O apagão de 28 de abril mostra que o ano de 2017 não regressará
A perda de eletricidade foi mais uma prova de que Portugal passou uma década de Policrise e faltam mecanismos para conter o pânico.
Na passada segunda-feira, perto das onze horas e trinta minutos de Portugal continental, a eletricidade falhava na generalidade do país. Para quem se encontrava nas ruas a falta de semáforos denunciava um apagão geral. Quem trabalhava em edifícios, ao ver as pessoas que se amontoavam nas entradas e nas varandas, entendia que não se tratava de um problema no seu local de trabalho. Os grupos de WhatsApp davam a entender um fenómeno generalizado a quem se encontrava em teletrabalho.
Embora tenha sido sentido na península ibérica, as informações iniciais questionavam-se sobre um problema à escala europeia. O que seria uma pausa elétrica de alguns minutos depressa ganhou uma escala geopolítica, especulando-se se seria um ciberataque (tese alimentada por um ministro) ou um erro induzido pela Inteligência Artificial. Segundo o que circulou por Whatsapp, o apagão nunca duraria menos de uma semana e uma frota Russa encontrava-se ao largo da costa portuguesa.
Os factos parecem indicar uma falha pontual do sistema elétrico, talvez induzida por uma rede ibérica ainda a habituar-se a uma grande fração de energias voláteis na sua rede. O pânico das suspeitas iniciais levou muitos a açambarcar artigos do supermercado, com reminiscências do que foi a crise pandémica de há cinco anos, mostrando o momento em que o mundo vive. A imaginação fértil e as falsificações que se geraram refletem um mundo em múltiplas e simultâneas crises. O pânico imediato que surgiu, quase como um reflexo, seria impensável há uma década atrás.

Para entender melhor o significado do apagão para a política portuguesa, devemos olhar para o ambiente triunfante da esquerda (em especial do PS) no pós-Troika e o acelerar de crises que foram sendo vistas como emergências pontuais.
A PAX COSTISTA
Com a entrada em 2017 os tempos da Troika passavam para o retrovisor e o contexto político português estabilizava numa Pax Costista. A ameaça no contexto macroeconómico acalmava com o regresso ao crescimento do PIB e o desemprego descia. Depois de alguma tensão no seu primeiro orçamento, António Costa confirmava ser bom aluno de Bruxelas; Mário Centeno nas Finanças passou a bater recordes com os menores défices orçamentais da democracia. Costa cumpria os acordos que fez à esquerda para chegar ao poder e evitava o ambiente confrontativo das reformas do financiamento do ensino privado que marcou 2016.
Na primeira metade de 2017 Costa traduzia o contexto otimista ao proclamar que a Gerigonça havia derrubado o “último resquício do muro de Berlim”. Pedro Nuno Santos, então Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, ia mais longe e afirmava que o PS “nunca mais vai precisar da direita para governar”. Os resultados nas eleições autárquicas confirmavam o tom triunfalista - o momento político traduzia-se numa vitória esmagadora do PS em outubro desse ano. A Pax Costista matava as esperanças da chegada do “diabo” (eventual regresso da Troika) pelo qual Pedro Passos Coelho esperava, forçando-o a sair de cena. O novo paradigma político em que o PS quebrava o tabu de fazer acordos parlamentares à sua esquerda vislumbrava uma hegemonia sem precedentes. Mais à frente, a vitória tranquila de António Costa nas eleições legislativas de 2019 assim o confirmava. Expressões como o “regime PS” passavam a fazer parte da cartilha da oposição.
Problemas como a habitação mostram que o rumo dos acontecimentos não foi tão simpático como o triunfalismo de 2017 sugeria. A fragilidade da Pax Costista tornou-se evidente nas eleições autárquicas de 2021, com a notável derrota de Fernando Medina em Lisboa. O apagão da semana passada relembrou que as sementes da erosão do Costismo já estavam à vista em 2017 quando a Policrise irrompeu no contexto português.
A PRIMEIRA DÉCADA DE POLICRISE
Policrise é um termo que foi resgatado no final de 2022 para entender o tempo histórico em que vivemos. A policrise descreve um mundo em que a intercepção de crises aparentemente desconexas (pandemia, clima, finança, geopolítica) nos leva para caminhos nunca antes percorridos.
Numa ação de campanha em 2019 António Costa exaltava-se com um popular e acusava-o de ser um “provocador” e “mentiroso”. O popular (que tinha ligações ao CDS) insinuava que durante os incêndios de Pedrógão Grande, em 2017, Costa estaria “nas suas merecidas férias”. Num ano que já seria mau em termos de incêndios, com casos como os de Pedrógão Grande no verão, torna-se catastrófico com o impensável: uma segunda vaga de incêndios em pleno outono que elevou o número de vítimas mortais do ano para mais de 100.
