Não é a falta de propostas, mas o seu potencial transformador, que faz a imprensa dominante ignorar o ativismo jovem
Episódios recentes mostram que para as narrativas dominantes os jovens interessam até ao ponto em que fazem propostas sérias
No dia 3 de Fevereiro de 2024, na Praça do Município de Lisboa, aconteceu uma contramanifestação frente à manifestação organizada pelo neonazi Mário Machado. Poucos dias antes, a plataforma “Coletivo Matéria” era lançada, propondo-se a ser “a caixa de entrada de ideias dos jovens para melhorar o país.” A segunda iniciativa foi prendada com destaque mediático, descrita como um “furar a bolha”. Colheu apoio de um leque de notáveis que vai desde Daniel Oliveira, colunista do Expresso do espectro político da esquerda, até Pedro Santa Clara, grande impulsionador da mudança da Nova SBE para Carcavelos e membro do +Liberdade, passando pelo arquiteto Álvaro Siza-Vieira.
A contramanifestação, apesar de uma observação trivial mostrar que estava repleta de jovens, foi relegada ao esquecimento. Nos noticiários foi pouco além dos rodapés. É fora dos media dominantes que conseguimos saber os moldes do que se passou. Como reportado pelo jornal Setenta e Quatro: “a polícia carregou sem ter sido provocada e sem dar qualquer aviso ou ordem de desmobilização.” Também destacou que “três pessoas foram detidas e, segundo conseguimos apurar, pelo menos dez ficaram feridas, sete das quais tiveram de receber assistência hospitalar.” Noutro meio de comunicação, o Fumaça, lemos que “[um jornalista] levou várias bastonadas de três agentes na cabeça, na mão direita, nos braços e nas costas.”
Nem o que aconteceu, nem o que era defendido, nem as motivações dos que se deslocaram à Praça do Município foram alvo da curiosidade dos media hegemónicos. Para entender os desafios dos jovens atuais, este evento, e outros de semelhante natureza, são excluídos da tarefa de montar o puzzle sobre os jovens dos dias de hoje. Nem sequer as agressões que os jornalistas sofreram em exercício de profissão contam (jornalistas esses que, seguindo os parâmetros mediáticos, são jovens).
Num episódio parecido deste mês, a idade, iniciativa e motivos de manifestantes antifascistas não entraram nas narrativas mediáticas. Os relatos da versão da PSP sobre os acontecimentos dominam as narrativas.
Para as narrativas dominantes, um jovem é interessante enquanto se enquadrar no perfil moderado (tanto tecnocrático como generalista) que é acolhido em iniciativas como o Coletivo Matéria e na capa de revistas como a Sábado. O interesse esfuma-se quando foge ao perfil de um sensível “social-liberal” - reformista, crente nas instituições e com pouca crítica de fundo ao funcionamento da sociedade e às suas estruturas de poder.
No entanto, não é preciso recuar muitos anos para encontrar um tom diferente na imprensa. Como a imagética de uma das notícias sobre o Coletivo Matéria denúncia, o jovem zangado de microfone ainda captura um espaço na imaginação.
Para melhor entender como o tom mudou, é essencial olhar para a adolescente sueca que fez mover o mundo há meia década.
DA SUÉCIA PARA O MUNDO
Em 2019, a foto da capa de pessoa do ano para a Revista Time foi tirada em Portugal. A personalidade distinguida era Greta Thunberg e o motivo era “por soar o alarme acerca da relação predatória da humanidade com a única casa que temos.” A sueca, antes uma desconhecida, saltou para a notoriedade depois de organizar greves às aulas em nome do clima - uma linha bem diferente do jovem mediático dos dias de hoje.
A premissa dos protestos era eficaz: jovens, sujeitos a suportar mais tempo das suas vidas o falhanço em travar as alterações climáticas, eram a linha da frente geracional no embate. Antes destes existirem, as alterações climáticas já eram um problema a resolver – no ano em que Greta nasceu, as Conferências das Nações Unidas sobre as alterações climáticas (COP) já contabilizavam nove edições.
