As elites adoram proibir a intervenção do Estado, mas só para o que lhes dá jeito
Os mesmos que acusam o proibicionismo de ser autoritário não hesitam em usá-lo para proteger os seus interesses económicos.
A proibição dos telemóveis nas escolas passou para a agenda pública. O que era uma medida aplicada quase em exclusivo por colégios privados chegou às escolas públicas, mas ainda sem ser implementada na generalidade.
As reações positivas (aqui) parecem ser unânimes – proibir telemóveis nas escolas tem resultados positivos em vários aspetos. As opiniões entre professores, educadores e funcionários parecem ser de uma consensualidade profunda em relação à restrição dos aparelhos nas escolas. Aliás, as atuais propostas parecem confirmar a opinião que estes profissionais já tinham sobre o assunto.
As únicas críticas com substância parecem limitar-se aos telemóveis serem por vezes usados para atividades nas salas de aula (que penalizam aqueles com menos acesso) e o perigo de limitar a discussão sobre o espaço escolar ao uso ou não do telemóvel.
Apesar do sucesso em todas as frentes, o progresso da medida tem sido tímido. Quer nas intervenções do ministro da Educação, quer de outros intervenientes públicos, a iniciativa é arrefecida. A palavra proibição é evitada, a cautela é invocada e o assunto é empurrado para pareceres. Em geral, há uma abordagem feita com pés de lã, como se a medida pudesse abrir um precedente que pudesse pôr em causa a harmonia da sociedade. A palavra proibir parece causar calafrios.
Tendo em conta que os telemóveis representam há anos um flagelo social, em especial para os mais jovens, até devemos estranhar o momento tardio da discussão - por exemplo, em França uma iniciativa similar com vários sucessos vem de 2018 e vários outros lugares seguem os mesmos passos. Por cá, a agenda ganhou força, não por iniciativa do topo, mas por consensos entre pais em escolas, seguida de uma petição pública que empurrou a discussão para o espaço público.
Por um lado, a medida é altamente consensual e bem-sucedida e, por outro, é-lhe colocada uma trela muito curta. O contraste é notório e vai além de um mero incidente, é um sintoma dos tempos modernos.
O facto de a proposta ter vindo da esquerda e a reação do líder do Chega ter sido “não queremos avançar para modelos de proibição que vão avançar para outros modelos de censura”, dão-nos uma pista do que se passa.
A LIBERDADE E O SALÁRIO MÍNIMO
Num artigo publicado na Current Affairs, Nathan J.Robison analisa o percurso do economista Thomas Sowell. O nome é relativamente obscuro, mas altamente influente nos círculos de direita estadunidenses; em Portugal, está entre os autores referenciados pelo Think Tank “apartidário” Mais Liberdade. Nos anos 1970, contracenava na televisão com o barão máximo do neoliberalismo Milton Friedman.
Os traços de Robinson para descrever Sowell podiam ser aplicados a muitas personalidades públicas da direita em Portugal. O pensador que diz colocar a racionalidade em primeiro lugar; antigo marxista que virou para o lado do “realismo”; inimigo dos intelectuais esquerdistas carregados de boas intenções, mas cujas propostas só pioram as vidas alheias; o outsider supostamente ignorado pelos círculos de comunicação por não serem capazes de fazer frente ao seu intelecto. José Manuel Fernandes, antigo quadro maoísta transformado em dirigente de propaganda no jornal Observador, oferece um exemplo que encaixa na descrição quase como uma luva.
Como Robinson demonstra, Sowell não é nada disto, e isto é explícito nas suas posições sobre o salário mínimo. Num raciocínio replicado para assuntos como o controlo de rendas e normas de segurança no trabalho, Sowell afirma que a intervenção de terceiros num mercado livre prejudica acordos mutuamente benéficos. Os políticos e os intelectuais, segundo Sowell, acham que sabem melhor do que o cidadão comum e, depois de conjurarem as suas ideias do que é justiça, impõem-nas causando graves problemas. Como apresentado em tradução livre do artigo de Robinson:
“Na história de Sowell sobre o salário mínimo, o trabalhador concordaria em trabalhar por 3 dólares por hora e o empregador gostaria de pagar 3 dólares por hora, mas o Estado intervém e diz que, de acordo com a sua avaliação de "terceiros", esta transação mutuamente aceite não deve acontecer e que o trabalhador deve receber 7,25 dólares por hora. As escolhas livres estão a ser anuladas”
Ou seja, o Estado intervém para proibir o trabalhador de aceitar um trabalho por três dólares à hora, deixando-o desempregado, pior do que estaria sem a intervenção do Estado.