Esse ano também foi marcado por uma seca. No caso particular dos incêndios de outubro, o clima seco foi combinado com o furacão Ophelia - o décimo furacão do ano no oceano atlântico, um fenómeno que não se registou nos 100 anos anteriores. Os ventos particularmente fortes foram cruciais para a propagação dos incêndios de outono.
No ano seguinte, um outro furacão, o Leslie - o terceiro furacão que há registo no país - atingiu o continente e deixou algumas zonas do país sem eletricidade. No início de 2020, mergulhamos na pandemia da COVID-19, cujo final se sobrepôs à invasão russa da Ucrânia, que por sua vez resultou num aumento de preços, com a energia em destaque. Os últimos dois verões de António Costa como primeiro-ministro confrontaram-se com uma nova seca particularmente intensa, culminando no racionamento do consumo de água no Algarve.
Esta sequência de crises foi sendo acompanhada por uma viragem da iniciativa política da esquerda para a direita na generalidade do mundo desenvolvido. No pós Costa, já em 2024, Portugal foi assolado por uma nova vaga de incêndios e deram-se cheias que devastaram Valência. O apagão relembra aquilo que a pandemia nos forçou a reconhecer: o que se passa além Badajoz importa. No fim de semana que seguiu ao apagão, tornados no território português relembram que os “fenómenos raros” vão-se tornando cada vez mais normais.
Num acaso improvável, a primeira de uma sequência de vitórias decisivas do PS aconteceu em 2017, ano em que a policrise começou a marcar o passo da política portuguesa. Com a chegada de fenómenos extremos que os portugueses só estavam habituados a acompanhar pelas televisões, o triunfo da Pax Costista coincidiu com a entrada do contexto político que minou o seu modelo de governação. Costa pode ter “derrubado muros” mas parece não ter entendido que era o primeiro líder português na era da policrise.
UMA DÉCADA SEM CRIAR MECANISMOS EMERGENCIAIS
A reação comum perante estas crises tem sido avaliar a comunicação imediata das entidades públicas e a responsabilidade direta das lideranças políticas. Sendo este um processo fundamental do funcionamento democrático, acaba por não interpretar estes fenómenos como apenas uma peça de um puzzle muito maior. Mesmo sendo urgente e fundamental entender as causas particulares do apagão, as multifacetadas crises da última década aconselham um olhar menos focado em eventos pontuais e mais assente no que têm em comum.
O recente apagão foi mais uma crise em que se viu a falta de mecanismos automáticos de emergência de forma a evitar o caos desnecessário, com potencial para escalar em futuras crises. Com a duração de menos de um dia, tem sido desvalorizado o fenómeno de açambarcamento nos supermercados e pontos de combustível. Num cenário mais agudo, estes comportamentos coletivos criariam o terreno fértil para semear o pânico generalizado.
Em situações mais prolongadas, o superabastecimento por parte de particulares podia mesmo ter comprometido atividades essenciais (p.ex: falta de combustíveis) e a flexibilidade de resposta (p.ex: trânsito). Não se deve ver com leviandade a possibilidade de especulação por parte daqueles que conseguiram acesso a bens essenciais de consumo. Não se trata de “questões culturais” ou da falta de civismo de uma parte da sociedade, mas sim de fenómenos que tudo indica que se repetirão. Por esses motivos, o Estado deve, entre muitas outras coisas, avançar com instrumentos automáticos de racionamento, para evitar tanto o pânico como a eventual especulação, aplicáveis em diferentes tipos de crises.
Da mesma forma que os mercados financeiros têm mecanismos para conter pânicos (circuit breakers) e os bancos podem fechar para reagir a corridas aos depósitos, o Estado deve olhar para o racionamento imediato como ferramenta de combate ao pânico. Isto pode incluir tetos máximos de consumo nos supermercados, bombas de combustível e mesmo no levantamento de dinheiro.
As restrições ao acesso à internet durante o apagão, acidentais e longe de serem programadas, acabaram por funcionar como uma ferramenta acidental de combate ao pânico, ao não permitirem a disseminação de informação falsa. O colunista Daniel Oliveira fala mesmo numa “ordem espontânea”, que dificilmente seria possível caso tivéssemos a ser bombardeados por canais de comunicação informais de qualidade duvidosa. Ao contrário do discurso sobre "grandes reformas estruturais”, muitas vezes feitas depois das tragédias (p.ex: reforma das florestas), os mecanismos de emergência estão totalmente ausentes do debate público. Neste momento Portugal está demasiado refém da capacidade de improviso dos seus líderes.O apagão também reforça a ideia que pouco vale investir milhares de milhões em despesas militares não tendo os mecanismos coletivos para manter a sociedade funcional num período disfuncional.
Quando comparado com todas as possibilidades de crises, cujas possibilidades foram imaginadas pela desinformação que foi difundida durante o dia 28 de abril, os acontecimentos mostram um Estado por preparar para tempos de policrise. Acima de tudo, independentemente do resultado das próximas eleições, um retorno à política de 2017 não está em cima da mesa.
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