Capitalism Alone | Branko Milanović | Crítica literária
O capitalismo tornou-se um sistema totalmente global e dominante. Milanovic vinca as principais diferenças entre os modelos de capitalismo vigentes, e desconstrói vários clichês sobre o modelo chinês.
Branko Milanović não é o típico especialista em desigualdade que é promovido pela imprensa. Milanović não tenta resumir processos políticos e históricos num único indicador, de forma acrítica e simplista, comum noutros economistas (até no campo progressista como Piketty). Milanović, vencedor do prémio Leontief em 2018, também não esconde as suas visões políticas atrás de "economês", “artigos científicos" ou “leis económicas invioláveis”; uma prática muito comum entre os tecnocratas de primeira linha, em Portugal bem representados por Nuno Palma e Ricardo Reis. Ao ler o trabalho de Branko Milanović, é difícil não especular sobre a influência da sua experiência pessoal na Jugoslávia. Outros já fizeram a mesma observação e Milanović parece não discordar.
O seu mais recente livro Capitalism Alone (Capitalismo Sem Rivais, no Brasil, um título muito superior aoescolhido em Portugal) é a demonstração disso. Nos agradecimentos do livro, o autor revela a motivação inicial desta empreitada: desenvolver uma teoria sobre o papel do comunismo na História global. A obra vai muito para além dessa questão mas o seu fio condutor - a noção que os sistemas político-económicos são evolutivos - é o fruto de uma visão altamente influenciada pelopensamento marxista.
As lentes marxianas não tornaram Capitalism Alone num livro de nicho para economistas de esquerda, antes pelo contrário. Os seus diagnósticos do estado do capitalismo no Norte Global e do sucesso da China rapidamente despertaram o interesse dos meios dominantes como o Financial Times e The Economist.
O CAPITALISMO TORNOU-SE O SISTEMA DOMINANTE MAS NÃO CHEGAMOS AO FIM DA HISTÓRIA
Milanović defende que o capitalismo - um sistema definido por quatro critérios: produção com vista ao lucro; trabalho assalariado; decisões maioritariamente descentralizadas; e a propriedade privada do capital - é hoje um sistema verdadeiramente global. Essa observação vai muito para além da óbvia constatação do colapso da União Soviética. O economista defende que a completa hegemonia do capitalismo advém do facto dos objetivos do sistema geral e das pessoas sujeitas a este estarem totalmente alinhados. No fundo, este alinhamento faz com que, gostando ou não, a esmagadora maioria da população mundial fala diariamente a língua do capitalismo: as suas ações individuais são uma tentativa de ter maiores chances de sucesso dentro de um sistema de maximização de lucro.
A hegemonia do capitalismo não faz com que Milanović chegue à conclusãoFukuyamista de uma convergência gradual das nações para um modelo único e harmonioso de democracia liberal capitalista. Na obra, o mundo contemporâneo é dividido em dois modelos capitalistas: o capitalismo liberal meritocrático e o capitalismo político, em que os Estados Unidos e China são respectivamente os seus principais actores.
A FARSA DO MÉRITO
O capitalismo liberal meritocrático pode ser visto como o modelo do período neoliberal no Norte Global. Este modelo é o sucessor do capitalismo social democrata (período do New Deal e pós-guerra, em que o crescimento do capital foi mais contido) que por sua vez tinha sucedido ao capitalismo clássico (Reino Unido antes de 1914, onde há uma separação quase total entre capitalistas e trabalhadores, onde os capitalistas são bem mais ricos). O capitalismo liberal meritocrático promove vários tipos de desigualdade de forma univetorial. O sistema dá um poder desproporcional a um grupo restritivo de pessoas nos mais importantes quadrantes da sociedade. Resumidamente, as pessoas com mais capital são simultaneamente aquelas com maiores salários (Homoploutia), que geralmente se casam entre si (Assortative Mating), colocam os filhos em escolas restritas e exercem um poder desproporcional no sistema político através de doações (Oligárquico). A educação pública e universal, uma das heranças do capitalismo social democrata, vai-se desmantelando e é criado um sistema em que quem tem mais capital (e rendimentos), têm acesso privilegiado a um sistema de educação (e de networking) de elite. Este modelo maioritariamente sustentado pela filtragem social, através dos colégios privados e das legacy admissions em universidades de topo (também os MBAs, esquecidos por Milanović), aumenta as chances de sucesso dos mais ricos dentro do seu próprio jogo.
Milanović explica com clareza o porquê de classificar este modelo de liberal e meritocrático. O ‘liberal’ (definição norte-americana) advém da existência de bem públicos e alguma taxação sobre a riqueza, que são alguns dos resquícios do modelo antecessor, o capitalismo social democrata. A classificação do modelo como meritocrático não advém de uma convicção de justiça social ou de ausência de barreiras para atingir o sucesso. O economista considera o modelo dos países do norte global meritocráticos devido a ausência de barreiras legais na ascensão social. Apesar dos mecanismos que perpetuam a desigualdade, o componente meritocrático do sistema coopta a classe trabalhadora “mais talentosa”, uma minoria que consegue progredir através do seu talento e da (ainda) existência de um estado social. Esta minoria, ao progredir pelo seu próprio mérito, legitima a posição de domínio das elites, e consequentemente dá legitimidade ao sistema como um todo.
