Um país, dois salários, uma renda
A globalização torna próxima da realidade a Lei de Um no mercado imobiliário, enquanto que, no mercado laboral, os portugueses não têm tanta sorte.
Em declarações no próprio jornal que dirige, João Vieira Pereira afirmou no Expresso que os preços das casas só sobem porque alguém as compra.
A afirmação é uma banalidade, e não deixa de apontar para um ponto essencial: Quem são essas novas pessoas que fazem subir os preços das casas? A resposta imediata e certa são os compradores estrangeiros. Os compradores dos Vistos Gold (agora extintos) que eram usados para aceder a direitos de mobilidade no espaço europeu, os turistas que arrendam por curtos espaços de tempo, e os nómadas digitais que escolhem Portugal como lugar onde conduzir as suas vidas enquanto mantêm os empregos bem remunerados dos seus locais de origem.
É sobre estes nómadas digitais que a análise se torna mais interessante. Ao contrário de um turista, ou de um comprador de um visto gold, à partida, a sua vivência não é assim tão diferente da de um português. Em grande medida, os nómadas têm os mesmos trabalhos que muitos portugueses, contudo, auferem de salários quatro ou mais vezes superiores. Surge uma nova questão - como podemos explicar que um nómada digital seja capaz de comprar uma casa no mercado português, pelo mesmo preço e com a mesma burocracia (e um eventual desconto nos impostos), mas o português não consiga adquirir as mesmas condições de emprego do nómada digital?
Se o preço das casas em Lisboa é mais baixo do que em Nova Iorque, o Nova Iorquino comprará casas em Lisboa (fazendo o preço da habitação subir). Mas se o custo do trabalho é mais baixo em Lisboa do que em Nova Iorque, porque é que o empregador Nova Iorquino não se limita a contratar em Lisboa?
Se quisermos ser mais técnicos, porque é que o mercado imobiliário não tem fricções, mas o mercado de trabalho está repleto delas?
Ou ainda noutros termos, porque é que o acesso de um americano à compra de casa em Portugal é uma autoestrada aberta, mas para um português conseguir um trabalho remoto de um americano é um caminho de cabras?
TRABALHOS DESLOCADOS, SALÁRIOS DIFERENTES
O fenómeno através do qual países mais ricos deslocalizam postos de trabalho para países de rendimentos médios é notório, apesar de não haver reflexo na subida de salários.
Basta olhar para o logotipo do BNP Paribas, banco sediado em Paris, que paira sobre uma das torres do Centro Comercial Colombo. Hoje afirma ter mais de 7.000 funcionários em Portugal, um número notável, dado quase não ter balcões para clientes por cá.
O processo de crescimento do BNP Paribas foi acontecendo com o corte de funcionários não só em França, como em países como a Alemanha. Eliminaram-se postos de trabalho com remunerações superiores a 5.000 euros ao mês para poder desfrutar dos baixos custos do trabalho português, muitas vezes, abaixo das remunerações das da banca portuguesa.
Sendo talvez o BNP Paribas o projeto mais notável, não é o único. No Portugal pós Troika, quase a par do processo de turistificação da economia e do inchamento do mercado imobiliário, empresas de todas as dimensões transferiram funções de back-office para Portugal. Ou seja, um vendedor de produtos financeiros parisiense efetua uma transação no Mónaco, e todos os processos operacionais, de validação e ajuste de preço podem ser conduzidos em Lisboa.
Ao contrário do que sucedeu depois da entrada de Portugal no espaço europeu, com o boom de contratação por parte de consultoras e auditoras para servir o mercado português, o recente fenómeno de deslocalização passa por conduzir os processos que servem o negócio noutros países a partir de Lisboa ou do Porto. Mesmo essas auditoras e consultoras passaram agora a fundar “centros tecnológicos” e “centros de competências” para servir os mercados globais em Portugal.
