Após os resultados de dia 18, continuaremos a fazer o mesmo
Breves notas sobre as eleições legislativas à luz do que temos dito
O país foi às urnas e passou a ter um equilíbrio parlamentar inédito. O primeiro-ministro saiu reforçado, enquanto Chega e PS aparecem praticamente empatados – uma formação com alguns paralelos face à realidade francesa. A esquerda recuou mais uma vez.
Sendo um equilíbrio parlamentar surpreendente, não pretendemos fingir que foram movimentos óbvios, previsíveis ainda antes dos portugueses votarem, e que temos uma tese que explicativa. Numa das poucas vezes que iremos citar positivamente Carlos Guimarães Pinto, este ironiza habilmente o comportamento do comentariado nacional durante a semana que passou.
Em vários meios, surgem diagnósticos sobre o que a esquerda poderia ter feito ou como deve agir no futuro. Em grande parte, são indistinguíveis daqueles apresentados nos dois últimos momentos eleitorais legislativos - geralmente repletos de slogans como “é preciso unir”, “passar melhor a mensagem” e “encontrar a classe trabalhadora”.
Aqui, tal como antes, não temos propostas imediatas sobre como construir uma maioria social progressista. Acima de tudo, lemos que não existem respostas óbvias e por norma desconfiamos daquelas que vêm a ser repetidas até à exaustão nos últimos anos. Em vez disso, partilhamos uma interpretação do momento político ancorado em algumas das nossas reflexões passadas.
Os resultados eleitorais não mudam nada nesta newsletter. Continuaremos a analisar as mudanças estruturais à nossa volta e tentar contribuir com ideias para um futuro transformador. Como escrevemos no texto do nosso segundo aniversário:
“Ambicionamos sair do mero plano da denúncia e do colete de forças determinista em que não é possível fazer nada, dada a posição semiperiférica de Portugal. Até mesmo que isso seja verdade, é aqui que tiramos uma das poucas lições do neoliberal Milton Friedman: Só uma crise - real ou percepcionada - produz uma verdadeira mudança. Quando essa crise ocorre, as ações que são tomadas dependem das ideias que estão por perto. É essa, creio, a nossa função básica: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável."
Para a semana, vamos partilhar uma tradução já há algum tempo agendada sobre a ascensão da extrema direita na Europa pelos olhos de um Oráculo Infeliz. Depois disso, entraremos numa pausa previamente planeada.
MONTENEGRO E A SPINUMVIVA
Montenegro obteve um bom resultado mas continuamos a insistir que o caso Spinumviva é uma bomba relógio para a carreira política do primeiro ministro. Os comentadores afetos ao PSD atacaram os jornalistas por terem dado importância ao caso e Ricardo Costa classificou a Comissão Parlamentar de Inquérito como o “maior erro institucional da história do PS”. Há uma clara tentativa de colocar a Spinumviva debaixo do tapete, mostrando o risco deste caso. Dificilmente o partido de André Ventura abdicará de capitalizar com o caso.
O resultado do Chega confirma uma direita em processo de reconfiguração e que o partido de André Ventura não se ficará por aqui. Se antes da eleição considerávamos Pedro Passos Coelho como a figura conciliadora de todos os campos da direita, o resultado de domingo deixa a bola do lado da extrema-direita.
25 DE NOVEMBRO SEMPRE?
Pela primeira vez, a direita pode fazer uma revisão constitucional sem o PS. Este talvez seja o segredo mais mal escondido da política portuguesa. Sebastião Bugalho, antes de ser eurodeputado, já sonhava com a possibilidade. No início da noite eleitoral de domingo, João Cotrim Figueiredo e Pedro Frazão discutiram esta hipótese em directo na RTP.