Estranhamente, Milanović não explora em detalhe a desigualdade de acesso à habitação, como uma força emergente do capitalismo liberal meritocrático. Numa economia cada vez mais concentrada em poucas cidades, em que a habitação nestas é cada vez mais cara, o lugar onde se nasce dentro de um país é um componente-chave do capitalismo liberal meritocrático. Os mais ricos, para além de passarem capital e proverem uma educação elitizada aos seus filhos, também permitem o acesso a cidades - que são mercados de trabalho - inacessíveis para uma boa parte da população. No final do livro, o economista identifica o acesso à cidadania de um país como um activo económico (‘nascer no país certo’ é uma renda económica) mas a sua análise ignora quase por completo as mesmas forças dentro de um país.
No que diz respeito a um plano de ações para reduzir a desigualdade, o economista apresenta bastante cepticismo em relação a um retorno da social-democracia do pós-guerra. Milanović relembra que a desigualdade de património (não salarial) entre os Estados Unidos e países Escandinavos é bem mais semelhante do que o social- democratas gostam de admitir. Como tal, as medidas apresentadas para combater a desigualdade e tendências oligárquicas do capitalismo liberal meritocrático são essencialmente duas: a taxação de riqueza e heranças; e limites aos financiamentos privados a partidos políticos.
UM CAPITALISMO COM CARACTERÍSTICAS CHINESAS
O capítulo onde Milanović analisa o capitalismo político, atual sistema da China - mas também do Vietname, Singapura, Malásia, Etiópia, Argélia, entre outros - é claramente o ponto mais forte do livro. A sobreposição, mesmo que imperfeita, entre antigos países socialistas e o capitalismo político não é um acaso histórico.
O economista defende que o papel histórico do socialismo no século XX, em especial no terceiro mundo, foi acima de tudo um processo de transição do feudalismo para o capitalismo, aquilo que foi o papel da burguesia no Norte Global. Não coincidentemente, os países que mais beneficiaram economicamente do socialismo foram aqueles com economias maioritariamente agrárias (China ou Vietname), opondo-se a sociedades industrializadas e integradas (Checoslováquia ou Alemanha de Leste). Este fenómeno deveu-se à relativa eficácia do modelo socialista de economia planificada a criar cadeias industriais, através de programas de eletrificação, educação, urbanização e infra estruturas.
Milanović foca-se na China para mostrar que o capitalismo político é um sistema político-económico próprio, e não uma mera versão suavizada da transição dos países do Leste Europeu, conhecido como terapia de choque. Os três pilares do capitalismo político, em especial no leste asiatico, são: i) uma burocracia tecnocrática e eficaz, que tenha como objectivo promover melhorias materiais para a população; ii) uma aplicação selectiva e maleável do estado de direito, de forma a que o Estado consiga agir sem restrições legais; iii) e por fim, a autonomia do poder político face ao poder econômico.
Estas características tornam a corrupção algo endêmico, que resulta da tensão entre uma burocracia eficaz e alguma arbitrariedade do estado de direito. A corrupção, como uma característica inata do sistema, não é uma crítica de inferioridade moral, até porque o autor chama o capitalismo liberal meritocrático de Oligárquico. A corrupção é apenas uma consequência do uso do poder político para direcionar o sistema económico na direção desejada, a qualquer momento.
Com estas características, o capitalismo político consegue, através do uso arbitrário e flexível da lei, desenvolver projetos de infraestrutura em velocidade relâmpago (aqui, aqui, aqui e aqui) sem processos de consulta ou guiar o poder económico (por exemplo, pressionar bilionários a doar parte das suas fortunas).
A análise de Milanović contradiz por completo algumas das principais “certezas” do pensamento liberal sobre a China. Primeiro, o economista defende que o período de reforma liderado Chines, liderado por Deng Xiaoping, não é uma aproximação gradual ao modelo capitalista ocidental. Milanović alega que este período deve ser visto como a criação de um modelo próprio de capitalismo político (Milanović apelida Deng Xiaoping de criador do capitalismo político moderno), onde o poder político exerce controlos sobre o poder económico, que tem uma autonomia política limitada.
O capitalismo político não tem uma direção única e um ritmo constante. O sistem tanto tem períodos liberalizantes, como tem períodos de maior controlo sob a iniciativa privada. A essência do capitalismo político foi capturada porChen Yun na sua metáfora da gaiola (controlo do estado) e do pássaro (iniciativa privada). Se a gaiola for demasiado pequena, o pássaro morre estrangulado; sem gaiola, o pássaro voa livremente e foge.
