The Santiago Boys: a internet socialista de Allende deve ser celebrada
Durante nove episódios, Evgeny Morozov narra a história de “uma internet socialista” com a ambição de democratizar a economia e sociedade chilena.
Há 50 anos, o Chile sofreu um golpe de estado que terminou prematuramente com o seu governo socialista e custou a vida do seu presidente, Salvador Allende.
O golpe contra Allende e a ascensão de Pinochet rapidamente entraram na mitologia dos debates político-económicos ocidentais. Para a esquerda, os ataques ao governo democraticamente eleito de Allende deixavam cair a máscara do imperialismo norte-americano, com Henry Kissinger a liderar a política externa. A direita criou uma narrativa que justificaria os crimes e o golpismo de Pinochet: seu suposto sucesso económico. O ditador chileno presidiu aquele que provavelmente foi o primeiro governo neoliberal do mundo, um modelo que Ricardo Paes Mamede brilhantemente caracterizou como “[em vez] do Estado mínimo colocaram um Estado forte – não para reduzir o poder dos mercados, mas para os promover”.
Com Pinochet, surgiram os Chicago Boys, um grupo de economistas Chilenos formados em Chicago sob a tutela de Milton Friedman, que comandaram um processo agressivo de destruição de direitos sociais e privatizações. Ainda hoje, o Chile de Pinochet é apresentado como um verdadeiro milagre económico. Apesar dessa roupagem, a ditadura chilena tem um historial medíocre tanto no combate à pobreza extrema, como no crescimento económico, mesmo tendo sido o primeiro governo a beneficiar verdadeiramente da nacionalização do cobre (feita por Allende com a unanimidade do parlamento).
A revista The Economist deu legitimidade ao golpismo. Friedman visitou e aconselhou Pinochet. Thatcher deu-lhe asilo político. Até hoje, os seus sucessores ideológicos continuam este longo processo de maquilhagem política. Em Portugal, o caso mais notável é Carlos Guimarães Pinto, antigo líder da Iniciativa Liberal. O economista já publicou alguns artigos em defesa do modelo liberal chileno. Às vezes ignora o ditador por completo, outras vezes defende que a liberalização económica de Pinochet inevitavelmente tornaria o Chile numa democracia. Um argumento comum dentro destes círculos, que omite convenientemente a tentativa do General de fraudar o referendo que perdeu; e também ignora que essa lógica tem falhado por completo em Singapura, China e outras experiências de capitalismo político.
Se a direita tem sido eficaz a romantizar o governo criminoso e antipopular de Pinochet, a esquerda tem tido dificuldades em defender o legado de Allende. Em grande medida, a esquerda ocidental tem passado décadas a denunciar o governo de Pinochet, os ataques da dupla Kissinger-Nixon, sem uma verdadeira defesa programática do governo de Allende que vá muito para além da sua legitimidade democrática. Neste contexto, Evgeny Morozov, um dos principais críticos de tecnologia do mundo, lançou o podcast The Santiago Boys, um trabalho de investigação de dois anos sobre a tentativa de modernizar e democratizar tecnologia durante o governo Allende. No formato podcast, o Projeto Cybersyn, principal tema da série, tinha merecido um curto episódio no influente podcast 99% Invisible, mas nada que se compare ao extenso trabalho de Morozov.
QUEBRAR AS AMARRAS DA DEPENDÊNCIA
A série é focada essencialmente em dois personagens, Fernando Flores (diretor da agência responsável por empresas públicas e planeamento económico, CORFO) e Stafford Beer (teórico da cibernética), contudo é impossível entender os seus feitos sem olhar para o enquadramento histórico da América Latina neste período.
Geralmente a nacionalização da indústria do cobre é apresentada como o início do fim do governo Allende. Morozov mostra que as tensões entre Santiago e Washington vão muito para lá desta indústria extrativa. O primeiro episódio foca-se na International Telephone & Telegraph (ITT), um dos dos gigantes tecnológicos da época, e a sua relação com governos da América Latina da época. Antes de Allende chegar ao poder, o gigante das telecomunicações norte-americano já tinha um histórico difícil na região.
Antes da revolução cubana, o jovem advogado Fidel Castro tinha processado a empresa por não cumprimento dos serviços em Cuba, um caso ganho nos tribunais mas que foi totalmente ignorado pelo governo de Fulgencio Batista. Depois da revolução, o mesmo Fidel Castro nacionalizou a ITT. Os conflitos e tensões entre a ITT e estados soberanos também chegaram a governos reformistas de esquerda. No Brasil, Leonel Brizola, o então governador do Rio Grande do Sul e um dos maiores aliados do presidente João Goulart, expropriou a sucursal da ITT, por falhas no serviço. Uma decisão vista por alguns historiadores como um catalisador para o apoio norte-americano ao golpe militar no Brasil.