Como em outros assuntos, Sowell está errado, precisamente pelas razões que dizem distingui-lo dos seus adversários: ignora dados empíricos. Traduzindo Robinson de novo:
A "economia básica tradicional" pode prever que os salários mínimos produzirão desemprego, mas uma montanha de provas empíricas mostrou que a visão simplista que Sowell apresenta é inconsistente com a realidade. De facto, os efeitos negativos previstos dos aumentos do salário-mínimo revelaram-se mínimos.
Como também apontado por Robinson, e mais importante do que as conclusões de Sowell, é a forma como ele encara a democracia e o Estado. Para este economista, o Estado funciona como uma “terceira parte” alheia e dotada de poderes autocráticos. A subida do salário mínimo é desligada de qualquer processo democrático. Nunca é apresentada como uma reivindicação dos próprios trabalhadores ou das suas organizações, mas como ideia de um intelectual benevolente, mas ingénuo.
Em várias publicações de Sowell (aqui e aqui) os sindicatos são apresentados como casta de parasitas, muitas vezes mal intencionados, causadores de problemas quer aos donos das empresas, quer aos trabalhadores não sindicalizados. Serem parte do sistema democrático, ao representarem o interesse dos trabalhadores (que pagam quotas voluntariamente e são representados por membros eleitos) nunca é colocado em cima da mesa.
Assim, para Sowell, a democracia resume-se a um fator: as transações que fazemos a nível individual no mercado. Ou como explicado por Robinson:
A decisão de um fabricante de automóveis de vender um carro inseguro a um consumidor, e a decisão do consumidor de comprar esse carro, representam "o desejo do público" (...), mas uma campanha pública para a regulação da segurança do consumidor, e a eleição de funcionários públicos que implementem esses regulamentos, é uma subversão dos processos sociais legítimos.
Logo, um salário mínimo, quando feito pela via democrática, com a representação do interesse dos trabalhadores através das suas organizações é uma afronta à liberdade. Limites ao horário de trabalho, restrições ao trabalho infantil, a legislação para o direito a desligar, que depois de implementado em França, chega a mais países, férias pagas - tudo isto representa uma afronta à liberdade para Sowell, mesmo que expresse a vontade do desejo público.
Para espreitarmos esses raciocínio na realidade portuguesa, 68% da população considerou numa sondagem recente que o governo deve suspender a lei em vigor para as rendas, fixando um teto máximo de aumentos, enquanto 79% querem taxar o lucro extra da banca e 71% respondem que a redução do IRS não contribuiria para travar a emigração de jovens qualificados. Não é difícil adivinhar qual das três propostas os seguidores de Sowell em Portugal considerariam ser “democrática” e quais as que seriam denunciadas como atentados à liberdade. Para os amantes da liberdade neste sentido pervertido, democracia é não proibir a atuação dos mercados.
EM DEMOCRACIA NÃO PODEMOS PROIBIR
O presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, não tem uma relação saudável com o conceito de democracia (como mostrado em várias intervenções, por exemplo, aqui). Em março, numa manifestação em defesa do alojamento local, Moedas decidiu clarificar o que pensa sobre este sector.
Contra a possibilidade de restrições ao alojamento local, Moedas afirmou: “em democracia não podemos proibir”. É difícil saber se Moedas leu diretamente Sowell, mas o pensamento está alinhado. A democracia não se trata de justiça ou de participação nos processos políticos, mas sim liberdade para fazer negócios, diriam estes.
Indo mais longe, não devemos confundir este conceito de liberdade para fazer negócios com o ideal onde o Estado é apenas um espetador e todas as decisões são deixadas ao mercado – estes não hesitam em usar os poderes públicos para os auxiliar nos negócios e criar mercados. Como já aqui exposto, “nos últimos anos, além de fazerem disparar os preços da habitação, os empresários do AL foram os principais beneficiários da política de investimento público nas cidades, de uma lei de despejos feita à sua medida e um conjunto de isenções”. Como muitos outros, este mecanismo é instrumentalizado quando é útil para os mais poderosos.
No contexto urbano, os mais poderosos não se inibem de lançar proibições quando os favorecem. Bares e estabelecimentos de diversão noturna são altamente regulados e instalados longe das zonas residenciais mais ricas; em Uccle, uma das zonas mais ricas de Bruxelas, os transportes públicos foram sempre escassos para manter a ilha de prosperidade isolada do resto da cidade – uma dinâmica não muito diferente da oposição de longa data ao metro em Campo de Ourique, uma das zonas mais abastadas de Lisboa (vital para fazer chegar o metro à classe trabalhadora que precisa de fazer transbordo em Alcântara); os residentes de um bairro rico de São Paulo, no Brasil, que rejeitam a expansão do metro, pois traria “gente diferenciada” para a sua zona.