Contudo, não devemos achar que este caminho será o seguido no imediato. O Chega pode preferir desgastar Montenegro, na confiança de que no futuro pode ser a personagem principal da revisão constitucional que “retire o socialismo”. Ser bastante vocal sobre a vontade de mudança constitucional - aquilo que parece o projeto da Iniciativa Liberal para legislatura - pode muito bem ser a estratégia que encoste o PS como viabilizador de Montenegro. O álibi de “salvar a Constituição de Abril” pode ser a posição menos desconfortável para os socialistas prestes a dar mais uma viragem à direita. No final, o Chega poderá posicionar-se contra um sistema bipartidário que puxa os cordéis há cinco décadas.
AS PORTAS VÃO DEIXAR DE ESTAR “ESCANCARADAS”?
O recente aumento da imigração tem sido uma das explicações preferenciais do comentariado para explicar os resultados eleitorais. Os diferentes partidos da direita foram capazes de criar a ideia de que o executivo de António Costa deixou as “portas escancaradas” e que o seu partido foi finalmente punido por isso. O corolário, raramente expresso, é que com a direita a governar teríamos menos imigrantes.
Se a economia entrar em recessão nos próximos tempos, a imigração pode mesmo vir a abrandar. Dito isso, não devemos esperar uma política de imigração muito mais restritiva por parte da AD e do Chega, visto que a burguesia nacional continua a pedir mais trabalhadores baratos. Tal como outros países, devemos esperar que a política da direita se foque menos no número total de imigrantes e mais na redução dos direitos sociais destes, algo sinalizado pelo próprio Ventura em campanha.
Esta é uma hipótese que exploramos durante a campanha eleitoral de 2024, argumentando que a política de imigração do Chega pode inspirar alguns dos países com mais emigração portuguesa.
“O sistema de saúde suíço, o segundo mais caro do mundo considerado desenvolvido, baseado em seguros privados obrigatórios, funciona como um imposto sobre o desemprego e a pobreza, convidando qualquer imigrante desempregado a sair do país.”
A “solução” para imigração pode estar num redesenho de componentes do Estado Social que acolham a simpatia da “direita cosmopolita”. Neste caso, mais tarde ou mais cedo, a revisão constitucional pode ter um papel fundamental.
UM BLOCO POLÍTICO SEM OPOSITORES?
É inegável que a esquerda somou mais uma pesada derrota. Comparado com 2015, perdeu praticamente 850 mil votos. Os partidos à esquerda do PS perderam quase meio milhão de votos numa década.
Ao contrário do que nos tentaram fazer crer no passado domingo, a imigração está muito longe de ser a única mudança no país da última década. Portugal vive uma profunda crise da habitação que continua a intensificar-se. Além dos problemas sociais mais óbvios, esta crise torna os alinhamentos de classe muito mais difíceis de definir do que no passado.
Nos dias de hoje, devemos colocar uma questão: um jovem diplomado com um salário acima da média que arrenda uma casa em Lisboa é “mais rico” do que um proprietário que recebe pouco mais do que o salário mínimo? Por um lado, o problema pode não ser relevante, na medida em que ambos os trabalhadores fazem parte do bloco que a esquerda ambiciona representar. Por outro, evidencia as dificuldades em definir um bloco político.
O foco nos 99% ou nos multimilionários, como Elon Musk, pode ter funcionado no passado para apaziguar estas tensões, mas estas eleições mostram um ponto de exaustão. Ao contrário da direita, a esquerda não tem sido capaz de identificar com clareza um “bloco opositor”.
Dentro deste puzzle, o PS tem jogado pelo seguro focando no eleitorado mais velho, principalmente através do aumento das pensões. Esta não é uma especificidade do PS - partidos como o SPD na Alemanha e PSOE em Espanha também têm uma forte base neste grupo etário.
No entanto, um bloco político sem inimigos e ancorado nos mais velhos tem claras fragilidades. A estratégia foi bastante eficaz durante os anos de António Costa mas deixou de ser suficiente para ganhar eleições. No dia 18, o PS provavelmente continuou a dominar neste segmento eleitoral e ainda assim não se livrou de um fraquíssimo resultado. Crucialmente, o perfil dos pensionistas vai-se alterando - os traumáticos cortes durante o período da Troika já foram há mais de uma década, os novos pensionistas estão longe de estar eleitoralmente garantidos.
