O Estado português não pode estar refém da Igreja e do futebol profissional
A promoção das Jornadas Mundiais da Juventude e o Mundial de 2030 não podem ser dissociadas do papel de Estado Social informal da Igreja e do futebol organizado.
Depois de Fátima, veio o Futebol. Poucos meses depois da organização das Jornadas Mundiais da Juventude, foi anunciado que o Mundial de Futebol Masculino de 2030 vai ser co-organizado por Portugal. A candidatura representa a intensificação do modelo da economia dos eventos e “é o último passo de uma política económica que desistiu de um país tecnologicamente avançado”.
Por ter sido um anúncio surpresa, com um acordo de bastidores com os países da candidatura sul americana, as primeiras reações foram dispersas. O primeiro-Ministro, António Costa, celebrou o feito e, como antecipado, deixou os líderes da direita desarmados: viram-se forçados a manifestar o seu apoio.
Do lado oposto da barricada, Partido Comunista Português (PCP) e Bloco de Esquerda criticaram a associação com Marrocos, por causa da ocupação colonizadora do Saara Ocidental. Os críticos mais vocais do evento em si talvez tenham sido a economista Susana Peralta e outros economistas ligados à Nova SBE. Este grupo de académicos continuou a sua marcha contra os grandes eventos apostando os seus argumentos no retorno financeiro das Jornadas Mundiais da Juventudes (aqui, aqui e aqui).
A oposição às Jornadas Mundiais da Juventude, com base em argumentos financeiros, é compreensível, visto que Carlos Moedas insistiu em centrar o debate nesses termos. O Presidente da Câmara de Lisboa afirmou que o evento teria um “retorno absolutamente extraordinário” e falava de infraestruturas relativamente simples (palco e uma ponte pedonal) como se fossem uma espécie de nova Ponte Vasco da Gama.
No entanto, expandir esta lógica para todos os eventos organizados, ou promovidos, pelo Estado português reflecte uma visão tecnocrática e economicista da sociedade, em que todas as decisões coletivas são sujeitas ao crivo de uma folha de excel, ou um estudo de impacto encomendado a académicos. Achar que a legitimidade destes eventos - tal como a promoção cultural ou uso do espaço público - é determinada pelo seu retorno financeiro é ilusório. O alinhamento político, que se apoia em maiorias sociais produzidas, é o verdadeiro pilar do consenso.
Enquanto economistas se dedicam a exercícios estritamente contabilísticos e isolados de maiorias sociais, políticos como Costa entendem no que assenta a sua governação.
Outra crítica frequente na promoção destes eventos é seu peso simbólico e a excessiva proximidade do Estado com a Igreja Católica e com o futebol organizado. De certa forma, Fátima e Futebol continuariam a ser o ópio das massas, em que políticos aproveitam a cegueira popular para avançar com elefantes brancos.
Centrar a discussão nestes termos, e ignorar a relação material entre estas instituições e a classe trabalhadora, acaba por falhar o alvo. É necessário entender esta relação se o objetivo for combater a influência destas organizações na sociedade portuguesa.
UMA RELAÇÃO BEM MAIS MATERIAL QUE ESPIRITUAL
Portugal é um país periférico com salários e pensões baixas. A classe trabalhadora é uma das que mais trabalha na Europa. A guerra colonial e a revolução levaram a uma rápida integração da mulher no mercado de trabalho. Junto a isso, o século XX em Portugal ficou marcado pela migração em massa (doméstica e externa) para os centros urbanos. Esta conjunção de fatores colocou a esmagadora maioria dos adultos no mercado de trabalho formal, e separou geograficamente várias famílias, retirando-lhes redes de suporte informal, tanto para cuidar de menores de idade como dos mais idosos.
Ao longo dos quase 50 anos de regime democrático, o Estado Social não tem acompanhado, na velocidade desejada, estas mudanças sociais com a provisão de creches, atividades de tempos livres e lares. Nos últimos anos, a intervenção externa da Troika e opções políticas internadas anestesiaram quase todas as políticas que podiam ter respondido a este processo. É à luz de uma classe trabalhadora com muitas responsabilidades e pouco tempo livre, que devemos analisar a relação da Igreja Católica e do futebol organizado com a classe trabalhadora e o Estado.
Estas instituições moldaram-se para manter a sua relevância no atual regime democrático, filho de um processo revolucionário. Muitas vezes, estas aliviam o quotidiano dos trabalhadores portugueses. Atividades aos fins de semana, como a catequese, os coros e voluntariado funcionam como tempos livres, enquanto muitos pais estão a trabalhar, formalmente ou informalmente. Os acampamentos de escuteiros, durante as longas férias escolares (que Susana Peralta crítica), garantem experiências sociais aos mais jovens que as famílias não conseguem prover. O futebol, ao contrário da maioria dos outros desportos organizados, é frequentemente gratuito e garante transporte, banhos e alguma alimentação.