A narrativa não se limitou a problematizar a questão das alterações climáticas, colocou-a numa perspetiva de justiça social, em que a presença intergeracional refletia-se na liderança juvenil das massas.
Apesar de a contabilidade não ser trivial, estes protestos, ao ocorrerem em simultâneo em várias localizações pelo mundo fora, estão entre aqueles com mais participação na história. A onda de protestos de Setembro de 2019 contabilizou mais de 6 milhões de manifestantes. Não foi uma coincidência a imagem escolhida pelo jornal The Guardian para assinalar esses protestos ter sido em Lisboa. As manifestações em Portugal também foram massivas.
Com um clima mediático muito diferente do dos dias de hoje, o semanário Expresso associava-se às manifestações com“uma carrinha” onde era possível entregar cartazes usados para lhes “dar uma nova vida.” A revista TimeOut colocou “O Ativista” como o primeiro dos 25 Lisboetas do ano de 2019, destacando os ativistas climáticos estudantis como parte do “grande movimento mundial". Num destaque da revista Visão de 2019, a cobertura das manifestações procurava dissecar todos os bons motivos pelos quais os jovens se mobilizavam pelo clima.
DA OUSADIA À FALTA DE PROPOSTAS
Passados cinco anos, o contraste é brutal. O ativismo destes jovens, antes admirado pela imprensa, passou a ser incómodo. Já em 2023, Henrique Monteiro, ex-Diretor do Expresso, chegou a rotular ativistas de “burras”.
Em fevereiro, face a uma ação da Greve Climática Estudantil em que um ativista atirou tinta verde sobre Luís Montenegro, sentiu-se o peso deste tom até entre a esquerda. Por exemplo, a coordenadora do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, ao invés de só distanciar-se da ação, concordando vagamente com a causa, como muitas vezes é feito por este campo político, categorizou os ativistas como “piores defensores dessa causa” – palavras bem mais duras do que as utilizadas por boa parte da direita (e de certa forma legitimando uma postura mais agressiva da direita em futuros episódios) .
Um ciclo de ações da Greve Climática Estudantil é paradigmático sobre como chegámos ao atual tom, articulado pela imprensa, e replicado por muitos. No Outono de 2022, os ativistas contestavam a titularidade do ministério da Economia por parte de António Costa Silva, antigo administrador da petrolífera Partex. As táticas iam além das marchas de 2019, com ocupações de escolas e de faculdades.
Ao contrário de muitas das iniciativas feitas entre a onda de 2019 e então, as ocupações não foram secundarizadas pela comunicação dominante. No entanto, foram sendo esterilizadas do seu conteúdo, com a contestação Costa Silva a passar ao lado das narrativas reportadas. Esta situação durou até a luta política ter sido aproximada (fisicamente) do então ministro da Economia.
Os protestos deslocaram-se das escolas para a sede do próprio ministério da Economia, com estudantes a colarem-se à porta do edifício. Na face da inevitabilidade de reportar as mensagens dos protestos destes jovens zangados, a imprensa viu-se na necessidade de adotar um novo spin.
A dica foi dada pelo próprio ministro, com este a defender-se da contestação política ripostando com a acusação da “falta de propostas” dos ativistas. A imprensa rapidamente apanhou a deixa, passando a estereotipar os protestos como uma emanação de uma energia infantil - muito sentimento e pouco conteúdo.
O CASTIGO DE TER PROPOSTAS
Mesmo antes de examinar as propostas ou falta destas, é útil comparar de novo estes jovens com aqueles com espaço mediático e considerados os mais brilhantes da sua geração. Quer nas intervenções individuais, quer nas listas que estes integram, a regra são opiniões redondas onde se vinca mais a forma do que o conteúdo. Lugares comuns como “soluções”, “liderança”, “crescer” são frequentes na linguagem e tentam preencher o espaço vazio deixado pelo conteúdo. Nada disto impede a comunicação dominante de tratar estes criadores de listas como heróis e futuros comentadores residentes.
