Um século de Ricardos Reis
Quando a inflação disparou em 2022, o economista foi buscar ao baú o moralismo classista característico do liberalismo em períodos de instabilidade
Ricardo Reis é um tecnocrata inimigo dos trabalhadores. Não há dúvidas disso. Em 2022, durante o pico inflacionário que criava um conflito distributivo entre trabalhadores e patrões, o economista ou optou por:
i) ou usar o economês dominante “dos salários não podem subir por decreto, porque os salários acompanham a produtividade”
ii) culpar os pobres pelas suas condições de vida, e implicitamente, pelo défice de qualificações histórico de Portugal.
A RELAÇÃO SALÁRIOS E PRODUTIVIDADE NÃO É UMA LEI DA FÍSICA
A tese que os salários irão subir com melhorias da produtividade é um pilar da economia ortodoxa bem representada nos comentários de Ricardo Reis. Ricardo Reis fala desta relação quase como uma lei da física.
Contudo, como qualquer relação económica, esta depende da interação entre diferentes agentes sociais. Neste caso, trabalhadores e patrões. O valor que os trabalhadores conseguem reter da mais valia que criam depende da sua relação de poder, e existem exemplos de longos períodos em que os trabalhadores não foram capazes de beneficiar dos seus ganhos de produtividade.
Como apontado recorrentemente por Paulo Coimbra e Nuno Serra, os salários dos trabalhadores portugueses neste século não têm acompanhado a produtividade.
Esta divergência também pode ser observada nos Estados Unidos da América desde meados da década de 1970. O início do período neoliberal, em que o enfraquecimento do sindicalismo e proteções sociais.
Se formos para o início do período industrial, as grandes alterações na produtividade do trabalho não se traduziram em ganhos materiais para os trabalhadores, durante sensivelmente 50 anos. O desenvolvimento tecnológico era totalmente capturado pelo Capital. Este período foi posteriormente cunhado de Pausa de Engels.
Ou seja, liberal-tecnocratismo tem tropeçado na realidade durante décadas.
POBRES? BEBAM MENOS ÁLCOOL E COMAM MENOS CHOCOLATES
Em Setembro de 2022, Ricardo Reis decidiu falar de como alguns pobres são responsáveis pela sua pobreza, por um suposto excesso de consumo de cerveja e televisão. No fundo, uma versão portuguesa do “mulheres e álcool” do ex-ministro das finanças holandes, Jeroen Dijsselbloem.
O timing de Ricardo Reis não era inocente. Inflação em Portugal estava nos 9%, praticamente o máximo visto em 30 anos. O desemprego estava relativamente baixo, mas os salários foram corroídos pela inflação.
Empresários pediam mais emigrantes para tentarem controlar qualquer pressão salarial que um cenário de baixo desemprego pode trazer.
Os lucros nos Estados Unidos da América estavam em máximos de décadas - algo reconhecido pelo Financial Times, insuspeito de qualquer esquerdismo. O papel dos lucros na inflação foi posteriormente reconhecido por organizações como o BCE.
Com toda essa informação, Ricardo Reis achou por bem reflectir sobre a pobreza e afirmar que alguns pobres “são incapazes de rejeitar o prazer imediato de beber mais uma cerveja ou ver mais um programa de televisão em vez de fazer o sacrifício de investir umas horas a estudar.
Clara Mattei, economista e autora do ‘The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism’, mostra que esta estratégia é bem velha.
Mattei relembra que em 1920, Einaudi, economista “liberal” e posteriormente Presidente de Itália no pós-guerra, também identificava um certo desvio de caráter na ascensão da classe trabalhadora. O economista afirmou que “os salários dos operários [em] Itália aumentaram visivelmente ... a necessidade de poupar é sentida pelo camponês ... talvez não seja igualmente sentida pelo trabalhador. A evidência é o aumento conspícuo do consumo de álcool, doces, chocolates e biscoitos”.
Quando a realidade não se encaixa nas suas teses, os economistas ortodoxos tem sempre o povo para culpar.
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