Mais Habitação
Oito anos depois, o governo admite a existência de uma crise na habitação. Apesar de algumas boas medidas, o pacote tenta conciliar o inconciliável.
O governo recentemente anunciou o seu pacote de medidas para combater a crise da habitação. As medidas rapidamente foram apelidadas de “Chavistas” pela suposta direita civilizada, e de insuficientes pela esquerda. O governo talvez ache que estas reações são a prova que criou um pacote de medidas equilibrado, o que faz lembrar os defensores da BBC, quando dizem que serem criticados simultaneamente pela esquerda e pela direita prova a sua imparcialidade.
Contudo, o timing e o teor das medidas revelam uma realidade menos simpática.
A CRISE DOS INQUILINOS NÃO COMEÇOU ONTEM
Ao contrário da recente inflação, a crise da habitação já tem vários anos; provavelmente tantos como os três governos de António Costa. Por isso, o timing de ação do Governo não deve ser visto de forma neutra. As expectativas frustradas de um pós-pandemia com habitação mais acessível (e menos turismo) aumentaram a pressão popular; acompanhada de uma maior oposição e cobertura mediática. Contudo, há outros dois fatores que não devem ser ignorados no timing do governo: a subida das taxas de juro e as recentes mudanças internas do executivo.
As recentes subidas dos juros conseguiram tornar o europeísta António Costa num crítico do BCE. Esta reação revela algo mais profundo sobre o governo. A crise de habitação só se tornou uma prioridade política quando começou a afetar proprietários (juros altos criaram dificuldades a pagar os créditos à habitação), e colocar alguns riscos ao sistema bancário (incumprimento por parte das famílias afeta a rentabilidade e estabilidade bancária). Enquanto esta era uma “mera” transferência permanente de rendimentos entre inquilinos e proprietários, a crise da habitação foi ignorada.
O pacote de habitação tem um duplo papel face ao equilíbrio interno do governo e do PS. Por um lado, ao anunciar medidas rapidamente apelidadas de “Gonçalvista” e “Bolivariano” pela direita, o governo desvia as atenções das recentes crises internas e remodelações. Por outro lado, ao anunciar o maior pacote na área da habitação dois meses depois da demissão de Pedro Nuno Santos, anterior ministro com a pasta da habitação, é claramente uma estratégia para fragilizar o maior rival interno de António Costa.
UMA GRANDE PPP
As medidas do governo podem ser divididas em três grandes componentes: um conjunto de ajudas directas do estado a privados; medidas de moderação da procura internacional; e um envergonhado arranque de um Estado mais ativo na habitação.
O polémico arrendamento compulsório, o apoio às prestações bancárias e o pagamento de rendas em incumprimento são no seu essencial parcerias público-privadas; onde o Estado é um mediador inclinado a favor dos senhorios e bancos. O Estado usa o seu músculo para eliminar o risco de investidores privados, tornando-se num pagador de último recurso, mas apresenta estas medidas como se fossem um generoso pacote de ajudas sociais. O Estado, ao não colocar em causa margens de lucros e direitos de propriedade, está a entregar um conjunto de subsídios a privados, sem qualquer mecanismo que possa disciplinar o capital.
A maior perversidade deste pacote está nas mudanças estruturais do papel do estado na sociedade. As Finanças tornam-se responsáveis por cobrar rendas em atraso em nome dos senhorios, algo já feito pelo Grupo Mello nas portagens. Ao mesmo tempo, o Estado transfere em parte a sua responsabilidade de regulador para arquitetos e projetistas privados, nos processos de simplificação do licenciamento. Esta reorganização das funções do estado - privatizando as suas próprias responsabilidades por falta de investimento público e de recursos técnicos nas autárquicas, enquanto as Finanças se tornam um colector de dívidas de negócios privados - intensifica uma tendência do neoliberalismo: um Estado cada vez menos autónomo que usa os seu peso em favor de grupos económicos.