Não é de surpreender que estes enfatizem os processos - como a possibilidade de, teoricamente, qualquer jovem poder submeter propostas - ao invés de arriscar em direções concretas. Na melhor das hipóteses, esses jovens têm para oferecer soluções tecnocráticas gradualistas, onde a disputa política fica por entrar. Chavões como “os políticos têm de ouvir jovens e especialistas” e “é preciso investir em educação dos jovens mais pobres” dominam o discurso. Os detalhes programáticos ficam por aparecer.
Mesmo sendo pouco ambiciosas, tal como o 100 Oportunidades lançado em 2020 entretanto mostrou, o destino mais comum das iniciativas é o seu definhamento, tendo os seus zenits quando lançadas, para depois serem relegadas ao esquecimento. Fora daqueles organizados em partidos, o mais próximo que estes jovens, maioritariamente sociais-liberais, tendem a ter de organização política são espaços de opinião nos meios de comunicação dominante, ou a participação em orgãos consultivos, mais figurativos do que práticos (como os grupos de reflexão de Marcelo Rebelo de Sousa). O contraste com os ativistas, muitas vezes há anos consecutivos em movimento, é grande.
A “falta de propostas” daqueles que contestaram Costa Silva em 2022 é contradita pela realidade - os ativistas chegam a apresentar reivindicações mais completas do que os programas eleitorais de muitos partidos. O engajamento com os argumentos dos ativas, que chegaram a ser apresentados num artigo na sequência do episódio no ministério da Economia, foi eclipsado pela chuva de acusações sobre a ausência de propostas. Ao lado da falta de ideias concretas, surge a acusação de instrumentalização e de agenda ideológica. Em contraste, é assumido que a atividade confortável dos jovens sociais liberais é movida por um sentimento de missão.
Isto não é um desvio do reportório utilizado pela imprensa para a generalidade dos temas. O tom do debate sobre a atuação dos ativistas está em linha com a falta de conteúdo com que os media dominantes se habituaram a trabalhar.
Quando as crises dos governos de António Costa são postas em retrospectiva, a contestação a António Costa Silva foi apagada do registo mediático. Telenovelas como a da velocidade do carro de Eduardo Cabrita, antigo Ministro da Administração Interna, que resultou num acidente mortal, ou os detalhes da indemnização de Alexandra Reis, com Pedro Nuno Santos e Fernando Medina no centro da ribalta, foram postas no topo da atualidade pelos media dominantes. A discussão em torno da titularidade da pasta da Economia e o seu pensamento económico altamente extrativista, revelado mesmo antes de ser ministro no “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal“, com critérios políticos no centro, foi rapidamente posta de lado.
A acusação de falta de conteúdo não é só falsa, é também o castigo contra quem ousa romper com o telenovelismo que ganha força na cobertura política. O recente episódio em que Sebastião Bugalho, comentador há vários anos e catapultado para eurodeputado pela AD, ficou notoriamente atrapalhado quando questionado sobre a sua posição acerca do aborto tornou evidente este abismo entre exposição mediática e vazio programático.
POR ONDE ANDA A GRETA?
Embora ainda esteja por escrever uma história compreensiva do movimento climático, em que a alteração de táticas - dos protestos para a ação direta e desobediência civil - seja examinada, um fator legitima a atuação dos jovens portugueses: a atuação de Greta Thunberg.
Enquanto a mudança de táticas pode ter surpreendido alguns, e feito perder a legitimidade para outros, a precursora do ativismo estudantil pelo clima seguiu o mesmo caminho dos jovens portugueses.
Tal como estes, esta vai sendo detida sucessivamente em ações de desobediência. Mas enquanto Greta discursava nas Assembleias da Nações Unidas eram-lhe colocados os holofotes em cima, agora recebe o tratamento do ignorar ou da infantilização.
Quando Thunberg é detida a 6 de Abril deste ano, o tom da revista Visão é bem diferente do de há meia década. A cobertura resume-se aos detalhes da detenção da ativista e pouco é dito sobre a causa ou as motivações. Umas semanas mais tarde, a detenção de Thunberg na Suécia, numa ação contra a participação de Israel no festival da Eurovisão, também é relegada às margens. Ficaram ainda por assinalar as parecenças da ações de Greta com as que acontecem nas faculdades portuguesas em defesa da Palestina e do cumprimento de metas climáticas.