Assim, Portugal passou a ser o back-office das operações financeiras da banca parisiense, do desenvolvimento do software dos carros alemães e dos fundos de pensões britânicos. No entanto, ao contrário dos fluxos de capitais que trazem os preços das casas para os níveis dos novos compradores estrangeiros, a relocalização dos postos de trabalho para Portugal está longe de trazer o nível do salário português ao do francês ou do estadunidense.
PORQUE É QUE OS SALÁRIOS NÃO SOBEM?
A resposta óbvia estará na intemporal assimetria entre os fatores trabalho e capital. As regras do jogo para quem investe não são as mesmas para quem trabalha.
No caso específico das economias de back-office, podemos apontar rapidamente os seguintes fatores:
- Os trabalhos deslocados correspondem a funções com pouco poder executivo, não permitindo aos trabalhadores poder interno para renegociar as condições salariais;
- A subida para o topo da hierarquia é feita para fora de Portugal – por motivos de política interna ou de conveniência operacional, as oportunidades para trabalhadores portugueses ascenderem aos cargos com maior poder de decisão implicam a deslocalização para os centros de poder da empresa;
- No caso português, a chegada dos novos postos de trabalho coincidiu com a pauperização do pós troika;
- A ameaça de uma nova relocalização (concretizável ou não) para outro país (a Índia como exemplo mais óbvio) retira poder negocial aos trabalhadores;
- A não partilha da cultura dos altos quadros da empresa de origem é um tampão à subida na hierarquia. (Veremos este ponto com detalhe mais à frente).
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Trabalhas numa empresa deslocada em Portugal e sentes-te capaz de acrescentar informação às razões para as restrições ao nível salarial? Escreve-nos com total confidencialidade para republicapijamas@gmail.com.
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BACK-OFFICE TRAP
Este fenómeno não é exclusivo a Lisboa ou ao Porto. Durante a última década, cidades periféricas do Mundo Ocidental – na Europa Central, Varsóvia e Budapeste, no relativamente pobre sudeste dos EUA, Jacksonville e Atlanta – passaram a acolher empregos dispensados de cidades centrais como Nova Iorque e Londres.
O tempo dirá, mas esta pode ser a versão de trabalhos de escritório da middle income trap – países/regiões (ex: Brasil) que, depois de um desenvolvimento tardio em que reduzem a distância para com os países mais ricos, ficam “presos” num nível de rendimento intermédio. No caso português, depois do desenvolvimento intenso em indústrias como o têxtil, o crescimento económico perdeu fôlego com a incapacidade de competir nas indústrias já dominadas pelas economias mais avançadas.
Neste caso, com a impossibilidade de as empresas portuguesas ascenderem a multinacionais, a par daquelas dos países mais ricos do ocidente, o destino da geração mais qualificada de sempre passa a ser o back-office das multinacionais já dominantes. O ciclo vicioso é depois reforçado pela impossibilidade de surgirem novas multinacionais em Portugal, pois os trabalhadores já se encontram no back-office das multinacionais estrangeiras.
Assim, de mão dada com o turismo, a economia baseada em back-offices contribui para a simplificação da economia portuguesa.
O VALOR DA NACIONALIDADE ECONÓMICA
Quer seja via nómadas digitais, deslocação de escritórios ou contratações em geral, a nacionalidade tem um impacto direto nos salários auferidos pela mesma função e nas oportunidades de obter cargos de topo.
Não estamos a falar de nacionalidade no sentido estrito legal, mas sim de nacionalidade num sentido sócio-económico.
Vejamos o caso de CEOs estrangeiros de empresas portuguesas. A ex-CEO da TAP, Christine Ourmières-Widener, chegou aos comandos da TAP depois de uma carreira sediada em França. O também ex-CEO da Galp, Andry Brown, chegou à dianteira da petrolífera portuguesa depois um percurso por multinacionais britânicas.
