Nos onze meses de Montenegro encontramos uma direita em guerra e Passos é a sua trégua
A crise política mostra um ciclo de uma década na direita maioritária mas em constante crise de identidade a tentar regressar ao local onde foi feliz.
O governo de Luís Montenegro acabou por cair em menos de um ano, numa crise política criada por si e da qual ninguém o poderia salvar. Claramente inspirado no Aníbal Cavaco Silva de 1987, o primeiro-ministro forçou uma eleição com a esperança de tornar um governo ultra minoritário numa maioria robusta. Até agora, não há indícios que Montengro consiga um reforço esmagador do seu mandato.
Num caso de derrota, Montenegro provavelmente ficaria para a história como um novo Pedro Santana Lopes - um primeiro-ministro de passagem, sem legado político, e que seu partido quer esquecer o mais rapidamente possível.
Ao contrário de Pedro Santana Lopes, o breve governo de Montenegro captura um momento de transformação da direita portuguesa, que passou de um longo inverno na oposição para um projeto de poder que continua com dificuldades em definir-se.
O ANO ZERO DA DIREITA: 2017
Com a austeridade do período da Troika, a direita parlamentar PSD-CDS, chegou a um beco sem saída. Ao perder uma parte da sua base social a tarefa de regresso ao poder tornou-se uma corrida em plano inclinado.
Em 2015, a “vitória” da direita criou a sensação de feridas circunstanciais e que um período na oposição as sanaria. Com o PS no poder apoiado pela esquerda, a direita achou que seria suficiente esperar por um “diabo” que não chegou.
As eleições autárquicas de 2017 confirmaram o mau momento. O PSD sofreu uma pesadíssima derrota, com destaque para o resultado de 11% em Lisboa, que conduz à saída de Pedro Passos Coelhos da liderança. Esta crise existencial dá o arranque a movimentações à margem e fora da direita eleitoral.
Um ano depois de eleger-se vereador em Loures pelo PSD, numa campanha que o torna uma figura nacional, André Ventura sai do partido para começar a sua caminhada com o Chega. Em paralelo, a Iniciativa Liberal é criada e depois dinamizada com a entrada de Carlos Guimarães Pinto, uma figura veterana dos blogues, começando a agregar personalidades ligadas à política de “reformas” do tempo da Troika. Esta nova composição permitiu maior flexibilidade tática. Por enquanto, a aritmética do balanço é positiva. A base eleitoral da direita foi-se expandindo, conseguindo duas maiorias eleitorais (legislativas e europeias) em 2024.
CLIMA DE GUERRA
As opções políticas dos onze meses de governo de Montenegro trazem à luz as disputas dentro do campo da direita enquanto esta disputa o espaço ao centro.
À boleia do excedente herdado e em posição de precisar de concessões do PS, o Orçamento do Estado para 2025 pouco se diferenciou daquilo que foi o costismo: alguns cortes de impostos; valorização de pensões e carreiras na função pública. Ao mesmo tempo, à franja liberal oferece planos de privatização da TAP, hospitais e centros de saúde (via PPPs), o esvaziamento de outras empresas públicas (CP e RTP) e piscar o olho a alterações à lei da greve. Para o eleitorado do Chega, Montenegro apresenta discursos em horário nobre sobre a segurança do país e anuncia processos rotineiros de deportação como se tratassem de grandes eventos políticos.
O problema de Montenegro é que a competição à direita acredita que a reconfiguração eleitoral continua em curso. O Chega ambiciona ser o partido dominante e a Iniciativa Liberal entrou neste ciclo eleitoral a achar que estava longe do seu teto. Isto tem fortes paralelos com Espanha na década passada.
No pós-crise financeira, o duopólio dominado pelo PSOE e PP viu-se ameaçado pelo Podemos (à esquerda) e pelo Ciudadanos (à direita) - partidos emergentes com votações tangenciais às dos tradicionais. As coligações não se firmavam e as eleições eram constantes (quatro entre 2015 e 2019).
Tal como em Espanha, enquanto houver disputa pela hegemonia, dificilmente se cumprirá uma legislatura. É aqui que se criaram as condições para existirem quatro candidatos presidenciais na direita. Um puzzle esmiuçado por Diogo Martins.
Dada a geometria do sistema eleitoral português, a esquerda até pode conseguir maiorias inesperadas nas brechas deste processo.
OS DEPLORÁVEIS
Os desafios à direita não se prendem apenas com a geometria parlamentar, mas também com um problema de representação. Quaisquer que sejam as conclusões do que ainda está para sair dos casos de Montenegro, tornou-se evidente que este não alcança os padrões éticos para ocupar um cargo de governação.