É nessas ocupações que a velha tática da imprensa em relação a esses jovens tem sido aplicada: o ignorar. Nos acontecimentos das últimas semanas, como ocupações em cidades como Lisboa, Porto, Coimbra e Braga, o guião da imprensa tem se cingido ao semi-silêncio. As ocupações, apesar de se referirem aos acontecimentos na Palestina que têm ocupado a atualidade, apenas merecem atenção esporádica.
Mesmo quando estudantes são brutalizados pelas forças de segurança nas suas universidades sob o lema de “Fim ao Genocícido, Fim ao Fóssil” os seus relatos não merecem a curiosidade da comunicação dominante.
Para as narrativas oficiais, o jovem digno de fazer política perde-se em chavões e declarações de princípios, sem qualquer ambição de alterar o equilíbrio de forças na sociedade. Nos métodos, procura espaço nos meios de comunicação e órgãos consultivos ao repetir o discurso dos poderosos. Por definição, não se insurge.
MUDAM-SE AS NARRATIVAS, NÃO SE MUDAM OS JOVENS
As discussões sobre a eficácia dos métodos vão para além do âmbito desta publicação. Concordando ou não com estes, cabe aqui contestar a exclusão das ações destes ativistas serem consideradas ou não a representação do que é defendido pela juventude. Quer em manifestações antifascistas, no ativismo climático, na causa em defesa da Palestina, ou na conversão de edifícios abandonados em centros sociais, a atenção aos intervenientes fica-se pelas margens.
Se os jovens estão dispostos a enfrentar violência policial, detenções e julgamentos em tribunal, não se tratará isto de emanação política da juventude? Se o que motiva a atividade estudantil são causas como o clima e a Palestina, como é que é aceitável considerar os tais jovens “sociais-liberais” como porta vozes da sua geração? Se queremos ter uma compreensão completa do que move ou do que não move os jovens, podemos ignorar os que passam das palavras aos atos?
Em manifestações pela habitação, avidamente frequentados por jovens, encontramos reinvidicações como “baixar as prestações pondo os lucros da banca a pagar” e “aumentar o parque de habitação pública do Estado”. Na prática política, as poucas soluções de António Costa que fugazmente se aproximavam dessas exigências foram apelidadas de bolivarianas. Já aquelas apresentadas agora Luís Montenegro, como a isenção do IMT para jovens, não podiam estar mais afastadas daquelas que os jovens saíram à rua para exigir como política habitacional.
Desde 2019 a atualmente, com um marco essencial durante os confinamentos dos anos 2020-2021, a imagem do que são as reivindicações políticas dos jovens sofreu uma reciclagem. A energia que foi trazida por personalidades como Greta foi paulatinamente purgada do seu conteúdo.
A direção desta alquimia foi tornar “a causa dos jovens” num programa maleável pelo poder. As políticas para os jovens já vão surtindo efeitos em programas de baixas de impostos, que, como demonstrado por Vicente Ferreira no blogue Ladrões de Bicicletas, "a maioria dos jovens ganha pouco ou nada com descidas do IRS e do IMT, mas tem muito a perder com cortes nos serviços públicos."
Apesar de poderem mudar as narrativas, não são estas que tornam os jovens menos zangados. No entanto, o dano aos movimentos sociais persiste. Os jovens cujo programa político que não seja um espaço vazio para o poder preencher a gosto vão sendo marginalizados do espaço mediático.
Quando se tenta explicar o sucesso recente da extrema direita entre os jovens cita-se a sua “irritação”. O tratamento mediático atual suprime (e ataca) as vozes irritadas que apresentam um programa político alternativo e tenta de forma constante restringir qualquer alternativa político-programática. Enquanto esta raiva não pode ser suprimida, pode ser direcionada. Para já, o resultado é o reforço daqueles jovens zangados mas em que o programa político fica por apresentar.
Fonte da imagem de capa.
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