JOVENS E ESQUECIDOS?
Tem sido tentador especular que os eleitores perdidos pela esquerda são portugueses de um Portugal abandonado e desiludido com o desenvolvimento do país em 50 anos de democracia. O facto de uma grande parte da base da direita mais radical estar nos mais jovens e na área metropolitana de Lisboa - e ter obtido resultados assinaláveis em zonas industrializadas como Sines ou a Marinha Grande - mostra a parcialidade do diagnóstico.

O fraco crescimento da população portuguesa mascara uma longa reconfiguração do eleitorado. Em 2015, Portugal tinha cerca de 1,1 milhões de residentes entre os 10 e os 19 anos. Hoje, este grupo - principal vítima da crise de habitação que gravou boa parte das suas memórias políticas durante os governos de António Costa - é uma parte muito significativa do eleitorado nacional e pouco inclinado a votar à esquerda.
A propaganda política online focada nestes grupos etários não fala apenas de imigrantes, bem pelo contrário. É comum ver-se os pensionistas caricaturados como (proprietários) privilegiados, que recebem benefícios do governo para votar nos partidos dominantes, condenando os jovens a emigrar.
Visto que a maioria dos imigrantes não vota, o pensionista que vota à esquerda complementa o bloco inimigo da direita. Sem um Estado Social com políticas para os trabalhadores mais jovens, é mais fácil caricaturar o restante Estado Social como um apartheid geracional. Os cortes de impostos de Montenegro segmentados por idades, e a garantia pública para a compra de casa, não podem ser desligados deste contexto.
O GRANDE VENCEDOR: O EXCEDENTE SOCIALISTA
Enquanto a derrota do PS está a ser apresentada como um resultado direto das políticas de imigração de António Costa e da falta de maturidade de Pedro Nuno Santos, devemos (no mínimo) desconfiar da boa vontade dos diagnósticos à direita - geralmente improvisados em direto na noite eleitoral, apelando a uma “moderação do PS”.
O PS tem uma pesada queda em onze meses com a mesma liderança e tinha ficado em primeiro nas eleições europeias de junho de 2024. Neste ciclo eleitoral, Pedro Nuno Santos teve prestações reconhecidamente boas nos debates e os portugueses parecem não ter apreciado a prestação de Montenegro no caso Spinumviva. A grande diferença não esteve no PS mas nos onze meses de Montenegro. O primeiro-ministro foi capaz de usar a margem orçamental que herdou para aumentar salários na função pública e pensões, o que se revelou num possível ganho líquido acima dos 100.000 votos para a AD.
O governo de maioria absoluta do PS, confiante que duraria toda a legislatura, geriu grandes margens orçamentais ao mesmo tempo que geria conflitos sociais com camadas profissionais como os professores. Sem retirar a importância de fatores como a atuação do Ministério Público, do Presidente da República e de Costa, hoje parece evidente que o excedente deixado por Costa e Fernando Medina foi a grande arma do governo de Montenegro. Montenegro colocou na prática o plano desenhado por Costa e distribuiu o excedente a tempo de eleições. A ausência do “excedente socialista” das análises da noite eleitoral tem a conveniência de não colocar em causa o mérito da AD faz Medina escapar ao papel de vilão na derrota do PS. Assim, ficamos a falar abstratamente da grande capacidade de pacificação social do governo e de um suposto radicalismo infantil do secretário geral do PS.
Resultado desta estratégia, não devemos descartar a possibilidade de uma deslocação estrutural de classes profissionais como os professores do PS para o PSD. Da mesma forma que o governo de Passos acabou por reconfigurar as preferências eleitorais dos pensionistas, o excedente deixado por Costa e Medina pode ter sido determinante para fazer o movimento contrário com alguns segmentos da função pública.
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Excelente análise!