Podemos mesmo afirmar que se as escolas públicas não forem capazes de fazer proibições, então as escolas privadas tornam-se mais atrativas, pois continuarão a poder proibir o uso dos telemóveis, enquanto o ensino público é minado pela inércia. O recurso à proibição acaba por ser um privilégio.
É PERMITIDO PROIBIR
As ideias representadas por Sowell podem não ter triunfado na sociedade, mas ganharam muito espaço com o avanço do neoliberalismo nas últimas décadas. Em particular, a aversão às proibições ganhou força suficiente para, nos últimos anos, os telemóveis terem penetrado sem obstáculos na rotina escolar. O debate público pode não ser dominado por aqueles que pensam como Moedas, mas, como mostram as políticas tímidas para telemóveis nas escolas, a hesitação para proibir é omnipresente.
Ironicamente, restrições ao consumo do tabaco foram ganhando espaço nestas décadas – com impostos mais elevados e proibições ao uso em espaços públicos, desde o local de trabalho aos restaurantes. Acaba por ser o casamento do neoliberalismo com uma social democracia enfraquecida que visa resgatar a saúde pública.
Os elementos neoliberais surgem por vários ângulos. Em primeiro, as restrições ao tabaco legitimam um imposto que tem um impacto mais significativo sobre os mais pobres; em segundo, convivem bem com o contexto de externalidade (custo imposto a terceiros) da economia ortodoxa - isto encaixa-a no mundo em que “todas as decisões coletivas são sujeitas ao crivo de uma folha de excel, ou a um estudo de impacto encomendado a académicos”, sendo fácil estimar, por exemplo, o custo do tabagismo ao SNS.
Se as restrições aos telemóveis produzissem uma taxação regressiva ou os seus danos fossem facilmente quantificáveis, o tema talvez teria chegado à ordem do dia mais cedo. Como não vai além de uma mera proibição, temos de lidar com estes argumentos por muito mais tempo.
“É proibido proibir” foi um lema popularizado pelo Maio de 68 em França. Estudantes ocuparam as universidades e trabalhadores tomaram conta das fábricas. A economia do país foi parada, o nível de protestos fez temer uma guerra civil e o então presidente francês, Charles de Gaulle, teve de fugir de Paris. Os alvos dos protestos eram o capitalismo, o consumismo e o imperialismo. Seria ambicioso demais resumir aqui o Maio de 68, mas os valores não podiam ser mais distantes daquilo que Sowell e Moedas representam.
A “proibição de proibir” não perdeu o seu mérito, mas, para evitar o seu significado ser instrumentalizado pelo neoliberalismo, temos de avaliar as forças sociais em ação. Nos telemóveis modernos, os softwares e aplicações são geridos por multinacionais cujo propósito passa por nos agarrar aos aparelhos o mais tempo possível, quer seja para recolher os nossos dados ou cobrar-nos pela utilização de aplicações.
Para maximizar o seu retorno, as aplicações que usamos são desenhadas para explorar todas as limitações dos nossos cérebros. Não é um exagero afirmar que os seus efeitos são parecidos com os das drogas (como descrito aqui e aqui) e que as devemos equiparar. Durante anos, perdurou a inércia institucional, hesitando puxar da proibição como ferramenta política digna da democracia.
Voltando à posição do Chega, o partido de extrema-direita considera a proibição dos telemóveis “totalitarismo”. Sem grandes surpresas, um elo une o partido de André Ventura com Carlos Moedas e um ideólogo do think tank próximo da Iniciativa Liberal. Para todos estes atores, é temido o setor público poder usar a proibição como ferramenta política. A linguagem pode ser mais arrojada, mas, tal como os outros, o Chega mostra a sua lealdade às multinacionais e aos colégios privados.
As nossas ambições podem não chegar à construção da internet socialista de Salvador Allende, mas contrariar que as multinacionais desenhem a forma como o Estado Social funciona - hoje as escolas, amanhã talvez mais além - é o mínimo de uma política democrática. Aplicar proibições nos contextos certos, com base em consensos sociais, é a democracia em ação. Deixar as empresas tecnológicas moldarem a socialização dos mais jovens com danos sérios ao seu desenvolvimento é um falhanço político.
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas, fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
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