Nobel tenha sido instituído nos anos 70, Kornai e Horvat ainda eram vivos, e não havia qualquer tipo de valorização deste tipo de conhecimento, que é importante.
E houve pessoas [laureadas com o Nobel] cujas contribuições são muito pequenas, que têm a ver com o funcionamento do mercado de ações. Penso que estes contributos são absolutamente de menor importância, não afetam sequer a vida de 1% das pessoas no mundo. Ao passo que os contributos que mencionei afetaram a vida de talvez um terço da população mundial.
Agora, de volta à pergunta sobre a Jugoslávia. É uma resposta muito longa com que me debati. Não conheço os livros e não estava particularmente interessado em ler sobre o desmembramento da Jugoslávia em si.
Mas o livro que eu sugeriria é sobre as dificuldades ou a impossibilidade de criar sociedades multi-étnicas na Europa Central e Oriental. É um livro antigo e trata dos Habsburgos, de A.J.P. Taylor.
A razão pela qual esse livro é importante para mim é o facto de mostrar as dificuldades, ou impossibilidades, da criação de sociedades multi-étnicas na Europa Central. Todas as soluções que foram tentadas deixaram alguém descontente e esse alguém começou a trabalhar para encontrar uma solução diferente. Mas essa solução diferente deixa todas as outras pessoas descontentes. Por isso, há uma instabilidade permanente.
Penso que a Jugoslávia foi a continuação nesse aspecto, em parte porque metade do país fazia anteriormente parte do Império dos Habsburgos. Por isso, penso que se trata de um problema mais vasto, que se verificou no caso da Checoslováquia e no caso do desmembramento da União Soviética. Agora, voltamos a vê-lo na guerra entre a Ucrânia e a Rússia. Essencialmente, trata-se da criação de países etnicamente puros. No final desta guerra, não haverá russos na Ucrânia.
Trabalhou no Banco Mundial no auge do neoliberalismo. Desde então, temos visto, por exemplo, Jeff Sachs passar de príncipe da terapia de choque para um dos mais ferozes críticos do imperialismo americano no seio da corrente dominante dos economistas. Ficou surpreendido com esse tipo de evolução?
Jeff foi, naturalmente, associado à terapia de choque, primeiro na Bolívia e depois na Polónia. Mas penso que haja aqui um pequeno equívoco.
O Jeff e eu conhecemo-nos desde essa altura, na Polónia, porque eu estava a trabalhar na Polónia. Até sei que quando ele veio para a Polónia pela primeira vez, as pessoas não sabiam quem ele era, pois chamavam-lhe "Yefrey Zachs".
Ele contribuiu bastante para a Polónia na renegociação da sua dívida externa e a Polónia conseguiu um acordo muito bom. Penso que cerca de 65% da dívida ao Clube de Paris foi cancelada. Jeff teve alguma influência na conceção do Plano Balcerowicz [o programa de transição frequentemente designado por terapia de choque]. Penso que teve uma influência menor mas o programa não foi feito por ele. Foi feito por Balcerowicz e por economistas polacos.
A Polónia tinha uma classe de economistas bastante sofisticada. Um programa semelhante foi implementado apenas dois anos antes por [Mieczysław] Rakowski [Primeiro Ministro Polaco 1988-89]. O plano era semelhante em muitos aspectos, exceto que foi feito sob o antigo regime. Isso significava que eles não podiam reduzir os salários reais, porque teriam greves imediatamente.
Com o Solidarność [Movimento de Solidariedade] a chegar ao poder, podiam baixar os salários reais porque os trabalhadores tinham o governo que queriam [eleito]. Portanto, essa era a principal diferença.
Penso que Sachs sempre esteve muito ligado à ONU enquanto organização, mas também no que respeita às regras da ONU. A razão pela qual ele discordava das políticas dos EUA é a mesma pela qual discorda agora da invasão russa: trata-se de uma violação de uma regra elementar da ONU, segundo a qual as fronteiras não podem ser violadas. Por isso, ele era um crítico muito forte da expansão da NATO.
Pode dizer-se que ele mudou um pouco. O seu interesse era mais pela Economia e agora é mais pela Política Económica Internacional. Percebo esta evolução, mas não a vejo como uma mudança abrupta.
Numa das suas publicações, afirma que os economistas devem provar que lêem outras matérias para além da Economia. Dedicou um post ao escritor português Fernando Pessoa.
Consegue recomendar três bons livros que lhe ocorram neste contexto?
É claro que isso é muito difícil. Há milhares, milhões de livros de ficção, consoante o interesse de cada um.
Acho que estou a ler muito menos ficção do que costumava ler, simplesmente porque tenho menos tempo e menos interesse. Mas continuo a achar que ler ficção é importante. Da mesma forma que é importante ter contacto com a sociedade. E é isso que eu estava a dizer.
Anteriormente, fez uma alusão a uma das minhas publicações, escrito em blogue, que provocou a ira de muitas pessoas quando falei das [suas] vidas não exemplares. Por vidas não exemplares, refiro-me a pessoas cujas vidas são como o seu CVs. Fiquei impressionado com isso. Um tipo foi de um campus para outro campus. Depois foi para outro sítio no campus. Conseguiu a promoção e foi para o terceiro campus.
E isto não é a vida real de um cientista social. Quer dizer, pode ser uma vida fantástica para um astrónomo, porque um astrónomo não precisa de saber como as pessoas vivem e o que fazem. Ele apenas olha para o planeta. Não interessa se o tipo de uma superfície comercial está zangado ou não, não é da conta dele.
Mas a Economia é uma ciência social. Não podemos excluir-nos totalmente da sociedade e sentarmo-nos no nosso gabinete a fazer números. Nesse sentido, acho que ler e conhecer ficção é importante porque é outra forma de aprender sobre a sociedade.
Não podemos aprender todos os autores e temos preferências diferentes, mas estar muito mais exposto à sociedade [é bom]. E, de facto, acho que ter universidades nas grandes cidades faz muito sentido. Porque, quer queiramos quer não, estamos expostos a algumas partes da sociedade. Se apanharmos o metro em Nova Iorque, estamos expostos à sociedade onde quer que vivamos.
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas, fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
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