A Direita quer Rescrever a Revolução de Abril
As declarações de várias figuras da direita no pós-eleições deixaram clara a intenção de quererem reverter as conquistas de Abril nos próximos anos.
Entre promessas de baixar impostos e outras que aumentam a despesa pública, o governo de Luís Montenegro arrancou com uma outra medida mais figurativa: a reversão do símbolo do governo, alterado em outubro do ano passado e muito criticado pelo Chega.
Uns comentadores viram a decisão como cedência aos setores mais reacionários, outros apontaram para o seu valor estético e simbólico. Fora destas análises simplistas, Miguel Morgado, comentador assíduo na SIC e um dos principais articuladores da direita, viu nesse gesto algo mais profundo: Montenegro estava a resgatar Portugal do terror vermelho de António Costa, usurpador da nação.
Morgado justifica-se no facto de, em 2016, o executivo de António Costa ter mudado o logótipo de “Governo de Portugal” para “República Portuguesa”. Segundo o comentador, apoiado pelos partidos à esquerda, Costa achou que “mandava em tudo no país, não percebeu que era só primeiro-ministro, que não era a República”, que representava “os abusos que toleramos aqui em Portugal.” No fundo, a decisão de Montenegro marcava o purificar de Portugal da tirania socialista costista. A análise de Morgado não passou despercebida, e foi rapidamente adotada por João Cotrim Figueiredo, da Iniciativa Liberal.
Este acontecimento de aparente pequena dimensão faz emergir o que devemos esperar da estratégia da direita neste novo ciclo de maioria. Altamente alavancada nos grandes meios de comunicação, a direita tenta construir uma legitimidade política na base da missão de limpar o lastro socialista. Para combater a tirania, até as promessas eleitorais passam para segundo plano. Ao alucinar sobre o despotismo do PS, a direita encontra as suas razões para refazer o país à sua medida (e dos interesses que defende).
O PLANO INCLINADO
Enquanto a durabilidade de Costa adveio da sua capacidade negocial e da colaboração dos seus parceiros, Montenegro tem outras facilidades. No que diz respeito à imprensa, como José Pacheco Pereira salientou, onde antes se via uma governação Costa com muitos quadros do PS como “governo de partido”, agora vê-se este executivo do PSD com muitos próximos a Montenegro como “governo de combate.” Os silêncios da era Costa significavam “falta de transparência” para agora serem de “recato.”
Esta seletividade contagiou áreas específicas de governação, e o excedente orçamental passou de uma oportunidade perdida de Costa para um perigo para Montenegro. Já a redução da dívida foi “artificial.” Os recentes prejuízos do Banco de Portugal - uma mera sucursal, sem qualquer autonomia face ao Banco Central Europeu - que eram expectáveis, dada a subida das taxas de juro, são posicionados como uma combinação de incompetência pessoal do “socialista” Mário Centeno e de uma eventual justificativa para não cumprir promessas eleitorais.
Os exemplos do tratamento seletivo por parte da imprensa dominante prolongam-se e devemos esperar por mais ao longo desta legislatura. Instrumentos políticos como as cativações, que chegaram às capas de jornais com Mário Centeno (algo que passava despercebido no governo da direita), podem receber novamente holofotes mediáticos, mas desta vez apresentadas como virtudes do rigor orçamental.
Se, à primeira vista, a imprensa (em especial o Expresso) endureceu o discurso contra o governo, após o anúncio de um choque fiscal artificial, a verdade é que não nos devemos iludir. Este endurecimento deve ser visto como recuo tático depois do período eleitoral. Se não o fizesse, a imagem de imparcialidade ficaria manchada.
Este ajuste já tinha sido feito por economistas que tinham dado apoio às campanhas da direita. Ricardo Reis,um dos 17 economistas de Montenegro, e Pedro Brinca, cabeça de lista pela Iniciativa Liberal em Coimbra, emprestaram as suas reputações académicas para dar uma aparência científica ao programa alicerçado nas promessas de cortes de impostos. Terminada a campanha, ambos afirmaram não ter qualquer ligação às propostas políticas da AD e da IL (aqui e aqui).