O guião foi semelhante com Allende. O governo socialista não só nacionalizou o monopólio das telecomunicações da ITT, como ambicionava ir mais longe, e criar o seu próprio projeto de desenvolvimento do setor das telecomunicações de forma soberana. Num período em que gigantes como a Google e Apple ainda não existiam, o governo chileno ambicionava criar um modelo de uso de tecnologia e informação de forma democrática e popular, muito diferente do atual modelo onde gigantes tecnológicos capturam mais valias do uso dos seus usuários. Rapidamente, Allende criou um alvo nas suas costas.
A ideia de criar um plano de cibernética democrático e socialista não caiu do céu. No início da década de 70, o Chile tinha-se tornado a casa de vários pensadores brasileiros, fugidos da ditadura militar. Alguns destes intelectuais desenvolveram a teoria da dependência, que chegou aos ouvidos dos Santiago Boys, um grupo de geeks apoiantes do governo Allende.
Os teóricos da dependência reconheciam que o processo de industrialização e modernização económica, dominado por capital estrangeiro, manteria as economias latino americanas dependentes e vulneráveis aos interesses do centro do capitalismo. Estes países poderiam tornar-se em Repúblicas da Volkswagen: economias mais sofisticadas, com melhores salários, mas ainda assim totalmente dependentes da tecnologia dos países do primeiro mundo.
Este pensamento influenciou profundamente os Santiago Boys, que ao contrário do Chicago Boys, não estavam interessados em importar ideias e modelos do centro do capitalismo. Com uma visão de usar a cibernética para democratizar a economia e sociedade chilena, os Santiago Boys viam a construção de um modelo tecnológico próprio como um pilar de um processo revolucionário. Morozov mostra que as suas ideias chocavam com outras facções da União Popular, que por vezes os viam como meros tecnocratas. Contudo, o Presidente Allende é um importante aliado dos Santiago Boys, e deu-lhes espaço para desenvolver a cibernética socialista num contexto económico extremamente delicado.
UM INESPERADO ALIADO VINDO DO CENTRO DO CAPITALISMO
Na tentativa de criar uma internet socialista e chilena, surge um inesperado aliado. Fernando Flores, responsável por desenvolver este projeto, contacta Stafford Beer - principal referência da cibernética mundial - na esperança de conseguir algum discípulo de Beer para colaborar com o governo de Allende. Flores é surpreendido quando o próprio Beer toma a iniciativa de se envolver diretamente no projeto. Beer era uma aliado improvável. Um sujeito abastado, com um estilo de vida extravagante, sem quaisquer credenciais socialistas, e que estava totalmente integrado nos círculos da elite Britânica, que promovia uma campanha mediática contra o governo Allende.
O que fez Beer aceitar este desafio? Ao ouvir-se a série, não se pode deixar de especular se não foi o desencanto com o uso do seu trabalho na indústria do aço. Anos antes de trabalhar para o governo de Allende, Beer tinha desenvolvido o uso de computadores e análise de dados para aumentar a produtividade da United Steel. Era uma visão radical, que dava poder aos sindicatos para destruir quaisquer dados recolhidos após o seu devido uso, e defendia que os ganhos de produtividade fossem distribuídos aos trabalhadores. A indústria tornou-se mais eficiente, mas para grande desilusão de Beer, os ganhos foram quase exclusivamente para os seus donos. Os trabalhadores ganharam um bónus que era um montante equivalente a um maço de cigarros semanal.
Este episódio de Beer é muito mais que uma pequena história para construir o personagem. O conflito entre o desenvolvimento tecnológico e as condições da classe trabalhadora demonstra a importância de olhar para a tecnologia como um veículo político, e não uma ferramenta neutra (ler o João Gabriel Ribeiro). A experiência de Beer no Reino Unido mostra os riscos do discurso dominante nos dias de hoje, onde é dito que a produtividade trará por arrasto prosperidade para a classe trabalhadora.
Nos últimos episódios, a série mostra a divergência de caminhos entre Beer e Flores. O Britânico tornou-se um feroz defensor das vítimas do golpe chileno e crítico dos governos britânicos cúmplices de Pinochet. A carreira profissional e política de Flores acaba por dar voltas que surpreendem os seus próprios aliados.
A série de Morozov explora na perfeição as tensões entre os riscos de planeamento burocrático tecnologicamente avançado e um real uso da tecnologia para democratizar as sociedades. As mais de 9 horas de podcast abordam diversos outros temas, como o uso de tecnologia por corporações e opositores políticos para minar a democracia chilena; ou os equilíbrios de forças dentro da coligação de Allende.
Acima de tudo, The Santiago Boys é uma série essencial para repensar o papel da tecnologia em qualquer projeto político popular e para a Esquerda reabilitar o projeto político de Allende.
Outras recomendações:
Cinema
La Batalla de Chile, Patricio Guzmán, 1975–1979
No, Pablo Larraín, 2012
Podcast
Project Cybersyn, 99% Invisible, 2016
Música
El derecho de vivir en paz, Victor Jara, 1971
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