ALGUMAS MUDANÇAS, APOSTAR NA MESMA VANTAGEM COMPETITIVA
No combate a maior causa da crise habitacional, a procura internacional, o governo tenta mostrar um plano transformador, mas deliberadamente cheio de falhas. Terminar os Vistos Gold, um programa que Bruxelas quer abolir, é uma medida que apenas peca por tardia. No entanto, estes vistos não são a principal fonte de procura internacional. Até 2021, tinham sido emitidos cerca de 9.5 mil vistos por aquisição de imóveis, que se compara com mais de 30 mil alojamentos locais apenas nos municípios de Lisboa e Porto. Os residentes não habituais, que continuam em crescimento, já eram mais do dobro do número total de Vistos Gold em 2018.
As restrições ao alojamento local são uma medida promissora. Dito isso, sem uma carga fiscal pesada nos alojamentos locais existentes, o governo (ao fechar o mercado a nova concorrência) está a entregar aos proprietários de alojamentos locais uma renda de ouro. Se a reforma do alojamento local ficar por aqui até 2030, o governo está essencialmente a proteger os atuais proprietários. A necessidade de criar uma excepção para alojamentos rurais em concelhos do interior do país retrata as fragilidades da centralização em Portugal. Se queremos ver as áreas metropolitanas com os níveis de intervencionismo de Viena, Berlim e Barcelona, precisamos de dar mais poderes aos governos locais, em vez de esperar que governo central que tenham em conta as assimetrias regionais do país.
Ao manter o regime dos residentes não habituais (900 milhões por ano, tanto como este pacote) e os vistos para nómadas digitais, o governo defende que Portugal deva continuar a tornar-se num local de consumo (e não de produção e inovação), através de novos tipos de turismo de longa duração. Enquanto esta for a estratégia de padrão de especialização económica, Portugal - Lisboa e Porto em particular - estará condenado a tornar-se cada vez menos competitivo e inovador.
Ao contrário da propaganda liberal, não é a carga fiscal e as leis do trabalho que estão a deixar Portugal para trás. Apesar de menos produtiva, Lisboa tornou-se tão ou mais cara que Madrid e Milão, seus principais concorrentes dentro da frágil periferia europeia.
Fonte: OCDE. Metropolitan areas.
CRIAR UM ESTADO-SENHORIO
A medida com maior potencial de mudar a estrutura do mercado de habitação nas próximas décadas é a venda de imóveis ao Estado isentos de mais valias. Ao contrário de uma transacção entre privados, o vendedor de um imóvel não teria de pagar impostos sob o “lucro” realizado (diferença entre o preço de venda e de compra), tornando a venda ao Estado muito mais rentável. Esta medida reconhece que a crise habitacional não é apenas uma questão de falta de oferta e que o Estado tem mecanismos para regular e guiar o mercado. Uma presença significativa do Estado no mercado de arrendamento simultaneamente retira poder aos senhorios e controla as rendas. Não é por acaso que esta medida não foi incluída nas críticas do PCP e, segundo a Ministra da Habitação, é uma ferramenta usada pelos comunistas no Seixal.
Esta lógica de compra preferencial por parte do estado, combinada com um novo imposto sobre os imóveis herdados, poderia ter um enorme potencial de reduzir a desigualdade e reequilibrar o mercado de habitação. Por exemplo, se Portugal aplicasse uma taxa de 40% sobre imóveis acima de 500 mil euros, dando a possibilidade de venda do imovel ao estado por 70% do valor, o Estado estaria a criar condições para expandir o seu parque público e reduzir a atratividade do mercado imobiliário para estrangeiros de altos rendimentos.
Por fim, o governo quer forçar os bancos a oferecer créditos de taxa fixa, para reduzir a instabilidade de um mercado dominado pela taxa variável. Se o governo quer criar maior estabilidade para as famílias, não pode esperar pela boa vontade dos bancos privados. Os Estados Unidos têm um mercado de crédito dominado pela taxa fixa, que é resultado de sucessivas intervenções estatais - como a criação da Fannie Mae, durante a grande depressão - e não da magia da competição capitalista. Este mercado, co-criado pelo Estado, torna as famílias norte-americanas menos sensíveis às recentes subidas das taxas de juro. Certamente ajudou Joe Biden a ter um resultado acima das expectativas nas eleições intercalares.
Sem um Estado ativo e planeador, a crise habitacional chegou para ficar.
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