Além da imprensa favorável, Montenegro conta com um Presidente que é seu copartidário. É difícil desligar o recente afastamento do PS do poder das sucessivas decisões do Presidente da República. Embora seja um reparo desconfortável para quem se posiciona criticamente em relação às governações de Costa, a atuação do chefe de Estado foi decisiva. O seu modo de atuação política tornava-se mais eficaz quanto menor fosse a popularidade do executivo.
Apesar de Marcelo Rebelo de Sousa nos ter habituado a várias nuances e incertezas, é útil vê-lo como parte interessada no sucesso de Montenegro. Dado serem os últimos anos do seu segundo mandato, o desprendimento com que poderá conduzir a sua atividade e a vontade de carimbar um legado merecem atenção.
DESFAZER ABRIL
Além de Miguel Morgado, outros opinadores do Grupo Imprensa (com várias afinidades com Marcelo) dão-nos pistas do que vai nas diferentes cabeças da direita. Numa intervenção no dia 10 de março (entretanto desaparecida do website do Expresso), Sebastião Bugalho, jovem que o grupo não se cansa de depositar confiança, sondava a ideia de a direita não estar longe de uma maioria de dois terços, o que lhe permitiria avançar com uma revisão constitucional sem o Partido Socialista.
Dias mais tarde, foi a vez de José Miguel Júdice afirmar que o país nunca tinha estado tão à direita desde a Revolução, e que seria “uma oportunidade para realçar o essencial do 25 de Abril”. Para o comentador que fez parte da rede bombista de extrema-direita MDLP, o 25 de Abril seria composto por duas revoluções.
A primeira foi essencialmente “democrática e liberal”, de grande consenso nacional, em que “até os votantes do Chega estão de acordo.” A segunda foi marcada por uma tentativa “socialista radical”. Para Júdice, a segunda revolução representa apenas 8% dos eleitores de hoje, apesar de dominar a cultura nacional no período revolucionário. Daí que o comentador não tenha perdido a oportunidade de apelar ao PS para “deixar de ser refém da extrema-esquerda” e aderir “à genética do 25 de Novembro.” Ou seja, dando continuidade à sua atividade no terrorismo de direita, Júdice propôs em direto e em horário nobre o esvaziamento coletivo da Revolução de Abril.
Por fim, ainda no espaço do Grupo Imprensa, numa análise repleta de imprecisões e erros, outro comentador, José Gomes Ferreira, anteviu as eleições vitoriosas da direita como o sobressair de uma “maioria sociológica de direita” - uma espécie de reedição da Maioria Silenciosa usada à direita nos pós 25 de Abril. Ou seja, e numa ambição disfarçada de diagnóstico, Gomes Ferreira mostra que a direita não se limita a querer ter poder sobre o Estado, mas que sonha em moldar a composição político-social do país.
No programa com que o PSD se apresentou a eleições não faltam referências ao desejo de reformular o Estado Social, entregando-o efetivamente ao setor privado. E as privatizações do que resta do setor empresarial público, com a TAP e a Caixa Geral de Depósitos à cabeça, são mais apetecíveis do que nunca. No primeiro caso, Miguel Pinto Luz, o responsável pela privatização da TAP à vigésima quinta hora em 2015, volta a ter a transportadora aérea nas suas mãos ao assumir o Ministério das Infraestruturas e da Habitação. No segundo, o seu presidente antecipou-se ao ciclo político ao advertir para as consequências nefastas da alienação do banco público. Já a ideia de uma redução drástica do IRC é apresentada dia sim, dia não.
Enquanto os olhos estão postos no Chega, que já deixou bastante claro querer fazer um ajuste de contas com o 25 de Abril, Montenegro representa riscos que bastem para o país. A direita, apesar do tom adversarial entre as suas diferentes forças políticas, anseia refazer o país à sua medida. Nos seus desígnios está um delírio sobre o passado, no qual a apelidada primavera marcelista teria feito uma transição para a democracia liberal ou em que António de Spínola conseguiu conter a energia da Revolução de Abril num dos seus putschs. Expurgar o país do legado revolucionário do 25 de Abril é o seu grande propósito.