Apesar de o Chega ter adicionado uma certa extravagância - como roubos de malas e pedofilia a machar os seus quadros -, o processo de Luís Montenegro tornou-se no principal motor de degeneração da vida política portuguesa. Montenegro aposta em deixar o eleitorado identificar-se com a sua situação ao afirmar que "não fez nem mais nem menos do que faz qualquer português". Este tem noção que a sua base eleitoral incorre frequentemente em práticas que se não ilegais, estão distantes de um ideal de integridade - como mostrado numa investigação sobre alocação de despesas pessoais em empresas.

Enquanto a sua base pode viver com alguma tensão latente entre as práticas duvidosas e a sua identidade elitista, o PSD continua a ser o partido predileto das classes altas. Com base eleitoral entre empresários e muitos dos profissionais mais bem credenciados, como médicos e advogados, levanta-se um problema de representação. O dano é particularmente gravoso numa geração política que se definiu face a José Sócrates, enterrado em controvérsias e processos judiciais.
Todo este processo leva a uma aproximação à identidade do Chega, partido que mostra poucos problemas em conciliar o discurso justicialista com práticas duvidosas. Nesse campeonato, o partido de André Ventura parte em vantagem - após anos de escrutínio não foram destapados “casos e casinhos” sobre o seu líder. Isto permite a Ventura responder a qualquer crise com uma purga purificadora - o justiceiro implacável, até com os seus, que o seu apoiante Gustavo Santos admira.
Quanto à Iniciativa Liberal, partido assente nos jovens profissionais diplomados, a posição face ao caso Montenegro, de que “tem de decidir se quer ser primeiro-ministro de Portugal” ou dedicar-se à atividade empresarial - quase indistinguível da do Partido Socialista - foi revista, em menos de 24 horas, a tempo de um voto a favor da moção de confiança cuja rejeição encaminhou o país para eleições. A perspetiva de integrar um governo, admitida pelo seu líder, e eventuais coligações autárquicas levou o partido que se construiu em oposição à promiscuidade no Estado a passar o pano sobre a atuação de Montenegro, até à altura sem danos reputacionais visíveis. Os liberais vivem na constante tensão entre posicionarem-se num pedestal moral, ao denunciar os comportamentos do PSD, e a precisar deste partido para chegar ao tão ambicionado poder para acelerar o projeto político liberalizante.
CASA DE PARTIDA
Uma vitória do PSD nas próximas legislativas pode funcionar como um mecanismo ilibador. Embora esta amnistia eleitoral funcione para Montenegro, as tensões latentes dificilmente poderão conduzir a um cenário de estabilização.
A direita em ansiedade, namora com o regresso à casa de partida: Pedro Passos Coelho. As constantes menções ao antigo primeiro-ministro por comentadores e quadros da direita não devem ser confundidas com uma capacidade extraordinária deste para conquistar eleitores - como tem sido notório nas arruadas de Montenegro nas últimas duas eleições (aqui e aqui).
O político que já se definia como liberal em 2008, alimentou uma imagem de um patriotismo austeritário, combatente da decadência sócratica e é visto como uma solução organizacional viável. Ter “deixado cair” o BES de Ricardo Salgado cimentou um discurso de integridade, depois de ter sobrevivido aos seus próprios casos (Tecnoforma, Segurança Social). A fórmula do passismo, ao direcionar o moralismo e o discurso anticorrupção exclusivamente para o Estado e para um ex-banqueiro, esquiva-o de responder se os comportamentos de Montenegro são mesmo compartilhados por uma boa parte da sua base. Passos Coelho acaba por ser o nome mais consensual para conciliar os diferentes campos da direita, as suas contradições e os princípios que se diz representar.
Esses são os motivos que explicam que Rui Rocha e André Ventura tenham tentado imediatamente apropriar-se da paternidade do apelo “reformista” de Passos na semana passada. Ao mesmo tempo, João Miguel Tavares, uma figura agregadora à direita mas muito crítica a Montenegro, não perdeu tempo a valorizar as declarações de Passos Coelho em campanha e classificá-lo como o “único adulto na sala”.
Tal como a demissão de Montenegro tem muito mais que se lhe diga do que um episódio de casinos e gasolineiras de Braga, não devemos confundir um eventual retorno de Passos Coelho como um mero regresso da Troika ao Terreiro do Paço. Até porque, a vontade de ir “além da Troika” nunca desapareceu.
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