Para lá das ligações materiais diretas, a igreja e o futebol (de onze e futsal) acabam por promover a socialização em zonas urbanas onde o urbanismo coloca a socialização em último lugar. Uma boa parte das periferias metropolitanas foram desenhadas com o objetivo de albergar mão de obra disponível a trabalhar nas cidades; uma transposição da lógica da divisão do trabalho para o plano do urbanismo. O espaço comum, onde famílias poderiam socializar e criar redes de apoio mútuo, foi posto de lado. O futebol nas ruas, por exemplo, acabou por se tornar uma forma orgânica de sociabilização nestas zonas urbanas, mesmo fora do quadro institucional dos clubes.
Foi assim que estas instituições garantiram a sua legitimidade, até entre os menos crentes ou aficionados pelo desporto rei.
UM ESTADO SOCIAL PARALELO COM DOIS Fs
Esta relação de dependência vai para lá do indivíduo e alastra-se para o Estado. Como João Rodrigues dos Ladrões de Bicicletas mostra no seu livro, “O Neoliberalismo Não é um Slogan”, a terceira via portuguesa - com católico Guterres no comando - fez a terceirização dos serviços públicos através da IPSS, quase sempre ligadas à Igreja Católica. A parceria Estado-Igreja pode ser vista das creches aos lares, passando pelos cuidados médicos. A Santa Casa da Misericórdia, um dos maiores proprietários do país e a quem o Estado garantiu uma posição dominante nos jogos azar, esteve a um passo de participar numa espécie de resgate financeiro ao Montepio, apadrinhado pelo governo. No ensino superior, a Universidade Católica tem beneficiado de um tratamento fiscal preferencial quando comparado com as restantes universidades privadas.
Na ausência de uma política de Estado na área do desporto, o futebol organizado tornou-se num Ministério do Desporto sombra, em que existe uma linha muito ténue entre políticos e dirigentes desportivos.
O grau de exigência da população portuguesa e do Estado com escândalos como os abusos sexuais na igreja, a corrupção no futebol, ou os milhões de euros públicos gastos com eventos, não pode ser dissociado deste elo material e comunitário. Implicitamente, é feito um balanço cru sobre os benefícios materiais provenientes destas instituições e muitos portugueses acham que a sua relação individual com estas é positiva. Do lado do Estado, a codependência institucional coloca-o quase numa posição de par, em vez de soberano face a estas organizações.
ESVAZIAR SEM RACHAR
Os fantasmas do anticlericalismo da Primeira República e a terceira via catolicista de Guterres colocam obstáculos à esquerda na disputa do espaço público, e das próprias funções do Estado, com a Igreja Católica. Em parte, a fórmula para criar as condições para um disputar o papel destas instituições, e da economia dos eventos adjacentes a estas, já existe, e podemos encontrar um exemplo no PCP.
Os comunistas promovem políticas (defendidas também por outros partidos e movimentos de esquerda) que respondem às necessidades imediatas da população como o aumento do salário mínimo, passes sociais, ou manuais escolares e creches gratuitas. Em simultâneo, o PCP absteve-se de participar nos ataques contra a Igreja Católica ou às Jornadas Mundiais da Juventude.
Esta dualidade promove a expansão do Estado Social, de forma autónoma e independente de terceiros, sem entrar na no confronto direto com instituições vistas como parte do Estado Social, por parte de segmentos significativos da população portuguesa. Esta estratégia pode acabar por esvaziar gradualmente o poder político-institucional da Igreja e do Futebol.
Existem outros exemplos de disputa deste espaço social para lá da ação parlamentar do PCP, tanto na institucionalidade, como nos movimentos sociais. Durante a Primeira República, a Universidade Popular foi uma forma de disputar espaço social. Na viragem do milénio, o município da Amadora desenvolveu um sistema de educação musical pública, a Orquestra Geração, inspirado numa experiência educacional dos bairros Venezuelanos, expandido durante o Chavismo. O seu sucesso levou à expansão do programa para a Área Metropolitana de Lisboa e Coimbra. As Redes de Apoio Mútuo promovem a solidariedade entre a classe trabalhadora, de forma autónoma ao Estado.
Combater a promoção e o financiamento público dos grandes eventos faz-se, acima de tudo, com a construção de um Estado Social universal, autónomo e verdadeiramente soberano, que responda à vontade popular.
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas, fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
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