O espírito deste segredo cada vez mais mal escondido da direita portuguesa, inspirado em transições como a chilena, tem estado bem presente nos atos de Marcelo de Rebelo de Sousa. Tanto o discurso na véspera das eleições legislativas, em que o Presidente anunciou o fim do ciclo de Abril, como na condecoração escondida a Spínola vão ao encontro dos desejos de Júdice.
O discurso da direita dos últimos oito anos de governação do PS preparou o terreno para este tipo de abordagem. A ênfase em “décadas de socialismo” que corrompia a esfera do Estado; fazer de Jaime Neves salvador da democracia; a “ideologia” que impedia o governo de tomar as opções “certas” (em suma, mais poder aos mercados e aos privados) e o recurso frequente à palavra “ditadura” (a IL não se cansou de repetir o lema da ditadura fiscal) fornecem o combustível ideológico que a direita precisa para o seu ajuste de contas.
Mas há mais. Num espaço público cada vez mais radicalizado à direita, Miguel Morgado sente-se confortável para falar em “colonização” do país por parte do PS e André Ventura justificou a escolha de Diogo Pacheco Amorim para a vice presidência da Assembleia da República como um “reconhecimento de um percurso de vida”.
Ao criar uma ficção de ter vivido um terror vermelho, a direita portuguesa justifica a sua versão do terror branco.
A ideia do falso terror vermelho está bem presente nas recentes aparições de Pedro Passos Coelho, em campanha no Algarve, ao apresentar o livro “Identidade e Família” ou na sua entrevista ao Observador. O ex primeiro-ministro, para se distanciar do seu próprio legado e de ideias económicas cada vez menos convincentes, reinventa-se como um feroz defensor dos portugueses contra o terror socialista, que se manifesta em criminalidade e ataques à família tradicional portuguesa. Quando tem de falar do seu legado, em especial do aumento de impostos nos tempos da troika, Passos Coelho atira as culpas para Abril: acusa a Constituição de ter sido o real entrave ao seu projeto político.
ESPERAR PELO ANTICOSTISMO
No centro da análise da direita está um suposto continuísmo da governação de Vasco Gonçalves à de António Costa. A governação do PS nos últimos oito anos foi tudo menos um refazer do Estado à sua medida, contrariamente a anteriores executivos do PS. Enquanto António Guterres e José Sócrates, inspirados pela terceira via do antigo primeiro-ministro britânico Tony Blair, ambicionavam deixar a sua marca no funcionamento do Estado, mesmo vivendo confortavelmente dentro da hegemonia neoliberal, a marca de Costa foi a gestão política do dia-a-dia. O próprio balanço final de Costa aponta nessa direção.
Esperar a mesma abordagem pela direita, e com um ambiente mediático tão favorável, é um erro. Cavaco Silva fez uso político da entrada na União Europeia e de condições macroeconómicas favoráveis para colocar Portugal na trajetória do neoliberalismo vigente nos países do centro do capitalismo, mas sempre numa condição periférica, selada pelas regras europeias. Na sua última governação, com a dupla Passos Coelho e Paulo Portas, a direita reestruturou o Estado e a economia portuguesa a favor da sua base de apoio, usando a “bancarrota socialista” como casus belli. Tal como em 2011-2015, a direita conta com um presidente que lhe é favorável.
Mais uma vez, a direita tem uma oportunidade de continuar este processo de refazer o Estado e a sociedade à sua imagem, cada vez mais distante daquela moldada na revolução de Abril. O regresso de Pinto Luz às mesmas funções de 2015 reforça este continuísmo. Para isso, e principalmente para se proteger da impopularidade de algumas dessas medidas (ou do não cumprimento de grande parte do seu programa eleitoral), é fundamental simular, com a ajuda dos grandes meios de comunicação, que Portugal viveu um longo terror vermelho que justifique toda e qualquer suposta “correção”.
Este foi o segundo artigo de uma série focada na Revolução de Abril. Lê o primeiro, a revisão do livro “A Ordem do Capital” de Clara Mattei na ligação abaixo. No próximo artigo desta série sobre o 25 de Abril vamos falar de oportunidades perdidas da esquerda para refazer o Estado à sua medida. 2016 será o centro da análise.
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Muito bom texto.