Já olhando para os executivos portugueses no estrangeiro, António Horta Osório, depois de concluir a formação na Universidade Católica, passou diretamente para a banca estadunidense e Carlos Tavares, destacado na francesa Renault, tirou os pés de Portugal aos 17 anos.
Num mundo globalizado, é fácil imaginar um gestor que fez a carreira por uma multinacional britânica tornar-se CEO de uma empresa portuguesa numa fase mais apagada da carreira. Um CEO português de topo que fez toda a carreira em Portugal passar para o comando de uma multinacional britânica é um cenário bem mais distante. O caminho do CEO português para chegar ao topo dos mercados internacionais faz-se “lá fora”.
CIDADANIA COMO RENDA
Branko Milanović, num argumento exposto no livro “Capitalism Alone” (já abordado aqui), aborda o conceito de renda de cidadania. Milanović explora casos como o de cidadãos franceses e malianos em que, apesar de terem a mesma educação, experiência e capacidade de trabalho, o Francês chega a ter cinco vezes o salário do Maliano.
Aqui, ao contrário de Milanović, não queremos cingir-nos ao critério de uma cidadania jurídica, mas num sentido de nacionalidade cultural de normas, hábitos partilhados e enquadramento em círculos sociais.
Estes fatores transmitem-se especialmente na educação onde, por exemplo, um estudante Lisboeta do Lycée Français consegue ser considerado francês do ponto de vista cultural; ou a frequência num MBA em Nova Iorque durante 2 anos permite um quadro empresarial espanhol tornar-se mais confortável junto da elite estadunidense.
MERCADOS DUAIS E APROFUNDAMENTO DA GLOBALIZAÇÃO
O critério de nacionalidade económico-cultural é certamente menos definido do que o de cidadania. Por exemplo, Rishi Sunak, de ascendência Sul Africana-Indiana, consegue estar o suficientemente enquadrado na (alta) sociedade britânica para ser primeiro ministro depois de passar pela elite das boarding schools britânicas, enquanto no Japão os Hafu, de ascendência mista, não conseguem ser considerados japoneses na totalidade.
Para os propósitos da situação portuguesa atual, basta-nos notar que o abismo entre os nómadas digitais e os “nativos” portugueses é colossal. Enquanto facto isolado, a incapacidade de um cidadão português com as qualificações e capacidades certas ascender aos empregos de topo da economia mundial pode ser considerada injusta. Quando agregada ao facto de que cada vez mais funcionários do topo da hierarquia mundial vivem em Portugal, inflacionando o preço do imobiliário (e não só), é catastrófica.
A globalização torna a Lei de Um Preço (haver apenas um preço a ser praticado num dado mercado) próxima da realidade num mercado de capitais como o do imobiliário, enquanto que, no mercado laboral, mecanismos como os explicados acima impedem que tal aconteça. Apesar da igualização formal que mecanismos como o Tratado de Bolonha trouxeram, o abismo dentro do espaço europeu não se dissipou.
Esperar que mecanismos de mercado conduzam a uma subida significativa dos salários portugueses no back-office das multinacionais, ou que os portugueses capturem os empregos que os nómadas digitais carregam com eles é pura miragem. Do outro lado, enquanto a avalanche de nómadas digitais não parar, a tendência será sempre para uma subida dos preços da habitação.
O mercado imobiliário continuará a portar-se como um mercado próximo de “perfeito”, em que o fluxo de nómadas digitais só cessará quando o custo de vida em Portugal deixar de ser o suficientemente baixo para justificar a maçada de uma mudança para Portugal. Enquanto isso, mesmo num dos cenários mais otimistas, o aumento dos salários nunca conseguirá acompanhar o galope do custo de vida. As “imperfeições de mercado”, como fatores culturais ou a distância física dos centros de decisão, impedem a convergência entre os salários nominais dos portugueses e dos nómadas digitais.
Face a isto, vários poderão propor soluções diferentes, mas todas aquelas que se baseiam em “deixar os mercados funcionar” deverão ser descartadas como inúteis.
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