Em seguida, Milanović tenta explicar o sucesso, apelo e legitimidade do capitalismo político. O autor recusa-se a seguir o caminho facilitado, de economistas como Acemoglu, e fazer previsões fatalistas, em que o sistema vai colapsar porque "não tem instituições inclusivas“. Milonovic defende que a legitimidade do capitalismo político vem da sua capacidade de gerar constantes melhorias nas condições materiais da população. O sistema tem mostrado os seus méritos, e a sua legitimidade é material. Ao contrário do capitalismo liberal meritocrático, o sistema não pode provar a sua legitimidade através das suas características naturais como o direito ao voto. Consequentemente, o capitalismo político está constantemente a ser pressionado para promover melhorias económicas, de forma a garantir a sua legitimidade. O sistema está constantemente a ajustar o “tamanho da gaiola” de forma a manter um equilíbrio sustentável (não estático) entre crescimento económico, corrupção e liberdades individuais. É este difícil equilíbrio é aquilo que o legitima politicamente.
Esta reflexão é o oposto do clichê que o crescimento económico irá inevitavelmente tornar a China numa democracia liberal. Existem vários exemplos práticos que reforçam o pensamento de Milanović. Um deles é o esforço do governo chinês para melhorar a qualidade do ar, em resposta a pressões populares; o outro são as quase seis décadas de capitalismo político, em Singapura, onde os ganhos materiais parecem falar mais alto que eventuais exigências democráticas.
Por fim, a gestão de pandemia testou e reforçou algumas das teses do economista. O eficaz controlo do covid nos primeiros anos de pandemia mostrou as principais vantagens do capitalismo político: uma burocracia eficaz e relativamente autônoma do poder económico. Contudo, uma das fragilidades apontadas ao capitalismo político é a sua dificuldade em reverter decisões anteriores. As dificuldades do governo Chines em passar de uma política de covid zero para um novo equilíbrio - com menores restrições combinadas com vacinação em massa - parece dar razão a Milanović.
A ausência de um enquadramento e contextualização da América Latina é um dos pontos fracos dos capítulos sobre o capitalismo liberal meritocrático e o capitalismo político.
NÃO DÁ PARA FUGIR A COMPETIÇÃO
Ao longo dos anos, Branko Milanović tem sido um forte opositor da teoria de “degrowth” (decrescimento), tendo tido vários debates com o antropólogo económico Jason Hickel. Apesar da segunda metade do livro ser mais descritiva e um pouco desconexa, o autor levanta um ponto bastante relevante para este debate e para o futuro de Portugal.
O capitalismo é um sistema que força a competição constante entre as nações, independentemente do nível de desenvolvimento. Milanović alega que se uma sociedade decidir coletivamente que já é suficientemente próspera, e que não precisa de crescimento, vai perdendo a sua vantagem relativa e será dominada economicamente por outros países.
Com o tempo, estrangeiros vão começar a comprar os bens e imóveis, aumentando os preços para a população nacional, destruindo o objetivo inicial de manter um nível de bem estar social constante. O autor usa Veneza e Florença como exemplos deste fenómeno, que podem soar familiares aos leitores portugueses. Milanović não parece defender o crescimento económico com paixão mas apenas como modo de sobrevivência neste sistema que se tornou totalmente global e altamente competitivo.
Em 2019, quando Capitalism Alone foi publicado, as ideias de Milanović pareciam marginais e vistas com curiosidade intelectual pelos meios dominantes. Em 2023 - depois de anos de pandemia, a invasão do capitólio, guerra entre Rússia e Ucrânia e a necessidade de um Estado mais musculado - o diagnóstico de Capitalism alone tornou-se pop. As colunas de opinião e o novo livro de Martin Wolf, comentador-chefe de economia do Financial Times, são a prova disso.
NOTAS:
1. A análise do capitalismo político, em que o uso da lei de forma maleável é uma forma de controlar o poder económico fez-me lembrar uma uma entrevista ao antigo vice-presidente de Evo Morales, em que ele fala das negociações do governo com o capital estrangeiro:
“Dei o exemplo de quando éramos governo e tivemos que negociar com Repsol, Total, BR e Petrobras. Quer dizer, com tubarões do setor petroleiro. O mesmo fizemos com a telefonia italiana, com as empresas elétricas norte-americanas, de água francesas e etc.. Em todos os casos, antes de sentarmos para dialogar, mandamos nossos exércitos de auditores para revisar suas contas, auditar seus pagamentos de impostos, verificar suas dívidas e seus processos. E uma vez descobertos o conjunto de erros, fraudes e evasões que envolviam bilhões de dólares e processos internacionais que podiam levá-los à cadeia, uma vez verificado esse rosário de irregularidades, aí sim nos sentávamos com eles. De fato, nos sentávamos fazendo-os saber (se encarregaram os auditores) que conhecíamos seus delitos. Não somente sabíamos, mas processamos. Somente aí, sobre um golpe de força, você sentava com eles e negociava.”
Num capitalismo global e financeirizado, a capacidade de usar o sistema judicial contra o poder económico continua a ser uma das maiores armas de qualquer estado. Algo que devemos refletir.
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas, fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
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